Manobra do Planalto que pavimentou aliança na Câmara despejou 3,9 bilhões em emendas. Usando pandemia como pretexto para forçar mudança de regras do gasto público, dinheiro foi para obras sem nenhuma relação
por Piauí
Por Marta Salomon, na Piauí
A prefeitura de Parintins, cidade do Amazonas famosa pelo festival folclórico de boi-bumbá, comemorou no final de dezembro a assinatura de convênio de 60 milhões de reais para conter a erosão nas margens do Rio Amazonas. A construção do muro faz parte de um pacote de obras contratadas com verbas públicas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional em caráter excepcional no final de 2020, ao custo de 3,9 bilhões de reais – a serem pagos em 2021. O pacote bilionário ajudou a garantir a eleição de aliados do Planalto para o comando do Congresso. Só foi possível graças a uma manobra orçamentária criticada pela área técnica do Tribunal de Contas da União e pelo Ministério da Economia, por contrariar a responsabilidade fiscal.
Relatório divulgado no final de janeiro pelo Ministério da Economia informa que o aumento da liberação de dinheiro público para emendas parlamentares em 2020 deixa um total de 28,7 bilhões de reais a serem pagos neste ano. Não é pouca coisa: o valor equivale a 8 de cada 10 reais previstos para o programa Bolsa Família em 2021 (35 bilhões de reais). Despesas com emendas parlamentares pendentes de pagamento aumentaram 80%, informa o relatório. No total dos chamados restos a pagar, 39% são despesas do Ministério do Desenvolvimento Regional, um percentual maior que o destinado por emendas parlamentares para o Ministério da Saúde.
“É uma emenda inédita que a gente está conseguindo para a cidade de Parintins com o nosso grande parceiro, o senador Omar”, celebrou em dezembro o prefeito Bi Garcia (DEM) no site da Prefeitura de Parintins, referindo-se a Omar Aziz, do PSD, partido que apoiou em peso a eleição do novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Por emenda “inédita” entenda-se que Aziz apadrinhou o repasse extra de verbas públicas, além do conjunto de emendas parlamentares que deputados e senadores tiveram direito a apresentar em 2020, no valor de até 15,9 milhões cada um. Nesse caso, a quantidade de dinheiro repassada não foi igual para todos os parlamentares, e o repasse tampouco deixou as digitais dos “padrinhos” impressas nos registros do Tesouro Nacional.
Com dinheiro garantido em caráter excepcional por decreto do presidente Jair Bolsonaro editado às vésperas do Natal, as obras estão reunidas em planilha do Ministério do Desenvolvimento Regional. A planilha lista mais de 3 mil obras, de construção de praças a pontes e calçadas, além da compra de equipamentos para municípios em todo o país. A pavimentação de ruas é a obra mais frequente no documento.
A obra de maior valor na planilha e com padrinho claramente identificável custa 95,8 milhões de reais, dinheiro destinado ao asfaltamento de ruas em bairros do município de Santana, no Amapá. O padrinho, no caso, foi o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Em nota, o senador exaltou a liberação de verba pública para um município que elegeu uma vice-prefeita do PT, “partido adversário de primeira hora do atual governo”, o que seria, segundo ele, um gesto “republicano, justo, igualitário e digno de reconhecimento”. A nota não menciona que o município de Santana elegeu a petista Isabel Nogueira como vice do prefeito Bala Rocha, do PP, mesmo partido do recém-eleito presidente da Câmara, Arthur Lira, um dos líderes do Centrão.
Ao todo, o governo aquinhoou Parintins com mais dinheiro que Santana, no pacote. Foram 98,3 milhões de reais, somados os repasses apadrinhados por Omar Aziz e pelo colega Eduardo Braga (MDB-AM), líder do partido que rachou na eleição para presidente do Senado. “É uma verba que o senador conseguiu no Ministério do Desenvolvimento Regional”, anunciou o prefeito Bi Garcia a um jornal local. O contrato apadrinhado por Braga permitirá, além do asfaltamento de estradas de acesso a agrovilas, a construção de meio-fio, sarjeta e um porto flutuante na cidade. À piauí, Aziz afirmou que o dinheiro para o muro de arrimo foi uma “proposta voluntária” baseada em “interlocução” que mantém com o governo desde 2015.
