Daniel Vaz de Carvalho [*]
1 – Declínio social.
Os Estados Unidos da América estão em estado de declínio. Declínio social, económico e mesmo militar.
O desemprego real é de 11,15 milhões (mais 17,4% que em 2020), com 27 milhões de trabalhadores apenas com tempo parcial; a pobreza atinge 43,37 milhões de pessoas (mais 6,3% que em 2020). Nos EUA existem 23,3 milhões de milionários, cuja riqueza média é de 18,22 milhões de dólares; o rendimento anual dos 50% da base é de 36,4 mil dólares, embora a dívida pessoal por cidadão seja 75 142 dólares. [1]
A população dos “sem abrigo” aumentou 12% relativamente a 2022, atingindo cerca de 653 mil, mesmo sem discutir o que neste critério se inclui. Situação que afeta inclusivamente veteranos das Forças Armadas, tendo aumentado 7,4% em 2022.
Das escolas vem a preocupação com as crianças com fome. Uma preocupação crescente devido aos efeitos na capacidade de aprendizagem. Mais de 34 milhões de pessoas, incluindo 9 milhões de crianças, nos Estados Unidos sofrem de insegurança alimentar, de acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA, o que significa que não têm acesso a alimentos suficientes para que todas as pessoas da família sejam saudáveis. Estas crianças são mais propensas a ter dificuldades acadêmicas e a repetir níveis de escolaridade, entre outros problemas.
Estima-se que 105 752 pessoas morreram de excesso de drogas em 2021 destacando-se as causadas por opioides sintéticos, como o perigoso fentanil. Números que têm crescido todos os anos. Isto num país sem cuidados de saúde universais, sem regulação das empresas farmacêuticas que lucram com este sistema, indiferentes à situação das pessoas com menos posses enquanto a expectativa de vida cai.
O número de presos no EUA é o mais elevado no mundo, incluindo per capita desde há décadas. Nos EUA há 2,2 milhões de pessoas presas, 7 milhões em liberdade condicional, de longe o líder mundial em colocar o povo na cadeia, além das terríveis condições das prisões, 1 176 pessoas foram mortas pela polícia, em 2022, 8 972 desde 2015.
A “redução do papel do Estado – “tornar as pessoas responsáveis por si próprias” – do liberalismo, com ataques aos apoios à escola pública, têm tradução no endividamento dos estudantes dos EUA. A dívida estudantil atingiu 1,73 milhões de milhões de dólares (38,9 mil dólares por estudante). Valor que não poderá ser pago com os ordenados e precariedade vigente. As consequências mais evidentes são o recurso à prestação de serviços sexuais. Um site de encontros afirma que nos Estados Unidos há mais de 3 milhões de estudantes que se dedicam a serviços sexuais para pagar os elevadíssimos custos universitários. Seguindo os “bons princípios liberais” no RU o valor dos empréstimos estudantis pendentes em 2019 era de 121 mil milhões de libras, com o aumento da prestação de serviços sexuais.
A degradação social nos EUA toma aspetos trágicos no número de mortes por armas de fogo. Dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, mostraram que 48 830 pessoas morreram devido a ferimentos relacionados a nos EUA em 2021, o que significa que 50 pessoas são mortas cada dia por uma arma de fogo no país, incluindo o suicídio. Em 2021 houve 691 tiroteios em massa no país, só entre janeiro e 8 de maio de 2023 ouve 201 tiroteios em massa no país.
Tudo isto representa a tragédia social a que as políticas liberais conduzem, sob o lema das “reformas”, das “mudanças”, chavões cujo conteúdo permanece obscuro, embrulhado em lemas como a “liberdade de escolha” – para quem pode pagar – ou o absurdo de dizer “o dinheiro não é do Estado é das pessoas”, isto é, cada um por si conforme o que possua, não há social para além da caridade.
