Silvio Berlusconi, ao centro, Matteo Salvini, à direita, e Giorgia Meloni, à esquerda: os três maiores herdeiros da destruição política da Operação Mãos Limpas.
Livro analisa a operação Mãos Limpas, que inspirou o ativismo judicial de Moro. Entre as inúmeras semelhanças com o Brasil, a principal talvez seja ter destruído do campo político e o deixado à mercê da volta do populismo reacionário
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Este texto, cujo título original é “A operação que inspirou a Lava Jato e abriu caminho para o populismo reacionário” corresponde ao prefácio do livro Primeiro eles tomaram Roma: como a extrema-direita conquistou a Itália após Operação Mãos Limpas, de David Broder, recém lançado no Brasil pela editora Autonomia Literária, em tradução de Aline Klein. Para adquirir o livro no site da própria editora, clique aqui.
David Broder começa o livro Primeiro eles tomaram Roma: como a extrema-direita conquistou a Itália após Operação Mãos Limpas contando sobre a demanda histórica da classe média italiana de viver em um “país normal”, a partir da obsessão de modelos políticos supostamente mais estáveis, como o britânico ou alemão. Termina se perguntando o quanto a experiência recente italiana servirá de laboratório para outros países. A turbulência institucional, assinala, é muito menos uma marca de atraso do que a possível visão de nosso próprio futuro.
A sopa de letrinhas que antecede a introdução, explicitando as legendas partidárias criadas, ou extintas, nas últimas três décadas, lembra um pouco nossa realidade eleitoral. E o leitor que terá agora acesso a essa obra, pelas mãos da antenada equipe da Autonomia Literária, provavelmente vai se interessar por possíveis paralelos com a política brasileira. Especialmente, pela interferência de um cataclisma que ajudou a explicar como o populismo reacionário conquistou a Itália: uma operação anticorrupção, que se notabilizou pelo ativismo do sistema de justiça, pela espetacularização do processo e pelo estrondo então provocado nos partidos tradicionais.
Primeira como tragédia, depois como farsa
Como se sabe, Sérgio Moro escreveu artigo sobre a Operação Mãos Limpas em 2004, dez anos antes de conduzir a Operação Lava Jato. Tratou a operação como um momento extraordinário na história do Judiciário, sem conter sua desbragada admiração. Entre os procedimentos que apreciou na operação italiana, o contingente de prisões direcionadas à confissão e os vazamentos seletivos na mídia que acabaram por provocar o efeito-dominó nos políticos delatados. Quanto à explosão do sistema partidário, resumiu como sendo essencial para o sucesso da operação. Por aqui, a dinâmica de importar a opinião pública para dentro do processo traria o bônus de dilacerar a racionalidade do Supremo Tribunal Federal, que ainda sofre para se recompor.
Como imortalizou Karl Marx no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “a história se repete duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. No caso brasileiro, a farsa foi a confusão, proposital ou involuntária, do juiz com o papel da acusação – num erro de tradução sobre a função que desempenhavam os “juízes” de lá, na verdade, como os nossos membros do Ministério Público. O resultado acabou exposto na Vaza Jato, que serviu de autópsia da operação, desvelando a promiscuidade entre juiz e promotor em conversas reservadas ao longo de anos, com a ativa participação do julgador na construção e desempenho da acusação.
Ao final, a operação que ajudou a pavimentar o caminho da extrema-direita ao Planalto por aqui, com um candidato que também bravateava contra a “velha política”, serviu para instalar o próprio juiz como seu ministro da Justiça. E numa reviravolta que deixaria os italianos satisfeitos por sua estabilidade, depois de ter sido considerado parcial no julgamento que excluiu Lula da disputa em 2018, o ex-juiz se apresentou como candidato para tentar enfrentá-lo em 2022, mas acabou desistindo por não ter decolado nas pesquisas.
O impacto da operação na Itália foi decisivo. Broder descreve, em um enredo minucioso, como depois da Operação Mãos Limpas três formas distintas de reacionarismo populista tomaram conta da política italiana. Silvio Berlusconi, magnata das comunicações, foi o primeiro a surfar no sentimento antipolítico, que acabou provocando a maior renovação no parlamento, com 2/3 dos congressistas trocados no pleito após as denúncias. Entre idas e vindas ao poder, o primeiro beneficiado da operação anticorrupção acabou ele mesmo sendo condenado e preso.
Em um recorte de autocrítica, Broder, que é editor da Jacobin europeia, também atribui às mazelas da esquerda o enfraquecimento da política – sobretudo a extinção do maior partido comunista da Europa Ocidental e o equívoco de seus legatários, coniventes por impulsionar mudanças neoliberais. Esforços fiscais, sobretudo para acompanhar a política da União Europeia, acabaram por firmar a prevalência de tecnocratas sobre o discurso partidário.
A perda de confiança na política e a luta contra seus desvios não resultou em nenhum avanço da representação popular e tampouco acrescentou algo no accountability. Mas o descrédito profundo dos partidos estimulou o ingresso de novos atores no cenário com a força das redes sociais.
Criado à luz das críticas de um comediante e baseado em um blogue e uma plataforma interativa na web, o partido Movimento 5 Estrelas orbitou, supostamente, sob direita e esquerda, por intermédio da emulação de um falso dilema: não se tratava mais de contrapor ideologias ou regionalismos, mas separar cidadãos de bem contra políticos corruptos. Ao contrário de reagir a reformas liberais que enfraqueciam proteções sociais, por exemplo, seus líderes brandiam o “Fora todos eles!”, que acabou traduzido em um escatológico “Vaffanculo Day”.
Broder nos conta como o anticomunismo tardio provocou o ressurgimento da extrema-direita, as peripécias dos acordos entre neoconservadores e neoliberais no governo, e um momento especial em que o líder fascista Matteo Salvini, o terceiro populista conservador, vindo de um partido originalmente separatista, põe em funcionamento sua estratégia para tomar o poder – depois de aterrorizar a Europa com uma política fortemente antimigratória enquanto ministro do Interior. Com os bárbaros à porta, descreve Broder, o sistema político italiano tenta reagir a essa deterioração final.
Aprendizado
O patchwork de peculiaridades culturais, na feliz expressão do autor, dificulta uma importação imediata de modelos, ou o transporte de certas experiências. Mas há lições a serem aprendidas. O desprezo pela política, seja pelo exagero da judicialização, seja pela submissão a uma suposta democracia de internet, ou ainda pelo descrédito e desesperança generalizados, leva a soluções ainda piores com a ascensão dos outsiders. Os que se põem à margem da política para tomar o poder em nome da lisura, das quebras de privilégios ou, enfim, da nação, não vão deixar de fazer política – vão fazer, mas sem deixá-la à mostra e, por isso mesmo, com menos controle popular.
Com linguagem fluente, repleto de informações, mas sem academicismos, Broder passeia sobre temas que lhe são caros, a prevalência do neoliberalismo, a submissão dos membros da zona do Euro às economias de moedas fortes, e as fissuras da esquerda, que acabaram por contribuir de forma decisiva para esse quadro. E não se esquiva de apontar caminhos.
O livro que o leitor tem em suas mãos é uma preciosidade: informação, análise e engajamento em medidas adequadas. Dizer mais seria tolhê-lo de mergulhar o quanto antes nessa piscina de conhecimento e crítica.
é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e escritor. Mestre em Direito Penal e Doutor em Criminologia pela USP. Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Autor, entre outros, de “Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil” e “Entre Salas e Celas. Dor e esperança nas crônicas de um juiz criminal”.
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