terça-feira, 30 de abril de 2024

O sino de Gaza


Casas danificadas no bairro de Zeitoun, em Gaza (Foto: Reuters/Hossam Azam)

"A compreensão da razão de Estado causa danos à Alemanha. Na superação da miséria israelense-palestina, a Alemanha deveria atuar como parceira", diz Wiedemann

Charlotte Wiedemann
brasil247.com/

(Publicado originalmente em Taz, Schlagloch. © do original alemão: Wiedemann 2024)

Está por ser publicada a tradução alemã da obra “A guerra de cem anos contra a Palestina”, na qual Rashid Khalidi, historiador palestino-estadunidense, testemunha dos nossos tempos e consultor político, narra a história da Palestina ao longo de uma dupla tragédia, da opressão bem como das estratégias falhas de libertação. Em que pese a sua posição eminentemente crítica diante das lideranças palestinas do passado e do presente, ele não deixa margem a dúvidas. Tudo deve ser reexaminado no banco de ensaios, necessitamos de uma nova visão da igualdade de dois povos.

Sob o manto negro do luto, o sino de Gaza, para tantas pessoas um dobre de finados, anuncia também um recomeço. Nada pode ficar como é e como foi. Isso vale para Israel, para a ocupação, para a esclerosada Autoridade Nacional Palestina, mas também para a Alemanha, para uma compreensão da noção de razão de Estado, que causa danos consideráveis ao nosso país, à nossa reputação internacional e às nossas possibilidades sociais. [Nota do tradutor: a autora alude a um discurso proferido em 18 de março de 2008 pela então chanceler Angela Merkel na Knesset, o parlamento israelense, no qual a mandatária afirmou textualmente: “Cada governo federal (alemão) e cada chanceler antes de mim tiveram um compromisso com a especial responsabilidade histórica da Alemanha pela segurança de Israel. Tal responsabilidade histórica da Alemanha é parte da razão de Estado do meu país".]

Está na hora de dizer isso com a devida clareza e mudar esse estado de coisas - também, e não em último lugar, para que a Alemanha possa ser um parceiro construtivo e justo na superação da catástrofe israelense-palestina.

O que aconteceu? A Alemanha acabou na ladeira escorregadia de um excepcionalismo mal-compreendido, na medida em que a responsabilidade pelo Holocausto e as obrigações extraordinárias dele resultantes foram reduzidas à uma profissão de fé em favor da realidade do Estado e da política de Israel, e na medida em que prescrevemos aos outros o que devem pensar sobre Israel, quando põem o pé em solo alemão.

O resultado disso é um clima abafado, um alheamento do mundo real, estranhamente triunfante na sua autossuficiência. Convidamos para desconvidar. E nos damos o direito de ofender, pois na condição de ex-maus somos os únicos verdadeiramente bons.

Diga-se de passagem que palestras, cátedras para professores visitantes e entregas de prêmios na maioria das vezes não são canceladas porque os responsáveis temem manifestações antissemitas em suas instituições, mas porque temem ser acusados de antissemitismo. Por isso lavam as mãos, às expensas de outros. A profissão de fé da culpa histórica alemã transformou-se em apólice de um seguro moral: ao denunciar outros, professamos a nossa pureza.

Sim, isso entristece - e entristece mais ainda diante do sofrimento real na Faixa de Gaza, que serve de bastidor a tais espetáculos. Parte deles é apenas ridícula, errática, mesquinha. Mas há neles também algo escuro, intrigante, pois com demasiada frequência a autoproclamada bondade machista pune judias de destaque.

A Alemanha se faz mais idiota do que deveria - No entanto, entrevejo também outro semblante da Alemanha. À semelhança da opinião majoritária, que não tardou em não compartilhar a posição do governo diante da guerra na Faixa de Gaza, a compreensão petrificada da razão de Estado é um fenômeno observável sobretudo nas elites políticas (bem como nos que dela gostariam de fazer parte).

Já nos memoriais, para mencionar apenas estes, as ideias e atitudes são diversas. Nas livrarias e bibliotecas deparamo-nos com uma rica bibliografia sobre Israel ou a Palestina; já nos foros públicos, com um corredor estreito de opiniões aceitas como legítimas. Rico e variado é o cenário das disciplinas científicas consagradas ao estudo do Oriente Próximo em nosso país, mas miseravelmente pequenas são as listas de especialistas, homens e mulheres, que nas nossas instituições passam de mão em mão. Por isso prefiro não falar de censura, mas de uma gestão autoritária da palavra falada no espaço público - e de uma auto-amputação mental.

Assim a Alemanha se faz mais idiota do que deveria, enquanto ao mesmo tempo aumenta a necessidade de orientar-se em meio à nova complexidade da situação. Um exemplo apenas: bem antes de 7 de outubro muitos alemães tinham dificuldade de apreender esse fenômeno nos planos cognitivo e ético, mas apesar disso a confusão e insegurança crescentes praticamente não viraram objeto de discussões e deliberações públicas. Quando oposicionistas israelenses falaram de fundamentalismo ou mesmo fascimo judaicos, os políticos alemães fizeram ouvidos moucos.

Utopias factíveis - Chegou a hora de perceber como nos EUA grandes minorias de jovens judeus e judias se distanciam da política israelense, qualificam sem meias palavras a situação na Cisjordânia como um regime de apartheid e se posicionam com radicalismo maior do que em qualquer época anterior do lado dos palestinos. Aos olhos de muitas pessoas, o conceito de “supremacia étnica”, que motivou a Universidade de Colônia a demitir a filósofa Nancy Fraser de uma cátedra de professora convidada, se presta à descrição crítica da realidade de um Estado judaico, que nega a igualdade aos não-judeus.

A Alemanha poderia ser o lugar procurado por todas as pessoas interessadas em debates abertos, criativos e construtivos.

Omri Boehm, detentor do prestigiado prêmio anual concedido pela administração municipal de Leipzig por ocasião da Feira do Livro de Leipzig em março de 2024, também postula a superação desse conceito de Estado. A iniciativa israelense-palestina mais interessante para uma solução binacional (“Um país para todos”) baseia-se no reconhecimento de que os dois povos nutrem um sentimento de pátria com relação à região “do Rio Jordão ao mar”. Por que não nos incluímos entre os que ativamente desenvolvem essa ideia?

Tudo poderia ser tão diferente. Décadas a fio, milhares de pessoas na Alemanha acumularam experiências sobre Israel ou a Palestina, possibilitadas por iniciativas de igrejas, ONGs ou pela atuação como observadores do cumprimento dos direitos humanos. Entre nós vivem 200 mil homens e mulheres palestinas e, segundo uma estimativa, 30 mil israelenses. Quantos recursos! E que grau espantoso de esbanjamento não é necessário para desperdiçá-los!

Em vez de chamar a atenção com um moralismo intolerante, a Alemanha poderia ser o lugar no qual todos confluem para participar de debates abertos, criativos e construtivos. A diplomacia efetivamente praticada diante de Israel e da Palestina, que inclui todas as pessoas afetadas, é uma utopia factível. E a compreensão de Israel, da Palestina e da Alemanha como um triângulo está à altura de uma responsabilidade histórica concebida sob o signo da inclusão.

E tem mais: A resistência a direitos iguais para todos é o elo de ligação entre o partido Alternativa para a Alemanha, os partidários de Donald Trump nos EUA e o sionismo radical em Israel. Quem quiser fazer parte dessa corrente deveria ter a coragem de dizê-lo. Faria então bem se não invocasse uma presumida lição do Holocausto.

Traduzido por Gotthold Ephraim Lessing

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