Como escreveu Cris Hedges, os EUA são uma sociedade em que as patologias da morte e do desespero, manifestam-se na dependência de opioides, jogo, suicídio, sadismo sexual, grupos de ódio e tiroteios em massa. O capitalismo é contrário à criação e sustentação de laços sociais. Seus atributos centrais são relações de transação e temporárias, priorizando o avanço pessoal por meio da manipulação e exploração de outros e da insaciável ânsia pelo lucro.
2 – O declínio econômico
O colapso econômico é outro dos aspetos das políticas liberais e do imperialismo que lhes está associado. Desde 2008, a dívida federal triplicou atingindo agora o inconcebível montante de 34 milhões de milhões de dólares (122,3% do PIB), contudo o PIB menos que duplicou. Incluindo as dívidas dos estados e locais o total sobe para 37,7 milhões de milhões (135,4% do PIB). São dívidas que obviamente nunca serão pagas, nem a banca tem grande interesse nisso, o seu negócio é criar dinheiro a partir do nada e do que lhes é cedido pelo FED e obter juros – o governo dos EUA paga mais de 1 milhão de milhões por ano.
Nesta situação em que o capital fictício prevalece sobre o produtivo, consequência da financeirização e desindustrialização, com um défice da BC de 1 milhão de milhões de dólares, verificam-se níveis elevados de inflação e estagnação económica. A austeridade sobre o proletariado, torna-se persistente como praticamente ocorre desde a crise de 2008. A inflação, embora não desejável pelo capital, é um dos aspetos da austeridade, mas o capital financeiro contorna esta situação com a subida dos juros, tornando mais difícil, mesmo em termos liberais, a ação social do governo e o investimento privado. Na procura do lucro máximo a curto prazo, o crédito é prioritariamente aplicado em atividades especulativas.
A situação complica-se com a desdolarização em curso. A participação do dólar nas reservas globais tem tido uma erosão gradual nas duas últimas décadas. Em 2022, o ritmo de erosão foi 10 vezes mais rápido devido a sanções cambiais contra a Rússia. A China, a Rússia, a própria Índia internacionalizam as suas moedas no comércio internacional. Os EUA estão a perder o estatuto do dólar como moeda de reserva, que lhes permitiu viver acima das suas possibilidades à custa do resto do mundo. O dólar representava cerca de dois terços do total das reservas globais em 2003, 55% em 2021; 47% no início de 2023. Países que detêm Títulos do Tesouro são os grandes perdedores, a começar pelos vassalos que financiam o império, sem hipóteses de recuperar o que investiram dada a desvalorização destes Títulos.
3 – Declínio militar
A suposta superioridade dos armamento dos EUA/NATO ficou desmascarada (e destruída no terreno) na Ucrânia. Mas o problema não para aqui, os EUA não têm defesa contra os Sarmat, Buresvestnik, Poseidon. Os seus porta-aviões não têm defesa contra os Kinzhal, Iskander. Mesmo na aviação os EUA falharam no desempenho dos F-35 furtivos ao radar, também superados pela capacidade de deteção russa e os Su-57, caça furtivo de quinta geração, supermanobrável, multifunções e avançados sistemas de aviónica.
A Rússia dispõe dos mais avançados mísseis como o Avangard (Mach 27) e sistemas de defesa anti míssil como o S-400 e o S-500 projetado para destruir misseis balísticos intercontinentais e de cruzeiro hipersónicos. Mesmo os S-300 soviéticos ditaram abaixo 70% dos misseis Patriot com que os EUA atacaram a Síria na altura do alegado uso de armas químicas.
Os países assumidos como inimigos principais do ocidente e das suas regras, como o Irã ou a RPDC, são agora adversários contra os quais é muito complicado avançar, devido ao seu potencial militar capaz de liquidar muitas instalações e interesses dos EUA e a estarem ligados por interesses estratégicos e militares com a Rússia e a China, país cuja capacidade industrial e tecnológica, dissuade qualquer agressão. Do vasto arsenal do Irã constam os mísseis Kheibar Shekan, velocidade máxima Mach 13; alcance 1 450 km, com capacidade na fase terminal para ultrapassar defesas.