O cenário de crise da pandemia foi o pretexto usado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional para defender a mudança nas regras dos gastos públicos, que garantiria a liberação dos 3,9 bilhões extras para obras. “A paralisia de obras e a não realização de novos investimentos poderiam agravar o atual cenário de crise”, alegou o ministério, informa o processo que tramitou no Tribunal de Contas da União (TCU).
Questionada pela piauí durante uma semana, a pasta comandada pelo ministro Rogério Marinho não explicou a relação das obras com a pandemia nem se manifestou sobre sua importância. Ao TCU, o ministério alegou também que o bloqueio dos recursos provocado pela observância rigorosa das regras orçamentárias “poderia gerar descompasso na relação entre os Poderes”.
A relação de gastos do Ministério do Desenvolvimento Regional inclui o repasse de 4,8 milhões de reais para a pavimentação e drenagem de ruas no município de Barra de São Miguel, em Alagoas. O prefeito da cidade é Benedito de Lira, pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
A piauí reconstituiu passo a passo a manobra orçamentária que ajudou a garantir o apoio parlamentar necessário para dar ao governo o comando do Congresso e para barrar – pelo menos num futuro próximo – a análise de pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
Faltavam menos de dois meses para o final do ano quando o Congresso Nacional aprovou pedidos de créditos suplementares propostos pelo governo, com autorização de gastos extras para obras não previstas na lei orçamentária. Também se esgotava o período de calamidade pública nacional decorrente da pandemia do coronavírus, quando limites impostos para os gastos públicos foram relaxados pelo Regime Extraordinário Fiscal.
Dois desses pedidos de créditos extras propunham um total de 3,9 bilhões de reais para obras do Ministério do Desenvolvimento Regional. O dinheiro para bancar essas obras viria tanto da emissão de títulos da dívida pública como da anulação de outras despesas, como gastos destinados à modernização de instituições federais de educação profissional, científica e tecnológica e de apoio ao desenvolvimento da educação básica, além de recursos destinados inicialmente à política de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.
Aprovados os créditos suplementares em 4 de novembro, não havia tempo suficiente para o início das obras, condição imposta para que houvesse os chamados empenhos, que traduzem o compromisso com determinada despesa. O acúmulo de gastos em 2021 sem relação direta com a pandemia não foi visto como um problema por lideranças políticas nem pelo ministro Rogério Marinho. Mas era preciso que o TCU avalizasse a mudança de regra nos gastos públicos. Com o sinal verde do tribunal, o presidente Jair Bolsonaro editou decreto em 18 de dezembro liberando a “excepcionalidade”. O decreto determina que os ministérios deveriam dar publicidade aos contratos, convênios ou acordos favorecidos pela regra, conforme exigência feita pelo TCU.
O parecer da área técnica do Tribunal de Contas da União foi muito claro ao negar o pedido encaminhado pela Advocacia-Geral da União para flexibilizar as regras de gastos e permitir que tivessem início em 2021 obras objeto de autorização extra de gasto em 2020. Segundo a Secretaria de Macroavaliação Governamental do TCU, flexibilizar o princípio da anualidade do gasto “vai de encontro aos pressupostos da gestão fiscal responsável, por impactar a transparência e o planejamento e acarretar riscos e desvios, com elevado potencial de afetar o equilíbrio das contas públicas”.
O processo no TCU relata ainda a oposição do Ministério da Economia à manobra. Nota técnica da equipe do ministro Paulo Guedes tenta conter impactos em 2021 de despesas do ano da pandemia. “De fato, a situação fiscal enfrentada pelo país é muito grave, sendo necessário delimitar claramente os efeitos financeiros das despesas decorrentes da calamidade pública da pandemia, minimizando o seu impacto em 2021.”
Relator do processo no TCU, o ministro Bruno Dantas disse reconhecer a preocupação com a situação fiscal do país. Mas concordou em liberar as obras que só começariam em 2021. “É preciso ponderar que a pandemia continua”, alegou. Assim, apesar da oposição da área técnica do TCU, o parecer foi aprovado em sessão virtual do tribunal em 2 de dezembro.
O Ministério da Economia foi questionado sobre o fato de a manobra orçamentária liberar despesas sem relação com a pandemia ou seus efeitos. “Recomendamos que essa pergunta seja direcionada ao TCU”, respondeu o ministério. O ministro Bruno Dantas informou que não se manifestaria sobre o tema.
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