Lutando com monstros
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” (Friedrich Nietzsche)
Por Gustavo Souto de Noronha*, especial para o Viomundo
Em que pesem os ótimos memes e piadas, a matéria do diário Metrópoles sobre os gastos em alimentação do governo federal é um desserviço ao debate público.
Temos todo o direito de ficar felizes em ver o desgoverno ter que se explicar, ao mesmo tempo que devemos nos preocupar quando ele o faz com ataques à imprensa, ainda mais quando a imprensa dá um ponto sem nó como nesta matéria.
A “reportagem’ não explicita, mas dela se subentende que o gasto público em alimentação é todo feito pelo presidente e, justamente por força dessa injunção, não se apura onde efetivamente possam ter ocorrido desvios.
Obviamente que somos todos a favor de que se apure o mau uso do dinheiro público, todavia o tamanho da repercussão reforça mais a ideia recorrente no imaginário público de que o problema não seria que o Estado gasto pouco, mas que ele gasta mal.
Concretamente, uma apuração cuidadosa verá que eventuais desvios em compras de alimentos são irrisórios.
O combate à corrupção se dá principalmente com transparência, o que temos graças à implementação em 2004 do Portal da Transparência e da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12527/2011).
Os trabalhadores do serviço público desenvolveram ainda o Painel de Preços do governo federal onde a consulta sobre qualquer compra do governo federal fica facilmente acessível.
Um trabalho jornalístico efetivo poderia dar uma dimensão real do problema e apontar exatamente os locais onde haveria possibilidade de superfaturamento. Aliás, o dinheiro que se gastou em medicamentos de eficácia nula contra a Covid-19 como a cloroquina é muito mais grave que o leite condensado do pudim dos cadetes.
Talvez o objetivo nunca tenha sido fazer jornalismo. O Metrópoles, veículo que publicou a matéria, pertence ao ex-senador Luiz Estevão, isso nos remete ao poeta alemão Bertold Brecht, “pergunta a cada ideia: serves a quem?”.
A notícia falsa (porque é falso que o Bolsonaro tenha gastado 15 milhões em leite condensado, afinal são compras gerais do governo) foi amplamente repercutida pelo campo progressista – teve até pedido de CPI do “Leite Condensado”.
O problema de quando tudo vira notícia falsa, nada mais é notícia falsa, e neste terreno o bolsonarismo nada de braçada.
E o resultado disso tudo provavelmente será reforçar o discurso de que o Estado não sabe gerir recursos públicos e que tem que privatizar tudo.
Escandaloso não é o que o governo gasta em alimentos, escandaloso é o teto dos gastos que constrange o orçamento público.
E sobre esse escândalo deveríamos falar mais, se os gastos em alimentação das forças armadas impressionaram, façamos um comparativo da evolução dos orçamentos globais da saúde, educação e defesa.
Um projeto, iniciado com o golpe de 2016, institucionalizado com o teto dos gastos, e adotado tons bárbaros após a eleição do Bolsonaro não se sustenta sem apoio orgânico dos militares.
Desconstruir políticas públicas que atendem ao povo requer controle do aparato de repressão, e o aparato exige seus agrados.
À exceção do ano de 2020, por conta da pandemia da Covid-19, os gastos em saúde e educação reverteram a tendência de crescimento e iniciaram uma trajetória declinante com o golpe enquanto os gastos em defesa seguiram aumentando.
Importante destacar que, apesar do ponto fora da curva nos gastos em saúde em 2020, a previsão orçamentária para 2021 indica para este ano 86,17% dos recursos destinados à saúde em 2019.
O gráfico abaixo mostra como evolui a proporção do gasto em defesa em relação aos gastos em saúde e educação. Num cenário de constrangimento imposto pela EC nº 95, o gasto em defesa “rouba” da saúde e da educação.
Concretamente, impressiona tamanho gasto em defesa sem que o exército seja capaz de formar um general especialista em logística com competência para equacionar, pelo menos, os problemas de logística em todas as políticas de combate à pandemia da Covid-19.