Quanto a mísseis hipersónicos os EUA têm como protótipo, o HAWC, que no ensaio no início de 2023, lançado de um B-52 atingiu Mach 5 durante os testes, supondo-se que possa alcançar até Mach 25 na fase terminal. Em dezembro de 2022, o míssil ARRW, foi o primeiro projétil norte-americano a alcançar Mach 5. Esta situação mostra o atraso neste domínio dos EUA. A proliferação de bases militares tornou-se uma fragilidade estratégica, como se tem visto com os sucessivos ataques às suas bases no Iraque.
Bem podem recomendações do Congresso propor o desenvolvimento e a implementação de "defesas aéreas e antimísseis integradas ao território nacional, capazes de dissuadir e derrotar ataques da Rússia e da China, e determinar as capacidades necessárias para se manter à frente da ameaça norte-coreana". (?!) Tudo isto representa mais dívida e austeridade.
Para despesas militares em 2024 estão orçamentados 886 mil milhões de dólares, cerca de 40% do total mundial, três vezes as da China, dez vezes as da Rússia. É a diferença entre um sistema concebido para o lucro do complexo militar-industrial e um sistema de empresas do Estado.
As despesas originadas com as guerras desde 2001, ultrapassam os 9 milhões de milhões de dólares, tendo simplesmente alcançando ou derrotas (Síria, Afeganistão, Ucrânia), situações contingentes (Iraque) ou de caos como na Líbia.
Os números da pobreza e endividamento das famílias, mostram que a economia dos EUA tem como prioridade fazer armas, mesmo assim não muito avançadas face aos seus principais adversários. O dinheiro que vai para despesas militares, segurança interna e serviços ditos de inteligência, falta para as infraestruturas degradas, escolas, saúde. Os EUA, para alguns o país “mais avançado do mundo”, não dispõe de uma única linha ferroviária de alta velocidade, contra 45 000 km na China.
4 – Declínio geopolítico
O império não acabou, mas está em real declínio. As suas ações são agora basicamente para manter um periclitante domínio. Mas são de tal ordem que os seus esforços mais agravam a situação de retrocesso. Há como um estado de desespero, face à sua impotência para resolver a seu favor conflitos ou evitá-los. Os próprios propagandistas nos media televisivos não fazem mais que apresentar um conjunto desconexo de opiniões em contradição com as realidades, ante a total passividade dos apresentadores.
O império procura manter a tensão sobre os seus vassalos exacerbando as “ameaças” de potenciais inimigos que escapam à “ordem baseada nas (suas) regras”, impedindo processos diplomáticos de resolução de conflitos, como na Ucrânia em abril de 2022. Washington “declarou guerra" à China, à Rússia e a todos aqueles que se associam a esses países. Uma "guerra" global, diplomática, financeira, comercial, cultural, ideológica. Contudo é cada vez menos bem sucedida, as “revoluções coloridas” têm fracassado, na China, Rússia, América Latina (recentemente no Equador), Irão, Belgrado, etc. E custam dinheiro porque esses democratas do Guaidó (!) aos de Kiev saem caro: segundo os bons princípios liberais movem-se pelo interesse pessoal.
Mas pouco mais lhes resta em alternativa à guerra global, por isso “concentrar-se-ão na criação de um caos controlado, desestabilizando a situação em regiões-chave do planeta, colocando certos Estados “recalcitrantes” em conflito com outros, formando coligações operacionais e táticas sob seu controlo. Estados Unidos e aliados continuarão a exercer pressão direta e indireta sobre todos aqueles que não concordam em “entregar as suas almas” e “jurar fidelidade” aos valores do neoliberalismo”.
