segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Brasil e México


MARCUS IANONI*

O que o Morena, AMLO e Claudia Scheinbaum têm que não podemos ter também?

1.

Comecei a escrever este artigo em julho último, mas deixei-o engavetado. Agora, com o (res)surgimento da discussão sobre a comunicação política do governo Lula, que enfrenta o aumento das pressões dos agentes do mercado financeiro contra a política fiscal, resolvi retomá-lo.

Em meados de 2024, José Dirceu publicou no site Congresso em Foco um artigo argumentando que o governo Lula precisava de foco e interlocução com a sociedade civil organizada. Quanto ao foco, ele delimitou três eixos para um programa de desenvolvimento (o Nova Industrial Brasil, o PAC e o Plano de Transformação Ecológica). Na área tributária, ele destacou a necessidade de concluir a reforma então em tramitação no Congresso (recentemente concluída), mas também a mudança das alíquotas do imposto de renda e a retomada da taxação de lucros e dividendos.

Além das políticas públicas, José Dirceu abordou a política de alianças, tema obviamente relacionado com a referida interlocução com a sociedade. Nesse sentido, ele destacou a retomada da coalizão com os partidos que apoiaram Lula nas eleições de 2022. No primeiro turno, foram nove: Psol, Rede, PSB, PCdoB, PV, Agir, Avante, Pros e Solidariedade, além do PT. Pela coalizão com os partidos, ele vislumbra organizar e mobilizar os seguintes setores sociais: trabalhadores, empresários, intelectuais e classes médias. Creio que devemos incluir nessa relação os pequenos produtores rurais, com terra e sem ela, o subproletariado, os trabalhadores de aplicativos, os excluídos dos mercados, enfim.

2.

Para uma perspectiva estratégica, um complemento importante é a comunicação política, estrutura de ação que opera na articulação entre o foco (programa) e a interlocução (aliança, coalizão). Destaco aqui a experiência recente do México, que vale a pena conhecer no esforço de construção de um projeto de transformação do Brasil.

O presidente Andrés Manuel Lopez Obrador (AMLO), um líder tão carismático quanto Lula, realizou uma comunicação impactante com a nação mexicana, com os eleitores, principalmente os trabalhadores e marginalizados, promovendo, sobretudo, as inéditas coletivas de imprensa matinais, as mañaneras, que revolucionaram a política naquele país. AMLO chamou seu projeto de Quarta Transformação, em referência às três reformas consagradas: a Independência do Império Espanhol, a Guerra de Reforma, que implicou mudanças laicistas e constitucionais e a Revolução Mexicana, que encerrou a ditadura do porfiriato.

Seu partido, o Morena, surgiu em 2011, sob a forma de movimento social. Em 2012, transformou-se em partido político, ano em que AMLO candidatou-se a presidente por essa nova legenda e ficou em segundo lugar. Mas ele venceu as eleições de 2018 e garantiu, nas eleições de 2024 (lá o mandato é de seis anos), a continuidade do projeto, com a vitória de Claudia Scheinbaum, que, empossada, manteve a prática das mañaneras. Ela obteve 60% dos votos, contra uma coalizão dos três principais partidos de oposição (PAN, PRI e PRD). O Morena tem maioria qualificada na Câmara e no Senado (nesse caso, apertada). Ademais, a maioria dos governadores é do partido. Esse desempenho político é altamente significativo.

A Quarta Transformação tem como modelo de governo o “Humanismo Mexicano”, que reúne princípios econômicos, políticos, sociais e morais. A prioridade são os pobres, embora almeje-se o bem de todos. Ou seja, o modelo de governo é redistributivista, visa estimular o progresso, mas equacionando-o com a justiça social.

Tal como ocorreu em várias experiências da primeira onda rosa latino-americana e novamente ocorre na região no atual contexto de nova guinada à centro-esquerda ou esquerda (Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai), as eleições de AMLO (já fora de mandato) e de Claudia Scheinbaum, empossada em outubro, têm estreita relação com a crise do capitalismo neoliberal, um modelo de acumulação que, aqui e acolá, produz e reproduz contradições e desencontros com a igualdade, com a democracia, com o crescimento e com o meio ambiente.

