“Sem auxílio emergencial, sem empregos e salários decentes, sem direitos, sem alimentos, sem perspectivas, sem vacina e até sem oxigênio a vida dos brasileiros se aproxima cada vez mais do pesadelo descrito por Hobbes”, escreve Marcelo Zero, em referência ao “estado de natureza”, teoria sobre as condições que precedem a criação do Estado desenvolvida pelo pensador Thomas Hobbes
Foto: Adriano Machado
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A grande façanha de Bolsonaro foi ter devolvido o Brasil ao que Hobbes chamava de “estado da natureza”.
Uma condição, sem regras, sem leis e sem Estado, na qual a vida humana é invariavelmente “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” (solitary, poor, nasty, brutish, and short). Uma guerra constante de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).
De fato, sem auxílio emergencial, sem empregos e salários decentes, sem direitos, sem alimentos, sem perspectivas, sem vacina e até sem oxigênio a vida dos brasileiros se aproxima cada vez mais do pesadelo descrito por Hobbes.
No Brasil, o Estado parece ter sumido, principalmente quando se trata de defender a vida dos mais frágeis e pobres.
Ninguém é responsável por nada.
O Brasil, de acordo com o Lowy Institute, de Sidney, tem o pior desempenho do mundo no combate à pandemia de Covid-19. Recebeu nota 4,3, num total de 100. A mais baixa entre os 98 países pesquisados. Somos os campeões mundiais da morte. Uma glória.
Mas, de acordo com o governo, ele não é responsável. Bolsonaro, sem dúvida um estoico, já disse, há muito tempo, que não pode fazer nada. Portanto, conforme os ensinamentos estoicos, não deve se importar ou ter sentimentos sobre o assunto. Fatalista, afirma que “todo o mundo vai morrer mesmo”. Indagado sobre as centenas de milhares de mortes, “filosoficamente” responde: “e daí?” Um sábio.
Pazuello, o gênio da logística, também afirmou, na cara dos Senadores, que não é responsável. Faltou oxigênio em Manaus? Acontece. Morreram mais de 230 mil brasileiros de “gripezinha”? Coisas da vida.
É possível, no entanto, que juízes na Haia não tenham o entendimento de que as ações e omissões do nosso governo de filósofos possam ser justificadas pelos ensinamentos de Epiteto e Sêneca. É até provável que, com base do Estatuto de Roma, julguem que o governo do capitão é responsável pelo crime de extermínio, diferente do genocídio.
Também é bem possível que a situação do Brasil venha a se agravar, neste ano.
No plano internacional, o Banco Mundial prevê crescimento de cerca de 4%, em 2021, após a queda de 4,6%, no ano passado. Insuficiente, portanto, para que a atividade econômica volta aos níveis pré-pandemia.
Para a América Latina, a CEPAL prevê recuperação de apenas 3,7% em 2021, subsequente a uma contração média de -7,7% em 2020, a maior em 120 anos.
Entretanto, tal recuperação tímida e relativa da economia mundial, puxada basicamente pela China, que não reporá a atividade econômica aos níveis pré-pandemia, dependerá estreitamente da questão sanitária. Caso a vacinação ocorra de forma lenta, o Banco Mundial prevê uma estagnação nos níveis muito baixos de hoje (crescimento de somente 1,6%).
Essa relativa recuperação dependerá também da capacidade dos governos implantarem pacotes de estímulos para suas economias. No caso dos EUA, por exemplo, o governo Biden lançou um pacote de estímulos que ascende a US$ 1,9 trilhão. Boa parte dos governos minimamente responsáveis do mundo fará o mesmo.
No Brasil, nosso governo pretende, ao contrário da tendência mundial, insistir na salada mortal e indigesta do teto de gastos, da austeridade fiscal, da extinção de direitos e da indigência sanitária. Salada regada com molho de cloroquina, terraplanismo, discurso de ódio e fake news. Uma delícia.
Pretende-se, assim, seguir o rumo do Estado omisso e irresponsável e do excitante “estado da natureza”. O rumo, na verdade, do neoliberalismo.
O neoliberalismo nada mais é do que aposta num Estado omisso e irresponsável, frente às necessidades do grosso da população, que faz voltar o capitalismo a um estado de barbárie incontrolada. Sua acumulação primitiva e “natural”.
Em tal contexto, o Estado só existe mesmo para servir aos interesses de 1% da população.
O resto que leve uma vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.
Resta ver por quanto tempo a população manterá a mesma atitude “estoica” do nosso governo de filósofos, com um auxílio emergencial de estratosféricos R$ 250,00.
Resta indagar por quanto tempo os nossos “democratas” da direita tradicional e do “centro” fingirão que fazem oposição real ao governo Bolsonaro quando, na realidade, apoiam sua agenda regressiva e destruidora.
Resta perguntar por quanto tempo a mídia tradicional fingirá que não tem nenhuma responsabilidade por este estado de coisas.
E resta ver, por último, por quanto tempo o judiciário acobertará os crimes da Lava Jato e manterá o absurdo “cancelamento” político de Lula.
Enquanto isso, a vida prossegue cada vez mais solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.
Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da Liderança do PT no Senado Federal.
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