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Créditos da foto: (Kim Kyung-Hoon)
1. Permitam-me começar com um truísmo. Diminutas há pouco mais de duas décadas atrás, as relações econômicas, financeiras e políticas com a China cumprem um papel decisivo no presente da América Latina, e no processo de construção de seu futuro. Válida em termos gerais, essa afirmativa aplica-se de maneira variada e com peso desigual segundo o país considerado.
2. O Brasil (como o restante da América Latina) foi fortemente golpeado pela pandemia da Covid 19, e seu impacto econômico não foi ainda mais destrutivo devido ao efeito do auxílio emergencial e à forte demanda chinesa, que alimentou as exportações brasileiras. Por outro lado, a pandemia externou também um lado inquietante da relação que o Brasil mantém com a China – mas não apenas ele!: a extrema dependência da importação de insumos farmacêuticos para garantir a provisão de vacinas indispensáveis à superação da crise sanitária.
3. Não se trata de um caso isolado. Mesmo no auge do ciclo de crescimento interrompido pela crise global de 2008, observadores críticos chamavam a atenção para o que parecia a seus olhos ser uma tendência preocupante de desindustrialização e re-primarização da economia brasileira. Divergências entre os especialistas à parte, na primeira metade da década seguinte a intensificação da crise na Europa e desaceleração do crescimento na China produziram dois efeitos nefastos para as economias da América Latina: o fim do boom de commodities e ociosidade industrial, que provoca o endurecimento da concorrência internacional, particularmente brutal nos segmentos de médio-intensivo em tecnologia.
Desde então, a economia brasileira ingressou em verdadeiro inferno astral, como resultado das opções de política econômica adotadas e da evolução mesma da crise política. Nesse ínterim a tendência à desindustrialização acentuou-se fortemente. E assistimos então a um processo de realimentação através do qual o dinamismo econômico maior do agronegócio se traduz em incrementos de poder político, a tal ponto que vozes autorizadas passam a defender a ideia vetusta de que o Brasil deveria explorar sabiamente suas vantagens comparativas e se dedicar à agricultura e ao extrativismo. Nesse contexto, o relacionamento com a China, com o padrão que o caracteriza hoje, se torna eminentemente ambivalente: vital para a manutenção do ritmo de atividade econômica, mas ao mesmo tempo uma armadilha que nos condena, como nacionalidade, a um futuro de pobreza, desigualdade e sujeição.
4. O aumento da presença chinesa na América Latina é resultante do seu impressionante ciclo de crescimento, mas também das características estruturais de sua economia, com destaque para sua forte dependência da importação de recursos naturais e de bens primários.
5. Mas as implicações dela são fortemente condicionadas pela posição da China no sistema internacional. Ao contrário das duas outras grandes potências econômicas que a precederam – a Alemanha Ocidental e o Japão – a China não integra a “comunidade de segurança” estruturada e dirigida pelos Estados Unidos desde os primórdios da Guerra Fria. E não só isso, embora tenha ingressado na OMC em 2001, sob os auspícios dos Estados Unidos, seja qual for o conceito empregado na definição de sua organização socioeconômica (socialismo, capitalismo de Estado, ou outro qualquer), a China acomoda-se mal no figurino da “economia livre de mercado” que informa ordem capitalista neoliberal implantada em escala planetária depois do fim da Guerra Fria. Apesar de todo o esforço em contrário de seus dirigentes (‘peaceful rising strategy”), a conjugação desses três atributos confere ao crescimento explosivo da China um nítido conteúdo geopolítico.
5.1. Expressões desse fato são, de um lado, a resistência chinesa em se fiar nas “soluções de mercado” para assegurar a provisão regular e crescente de bens demandados por sua economia, e, de outro, os constantes atritos com os Estados Unidos, que há muito denunciam a China por roubo de propriedade intelectual e manipulação cambial, entre outras críticas.
5.2. Por muito tempo, esses atritos foram atenuados pela prevalência de uma abordagem integracionista na política chinesa dos Estados Unidos (engagement approch: a ideia de que a integração na ordem econômica neoliberal levaria naturalmente à mudança desejada nos padrões de organização econômica e política da China). Já no começo da década passada, a confiança nessa hipótese enfraquecia-se. O Pivô asiático da Secretária de Estado Hillary Clinton (2010) e logo depois a TPP (Trans-Pacific Partnereship) são manifestações claras desse fato. Como se viu no debate político sobre a celebração do referido Tratado nos Estados Unidos, mais importante do que os magros ganhos comerciais prometidos, o que se buscava com ele era o estabelecimento de um conjunto de regras preferenciais de tipo “OMC plus”, que não deixaria à China outra escolha senão a de adaptar-se para se fazer aceita no clube.