Desde o final dos anos 1990, mas, sobretudo, a partir da Grande Recessão (2007-2009), as crises deste capitalismo financeirizado não param de ocorrer, apresentando um conteúdo cada vez mais prejudicial ao bem-estar, ao regime da soberania popular e ao meio ambiente. No México, as reformas neoliberais produziram aumento da desigualdade e da violência, dois graves problemas nacionais.

Uma diferença em relação ao Brasil de Lula é que AMLO não hesita em entrar na disputa ideológica. Claro que Lula também faz essa disputa, mas, enfrentando um ambiente político em que os conservadores têm muita força no Congresso e em que a extrema-direita, os agentes do mercado financeiro e a grande mídia fincam os pés em um liberalismo econômico polarizador, o presidente do Brasil parece ter maior propensão à moderação, à reconciliação nacional.

Por outro lado, AMLO, líder do Morena, apostou na construção da legitimidade da oposição ao pensamento econômico único. Com certo exagero retórico, ele se coloca como anti-neoliberal e pós-neoliberal, ainda que seu governo tenha aprovado, em 2019, a Ley Federal de Austeridad Republicana e mantenha a autonomia do Banco de México. Na pandemia, por exemplo, a ampliação do gasto público foi uma das menores da América Latina, cerca de 0.7%.

Em todo o caso, a austeridade é perseguida pelo enfrentamento das oligarquias beneficiadas pelas reformas neoliberais, combatendo seus privilégios, começando pela área tributária. Ele revogou por decreto o perdão fiscal aos devedores, fez intenso combate à corrupção, aos altos salários, ao excesso de cargos públicos. Um dos resultados tem sido o expressivo aumento da arrecadação com impostos dos super-ricos.

3.

Vem à mente as dificuldades que Lula e Fernando Haddad têm para aumentar a arrecadação combatendo políticas controversas, como são muitas das desonerações tributárias, ou também a dificuldade governamental de efetivamente mudar os privilégios que, ao fim e ao cabo, como resultado do forte lobby empresarial, prosseguem sendo abrigados no CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que juga os contribuintes (empresas) com débitos bilionários com a Receita Federal.

No Brasil, o sonegômetro não é tema da agenda pública, apenas o impostômetro, tal como é ausente do debate a despesa com juros da dívida pública (a segunda maior, antecedida apenas pela Previdência Social). Foca-se apenas no gasto primário com saúde e educação públicas, BPC etc. O montante de recursos contestáveis a serviço do setor privado descaracteriza o caráter público do orçamento nacional.

Mais recentemente, temos assistido à reação das finanças contra o compromisso de Lula, apresentado no pacote fiscal de Fernando Haddad, de isentar do Imposto de Renda os cidadãos que ganham até cinco salários mínimos e de taxar os que ganham acima de R$ 50 mil, como, por exemplo, os que obtêm renda de uma jabuticaba tão doce para uns poucos, quanto tributária e socialmente injusta para muitos, qual seja, os dividendos isentos de taxação, implementados em 1995 pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

A austeridade republicana de AMLO visou cortar gastos e renúncias fiscais dos ricos, para alavancar a redistribuição aos pobres. Nesse sentido, ele ampliou muito, inclusive universalizou, um conjunto de políticas de transferências diretas de renda (idosos, deficientes, estudantes, jovens ingressantes no mercado de trabalho), entre outras medidas, como o estímulo ao microcrédito.

Ele é herdeiro do nacionalismo e do intervencionismo. Busca-se o crescimento e o combate à desigualdade mediante papéis mais ativos do Estado. AMLO deflagrou grandes projetos industriais e de infraestrutura, executados com a participação ativa dos militares, destacando-se o Trem Maya, com 1554 km, construído em 3 anos e meio e inaugurado em 2023, em uma das regiões mais pobres do país, além da Refinaria Dos Bocas, a cargo da Pemex (Petróleos Mexicanos), que retomou seu portfólio de investimentos após décadas de sucateamento, e do Aeroporto Internacional General Felipe Ángeles.

