quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O ano em que vencemos o fascismo

Imagem: Rui Palha

Nosso pesadelo está no fim. Mas ao despertarmos, vemo-nos diante de um país a reconstruir e um mundo em guerra e crise civilizatória aguda. Na Retrospectiva 2022 de Outras Palavras, elementos para pensar as novas jornadas
Toda virada de ano evoca esperanças, mas desta vez elas parecem mais palpáveis – e ao mesmo tempo mais incertas. Em uma semana, terminará o longo desconsolo, durante o qual toda ação transformadora parecia impossível e sabíamos que o pior estava ainda por vir. As janelas para um futuro melhor estarão abertas novamente. Mas os que viveram o fim da ditadura pós-64 sabem que a sensação é distinta. Nossas certezas sobre o país e o mundo são mais frágeis. Os riscos políticos e ambientais, maiores. Há enorme alívio e discreta confiança – mas não euforia. Talvez isso nos valha.

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O que chamamos de presente, provoca Boaventura Santos num texto recente, “é apenas o momento de interface entre a memória do que fomos e a antecipação do que vamos ser”. Nossa Retrospectiva tem certa sintonia com este pensamento. No tênue intervalo de fim de ano, convidamos a ver, nos acontecimentos deste 2022 que termina, pistas para conhecer – e especialmente agir sobre – o que virá. O fulcro de nossa atenção, como de costume, é o Brasil. É uma satisfação notar que, após muitos anos de mera ação de resistência, surgem esforços para pensar a reconstrução do país, em novas bases. Parte dos textos que selecionamos expressa esta emergência. Ela se manifesta em torno de aspectos muito distintos da vida nacional: direito às cidades, resgate da Petrobrás e do Pré-Sal, educação, produção simbólica, ambiente, soberania digital, reforma tributária, renacionalização da Vale e tantos outros, que fizemos questão de acompanhar ao longo do ano.

Alguns deles são examinados de detalhes. Outras Palavras mantém, e aprimorou em 2022, um projeto complementar: o site Outra Saúde, que publica boletins diários com análises e atualizações sobre a luta em favor do SUS. Os melhores textos estão aqui. Mas também damos destaque especial, na Retrospectiva, à transição agroecológica e à construção de cidades para todos.

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Resgatar o Brasil será árduo e complexo. Um dos obstáculos é também tema de um dos capítulos da Retrospectiva: como encarar forças claramente antidemocráticas que agora apresentam-se com duas faces – uma ultraliberal, outra abertamente fascista. Ao longo do ano, o pensamento político deu passos importantes para decifrar este enigma. Um dos insights mais instigantes é o de Bifo Berardi. Segundo ele, temos hoje um “gerontofascismo” – agora incapaz de sustentar um projeto nacional (basta ver como Bolsonaro empenhou-se em destruir as estruturas do Estado), mas igualmente ameaçador para as lutas populares.

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A referência ao “gerontofascismo” remete ao cenário internacional. Em 1984, quando caiu a ditadura militar-empresarial no Brasil, dois grandes elementos o marcavam. De um lado, um “bloco socialista” que parecia sólido; de outro, “democracias ocidentais”. Estas empenhavam-se, é claro, em garantir as relações capitalistas; mas tinham compromisso com a preservação da democracia e das estruturas sociais necessárias à própria reprodução do sistema. Quatro décadas depois, o “socialismo real” dissolveu-se e o Ocidente está marcado pelo crescimento obsceno das desigualdades, pelo esvaziamento da política e pela incapacidade de enfrentar ameaças como as catástrofes climáticas e suas consequências sociais devastadoras.

Nossa Retrospectiva sugere textos para compreender os aspectos centrais desta conjuntura: crise do neoliberalismo e ameaça de novas tempestades financeiras; desgaste acelerado do eurocentrismo e do que se denominava “nova ordem internacional”; multiplicação das lutas decoloniais, em esfera global (vide a emergência da China) e no interior das sociedades (desgaste do patriarcado e do supremacismo branco); erosão do mundo do trabalho, porém com surgimento embrionário de novos sujeitos sociais antissistema; cegueira dos governos diante do colapso climático.

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Quais as alternativas? Desde que surgiu, há quase treze anos, Outras Palavras coloca-se o desafio de sondá-las. Nossos textos publicados em 2022, e destacados na Retrospectiva, apontam que a construção teórica e política de lógicas pós-capitalistas continuou avançando. O debate é muito mais rico que a dicotomia Revolução x Reforma, típica dos séculos passados. Aos poucos, ganham terreno propostas como a materialização do Comum em serviços públicos de excelência; a possibilidade de os Estados emitirem dinheiro para satisfazer necessidades sociais e corrigir desigualdades; a Virada Socioambiental (“Green New Deal”), que articula as lutas ecológicas com a agenda social. Também avançam reflexões como a de nossos colaboradores Eleutério Prado (que busca aproximações entre marxismo e psicanálise) ou Ladislau Dowbor (que enxerga o ocaso do capitalismo e se preocupa em disputar o que virá depois).

O capítulo da Retrospectiva dedicado ao debate acima articula-se com outro, sobre o Feminismo e seus novos enfrentamentos contra o patriarcado e o capital. Em tempos tão cheios de incertezas, é reconfortante constatar que parte de ativistas e teóricas feministas instigam reflexões cruciais sobre novas lógicas sociais.

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O pesadelo acabou e o caos permanece ao nosso lado. Será possível superar a crise civilizatória de modo positivo – ou seja, estabelecendo lógicas sociais que tenham em seu centro os valores da igualdade e de uma nova relação entre o ser humano e a natureza? Parece difícil – mas é impossível responder sem agir. Há quatro décadas, quando caiu a ditadura, seus opositores estavam provavelmente muito mais seguros do futuro do que nós, agora. Sua autoconfiança era ilusória, porém – como ficaria evidente em seguida. Em 2023, Outras Palavras quer continuar oferecendo informações incomuns e análises surpreendentes. É nossa forma de contribuir para que emerjam, das nossas dúvidas, novas formas de transformar o mundo. Cada vez mais efetivas e certeiras, mas sempre provisórias e prontas a despertar outras questões – porque aprendemos que a História nunca tem fim.


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