Uma fidelidade que está a ter elevados custos. Os países da UE tiveram de pagar cerca de 185 mil milhões de euros adicionais em gás natural nos últimos 20 meses, depois de terem cortado o acesso ao gás barato e fiável do gasoduto russo. (t.me/geopolitics_live/12834, Telegram, 02/01) A Alemanha – principal potência da UE está em recessão. A Rússia é economicamente o primeiro país da Europa.
A característica principal da geopolítica atual consiste no declínio dos Estados Unidos. A sua capacidade de liderar globalmente é contestada pelo Sul global. como o êxito do BRIC demonstra . O mundo árabe, um dos principais suportes do dólar, afastou-se do império. As pretensões da hegemonia globalista desmoronam-se. Os povos árabes descobrem que o império apenas tem trazido guerras, devastação e colocando os povos do Médio Oriente uns contra os outros, no final falhando todos os objetivos que alegadamente se propunha, desde “levar a democracia” às inconsequentes e ilusórias “Primaveras Árabes”.
Pepe Escobar menciona um livro do historiador e analista político francês, prof. Emmanuel Todd. A Derrota do Ocidente utilizando factos verificados contra “o edifício da russofobia”, expõe “a falsa consciência da sociedade ocidental” e a realidade “de uma forma que escapa totalmente às massas ocidentais que sofreram lavagem cerebral e permanecem sob o turbo-neoliberalismo”. Várias razões são apresentadas pelo autor para a derrota do ocidente: a Rússia resistiu às sanções ao mesmo tempo que reduzia as “noções dominantes da “economia política neoliberal” a um caos”. O ocidente exibiu “solidão ideológica e narcisismo”, “supremacia imperial expressa na obsessão pelas guerras eternas” e “o fim do Estado-nação”, enquanto a Rússia está “focada na soberania, [isto é], na capacidade de um Estado definir de forma independente as suas políticas internas e externas”. ( t.me/geopolitics_live/13966, Telegram, 18/01)
O fantasiado isolamento da Rússia, é outra expressão da “derrota do ocidente”. Este ano a Rússia assume a presidência dos BRICS, de que a Arábia Saudita, Irão, EAU, Egito e Etiópia também agora fazem parte, além de que mais de 30 países manifestaram interesse em estabelecer estreita cooperação com as nações BRICS. Ou seja, cada vez mais países, escolhem vias diferentes do mundo unipolar gerido por Washington. A grande maioria dos países ignora as sanções contra a Rússia, que só podem servir de gáudio para os demais. O mundo multipolar é já uma realidade só possível desfazer avançando para uma guerra contra nações com poder nuclear.
Em África, assiste-se a uma real descolonização, com a intenção de se assumir com pleno direito nas relações internacionais e não apenas um lugar para explorar recursos baratos. A República Centro-Africana, Mali, Níger, Chad, África do Sul, libertam-se do neocolonialismo estabelecendo relações preferenciais com a Rússia e a China. Na América Latina, desenvolvem-se relações multilaterais sem a participação dos EUA, como Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
Sob a égide da Rússia e/ou da China, desenvolve-se a Nova Rota da Seda, e novas relações à margem dos EUA como a Organização de Cooperação de Xangai, a OTSC da Rússia com os países da Ásia Central, a Comunidade Económica Eurasiática (CEEA).
O movimento multipolar não é uma revolução de cunho social e ainda menos socialista. Porém, o espaço do imperialismo reduz-se, os países ganham soberania, poderão no futuro fazer as suas próprias escolhas, sem serem dirigidos ou constrangidos por forças externas. É isto que deve ser valorizado.
Se tal pudesse ter-se verificado em Portugal, após a Revolução de Abril, sem interferências principalmente dos EUA e seu representante Frank Carlucci, mais tarde diretor da CIA, o país teria seguido a via traçada pelo 25 de ABRIL. Via que os próprios que a traíram diziam defender. (ver Quem são os amigos do povo)[1] Dados económicos e sociais dos EUA de acordo com U.S. National Debt Clock: Real Time exceto quando mencionado.
25/Janeiro/2024Este artigo encontra-se em resistir.info
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12