Desde 2019, o governo instituiu uma inédita política de valorização do salário mínimo, que já implicou em 110% de aumentos reais e retirou quase 6 milhões de pessoas da linha de pobreza. Criou o Banco del Bienestar, voltado ao atendimento e bancarização dos setores sociais mais vulneráveis etc.

4.

Há diferenças e semelhanças importantes na comparação entre Brasil e México, nessa ordem, as duas maiores economias da América Latina, países com profundas desigualdades sociais e regionais, presidencialistas, federações e multipartidarismo e, sobretudo, para o que aqui nos interessa, ambos estão sendo governados por presidentes de centro-esquerda. Não se trata de endeusar AMLO, um político que iniciou sua atuação no PRI, e nem Claudia Sheinbaum, mas de enfatizar que o lopezobradorismo e o Morena têm projeto, têm aliados nas classes populares e têm estratégia de manutenção e ampliação de apoio, destacando-se, além das políticas públicas governamentais, a estrutura de comunicação política a serviço do projeto de transformação nacional.

Por outro lado, o contexto de 2022, no qual Lula foi eleito, é muito diferente do de sua primeira eleição, 20 anos antes, em 2002. A crise do capitalismo neoliberal se aprofundou e induziu a respostas de extrema-direita (inclusive de veio neofascista) aos conflitos distributivos entre as classes sociais mundo afora, capitaneadas por líderes e organizações como Trump, Bolsonaro, Netanyahu, Meloni, Le Pen, Orbán, Alternative for Germany (AfD) etc.

Outra diferença chave é a reação ultraliberal em matéria de política fiscal que sucedeu os estímulos à economia dados pelos governos centrais durante a crise de 2008: a austeridade. O Brasil ainda se apega muito a essa visão. Um terceiro ponto crítico é a dificuldade de capacitação das organizações de esquerda, nos governos e fora deles, para se firmarem politicamente como agentes de transformação alternativo ao caos do capitalismo neoliberal. Quanto a isto, o caso mexicano parece ser uma exceção, ainda que não seja a panaceia, pois o MORENA busca brechas em meio à estrutura econômica antipopular hegemonizada pelas finanças.

Para derrotar Jair Bolsonaro, constituiu-se uma coalizão política e social que foi chamada de Frente ampla, em referência à coalizão homônima tentada contra o regime da ditadura militar, no governo Castelo Branco, reunindo, sobretudo, trabalhistas, pessedistas e udenistas, enfim, João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. Essa aliança foi importante para vencer o pleito.

Mas ela tem sido custosa, sobretudo para a implementação de um ambiente de política macroeconômica (áreas monetária, fiscal e cambial) pró-desenvolvimento com justiça social. Cabe à esquerda institucional e social combinar produção, distribuição de renda e sustentabilidade, enfim, conjugar uma gramática ou um programa social-desenvolvimentista. Porém, isso demanda construir outra aliança, tarefa tão difícil quanto necessária.

5.

Não posso me alongar. Houve vários avanços nestes dois anos, como mostram inúmeros indicadores econômicos e sociais (desemprego baixo, crescimento, retomada do Minha Casa Minha Vida e dos concursos públicos etc). Porém, a esquerda perdeu as eleições municipais para as forças de direita, a começar pelo extremista PL. Na grande mídia, nossas propostas de política econômica são bombardeadas etc.

Lula é um líder carismático e especialista em comunicação política. Um ponto distinto em relação a AMLO é que este, quando necessário, parte para um tipo de disputa mais acirrada, tendente ao conflito, que é um dos componentes da política democrática. A democracia institucionaliza o conflito, assim como possibilita a construção de consenso. No Congresso Nacional, por exemplo, vemos hoje nitidamente estas duas dimensões da política.