O orçamento empenhado da defesa aumentou 35,44% de 2015 para 2016.
O respaldo dos militares brasileiros tem sido imprescindível para a guerra contra o Brasil e seu povo imposta com o golpe de 2016, a EC nº 95 e o governo genocida de Jair Bolsonaro.
Não podemos esquecer do discurso do presidente de que “o Brasil está quebrado” é uma das mentiras econômicas mais repetidas pela mídia.
Quando Bolsonaro repete o mantra apenas ecoa o que o oligopólio midiático prega. Essa talvez seja a maior mentira propaga aos quatro ventos em Pindorama.
Países como o Brasil – continentais, populosos, entre os maiores PIBs e com altas reservas internacionais – não quebram. Nunca quebraram, jamais quebrarão.
As restrições hoje existentes no Brasil a uma expansão do gasto público são de natureza legal, não econômica.
Ou seja, os gestores políticos do país fizeram, em nome do povo, uma escolha política de impedir que o governo tenha a sua disposição as ferramentas necessárias a uma gestão econômica socialmente responsável.
A emenda constitucional nº 95 (teto de gastos), a regra de ouro e alguns dispositivos da lei de responsabilidade fiscal constituem o tripé de regras fiscais autoimpostas.
Ficaria mais claro se fossem chamadas de teto de direitos, regra de pirita (o ouro dos tolos) e lei de irresponsabilidade social.
O debate sobre o gasto público federal precisa sair da armadilha das restrições fiscais e passar a debater os limites econômicos reais, inflação e restrições externas.
E, importante frisar, discutir o chiclete da aeronáutica vai sempre implicar na crítica comum ao “estado inchado”.
Sempre que prejudicial, temos que nos livrar do senso comum e não reforçá-lo sobre qualquer pretexto.
De fato, o resultado de todo esse escândalo do bombom com leite condensado será rebaixar o debate do gasto público.
O foco deveria ser a denúncia o caráter genocida do governo, do negacionismo no trato com a pandemia ao fim do auxílio emergencial.
É preciso sair do feitiço dos discursos dos especialistas do mercado, estreitamente ligados à banca e à indústria diria Kalecki, e pararmos de tratar a questão do gasto público, do emprego e renda do trabalhador aos recursos necessários a um efetivo combate da Covid-19, como resultado da conjuntura e sabores do deus mercado.
O emprego, saúde, educação são direitos e o trabalhador deve ter a garantia de que não será jogado à miséria e à morte em qualquer crise econômica. Existem saídas, só não estão nas velhas ideias dos economistas brasileiros que já não encontram mais eco nem no FMI.
A situação econômica do Brasil é ímpar.
Uma recessão acompanhada de uma desestruturação de cadeias produtivas que já provoca inflação por desajustes no lado da oferta.
Empresas e famílias endividadas sugerem que dificilmente saídas pelo investimento ou consumo sejam possíveis.
Um cenário externo adverso (com o Itamaraty apreciando que o Brasil seja um pária na comunidade internacional) não sugere uma alternativa de desenvolvimento liderado pelas exportações (isso sem mencionar a necessidade de importação de insumos para um programa de vacinação em massa).
Não existe alternativa que nos tire da crise econômica e sanitária que não seja através de um Estado forte, com um SUS estruturado e cuja estratégia de desenvolvimento seja um forte programa de investimentos públicos com ênfase nos gargalos produtivos e aproveitando a enorme capacidade ociosa (principalmente mão de obra) existente no país.
Dito isso, não parem com os memes, nem com as piadas.
Deixem que o governo se explique. Contudo, assim como nas eleições estadunidenses onde se sabia que era urgente que o mundo se livrasse de Donald Trump, nós do Sul Global não guardamos nenhuma ilusão com a eleição do Biden.
Preparemo-nos, portanto, para o debate necessário, sem nos tornamos os monstros que defendem um Estado austero.
Fora Bolsonaro! Pelo fim do teto dos gastos!
* Gustavo Souto de Noronha é economista e professor universitário
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