5.3. Durante o governo Trump assistimos a uma mudança assumida de enfoque – e não apenas de sua equipe. A China passa a ser definida como “competidora estratégica”, e torna-se alvo de uma política de contenção e reversão agressiva. Pari passu, a presença chinesa na América Latina – tida até então como inofensiva, ou mesmo benéfica, passa a ser percebida como uma ameaça – e assim é tratada no Estratégia de Segurança Nacional, de 2017, e em inúmeros documentos de política que se seguiram.
6. A mudança política que se opera no subcontinente na segunda metade da década passada não é estranha a esse movimento. Ela se manifestou em inúmeros países, mas o palco privilegiado do embate -- onde fatores “internos” e “externos” iam sempre de mãos dadas -- foi o Brasil. Com efeito, o golpe do impeachment foi um veto a muitas coisas, mas entre elas – e não em último lugar – ao projeto de integração regional patrocinado por nossa diplomacia e, de maneira mais geral, à pretensão de situar o Brasil como ator relevante no grande jogo da política mundial.
7. Colocar esse fato no centro da reflexão é preciso, porque ele atravessa por todos os lados o espaço das questões que nos interessam. Com efeito, considerada abstratamente, a situação de competição estratégica entre grandes potências não se nos afiguraria desfavorável. Se elas disputam entre si nosso cacife aumenta. Sabemos que a realidade é mais complexa, porque a rivalidade entre as grandes potências pode (tende a) produzir respostas diferentes nos Estados da região – que buscávamos integrar. Mas a hipótese fica mais abalada ainda quando abandonamos o suposto tácito de que cada Estado reage em bloco aos estímulos provenientes do ambiente internacional. Quando percebemos que não é assim, e que não apenas nos inserimos no mundo, mas comportamos o mundo em nós, entendemos facilmente que além de contribuir para a fragmentação regional, a dita rivalidade pode ter efeitos politicamente desagregadores em cada país.
8. Perguntas politicamente interessadas. Antes de passarmos à formulação delas convém indicar a direção de tal interesse. A América Latina é historicamente uma das regiões mais desiguais do mundo -- e o Brasil está entre os primeiros nessa desgraçada competição. Além disso, padece de fraco desempenho econômico e vê agora reforçados os vínculos de dependência que sempre marcaram sua condição no mundo. O interesse político que informa as perguntas que fazemos sobre a relação entre a China e a América Latina nasce da confluência dessas três observações e se desagrega em três imperativos: emancipação social; autonomia nacional e prosperidade econômica. Cientes das diferenças de tempo político entre os países da região, damos como certo que a promoção de tal interesse só se realizará plenamente como parte de um processo compartilhado de emancipação.
9. A questão de fundo, portanto, é esta: em que medida, e de que modo, o relacionamento com a China pode afetar positiva ou negativamente tal processo.
10. Obviamente, não há uma única resposta a essa pergunta. O significado econômico e político da relação com a China varia de acordo com as características e circunstâncias de cada país. Mas a questão geral pode ser decomposta em perguntas mais específicas, algumas delas dissociadas das particularidades de cada país.
11. Nesse sentido, as perguntas a serem feitas estariam distribuídas em três grupos.
O primeiro deles teria por foco a China, propriamente dita, e sua inserção no mundo. Questões relativas às suas condições econômicas, sociais e políticas; sobre suas políticas de desenvolvimento e de segurança e defesa; sobre suas relações com o seu entorno imediato – ênfase aqui no relacionamento com o Japão, as duas Coreias, a Índia e o Paquistão; relação China-União Europeia, e sua aliança com a Rússia. Permeando todos esses itens, a rivalidade hegemônica entre China e Estados Unidos.
O segundo teria como foco as relações entre a China e a América Latina. Qual o lugar da América Latina na grande estratégia chinesa? Como avaliar as iniciativas de alcance regional da China? Como a política chinesa é vista por analistas e governos da região?
O terceiro grupo estaria dirigido a diferentes países latino-americanos. Evolução e padrão atual das relações econômicas com a China; seu peso relativo, seu enquadramento institucional (p. ex. o Chile tem um tratado de livro comércio com a China desde 2006, ao passo que o Paraguai, embora seja grande exportador de soja para a China, não mantém relações diplomáticas com ela, por reconhecer Taiwan como país independente); a qualidade do relacionamento estabelecido com a China pelos diferentes governos, e o posicionamento das forças políticas relevantes em relação à presença chinesa.
As perguntas decisivas surgem no cruzamento dos dois últimos grupos, e podem se sintetizar em duas grandes questões: em que medida a China pode contribuir para fortalecer governos e movimentos interessados na defesa e no aprofundamento da democracia na América Latina? Em que medida pode contribuir para a concretização de projetos de desenvolvimento votados à superação do quadro de pobreza e desigualdade recorrente na região?
Não são esses, obviamente, os objetivos que animam os chineses. O modo como suas políticas vão se relacionar com eles vai depender das condições vigentes em cada país, e da ação mais ou menos informada, mais ou menos inteligente, das forças políticas comprometidas com esses fins no continente.
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