A grande disputa em curso no Brasil desde 2003, com exceção do quadriênio 2019-2022, é entre o neoliberalismo e o social-desenvolvimentismo. O primeiro tem mais poder estrutural, a ponto de inibir as possibilidades de expressão do segundo. A extrema direita brasileira é uma resposta política aguerrida contra as quatro vitórias eleitorais de presidentes petistas. Ao que tudo indica, se não fosse a prisão de Lula, Jair Bolsonaro não teria sido eleito em 2018. O fato é que a esquerda precisaria construir uma alternativa programática e uma base de apoio distintas da frente ampla, para expandir a capacidade de enfrentamento do poder estrutural do neoliberalismo.

Como dito, José Dirceu propôs uma coalizão abrangendo, além dos partidos acima mencionados, trabalhadores, empresários, intelectuais e classes médias. A transformação da estrutura econômica é necessária para a elevação da renda nacional e dos trabalhadores, do que resulta ser necessária a presença na coalizão do empresariado dos setores produtivos, que, sabe-se, tem historicamente no Brasil uma propensão liberal-desenvolvimentista, que é pouco nacional-desenvolvimentista e menos ainda social-desenvolvimentista.

Em determinados contextos, esse empresariado pouco nacionalista e desconfiado em relação à intervenção estatal na economia, pode admitir um programa bem moderado de reformas, como a redução dos juros básicos, certas políticas industriais, crédito subsidiado e de longo prazo, políticas focadas de transferência de renda etc. Nesse programa moderado, que, supostamente, seria compartilhado com setores não financistas do business, o campo progressista investiria na maximização das possibilidades de um programa produtivista e redistributiva que não fosse vetado pelo seu aliado.

Dado o limite político do empresariado de maior porte, creio que, na aliança proposta por José Dirceu, cabe detalhar e destacar, mirando para um horizonte estratégico dentro do capitalismo, a importância dos setores populares, os trabalhadores, o subproletariado das cidades e dos campos, o precariado em geral, empreendedores, trabalhadores de aplicativo, micros e pequenos empresários. A possibilidade de avançar em reformas mais estruturais depende da ampliação do caráter nacional e popular da coalizão.

Em comparação com o México do MORENA, AMLO e Claudia Scheinbaum, o PT, seus aliados e o governo Lula estão em desvantagem. Los compañeros de lá têm mais o que temos menos cá: um projeto ético-político, a Quarta Transformação, que se desdobra em programa de políticas públicas; têm também uma grande base popular e eleitoral aliada, que é gerada, nutrida e ampliada pelas decisões governamentais; e têm uma estrutura de comunicação política, ou seja, eles têm uma estratégia completa. Um componente-chave é a capacidade técnico-política das ações governamentais. As políticas públicas precisam ter efetividade, impacto.

Cabe destacar que o PT, PcdoB, PSOL, Rede, PV etc e os movimentos sociais são ferramentas essenciais para a estratégia. As propostas de José Dirceu desenham um foco. O fundamental seria não só definir esse foco, mas deixá-lo claro para a nação, para os eleitores, para as bases de apoio. Aí entra a comunicação política. Jair Bolsonaro, por exemplo, colocou em prática uma estrutura de comunicação política nas redes sociais, nas conversas no cercadinho nelas divulgadas etc.

Onde estamos e para onde queremos ir, quais são os desafios, as dificuldades, os aliados, os adversários, os objetivos e metas? Tudo isso precisa ser esclarecido cotidianamente para os eleitores. A transformação nacional requer a construção de uma legitimidade social-desenvolvimentista alternativa ao financismo que aprisiona as asas e o voo do país. Gilberto Carvalho tem evocado a necessidade do diálogo com as bases, com as periferias, com os evangélicos e de mais e melhor participação popular. A mudança na correlação de forças no Congresso Nacional e na sociedade civil precisa ser construída tijolo a tijolo. O que é que o Morena tem? Não podemos ter também? Feliz 2025!

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de Estado e coalizões no Brasil (2003-2016): social-desenvolvimentismo e neoliberalismo (Contraponto).[https://amzn.to/3xXtXe0



 

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