Notas sobre bolsonarismo, bombardeios econômicos, bombardeios semióticos

Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República (via Agência Brasil).

Por Felipe Brito

Em um panorama mundial, é lógica de guerra para tudo quanto é lado, literal e simbolicamente. No momento de redação deste texto, dentre vários outros conflitos armados que não entram na pauta das grandes empresas de mídia, ocorre uma limpeza étnica nos territórios palestinos; Israel e EUA bombardearam o Irã; a guerra na Ucrânia, entre Otan e Rússia, prolonga-se (e com uma escalada armamentista)… Além disso, modulações belicistas — ou verves disruptivas, seja lá o nome que se pretenda dar aos fenômenos — compõem uma superacumulação de conturbações, atordoamentos, solavancos, estrondos, choques sociais que sacodem a economia, a política, a cultura, o universo semiótico, as subjetivações, e cujos efeitos transbordam as capacidades psicofísicas de assimilação, processamento e elaboração de muitas pessoas. Entre essas conturbações, estão evidentemente as ameaças de bombardeios tarifários com que o presidente dos Estados Unidos buscou acossar o Brasil. O trumpismo perpetra uma lógica de guerra econômica para acuar o mundo e, sob os impactos desse acuamento, busca arrancar “renegociações” bilaterais e prolongar os intentos de primazia, tutela, dominação econômica e política. Empreende uma disrupção, “jogando para o alto o tabuleiro”, “chutando o balde” — “tabuleiro” e “balde” que os próprios EUA criaram e implementaram. “Coisa linda de se ver”, declarou Trump sobre os tarifaços. Rasgando e abdicando de qualquer véu ideológico “universalista”, ataca os resquícios da tal “globalização” econômica, abalada com a crise econômica de 2008, e atinge os tais organismos multilaterais (e demais instituições) erguidos, lá atrás, no bojo da reconstrução capitalista posterior à Segunda Guerra, sob a égide da hegemonia norte-americana. A ameaça de bombardeios tarifários contra o Brasil posicionou o radar nas abundantes reservas de minerais estratégicos, como Lítio e Nióbio, visando também atingir, de rebarba, Mercosul e China (além de “esfregar na cara” a proteção da extrema direita e das Big Techs). Tendo isso em vista, este texto propõe-se à redação de algumas notas sobre os nexos entre bombardeios econômicos, bombardeios semióticos e o bolsonarismo.

Falando em extrema direita e Big Techs, para os propósitos deste texto cabe, de início, destacar: os processos de formação de representações, ideias, símbolos, valores, identidades encontram-se suscetíveis, a todo instante, a bombardeios semióticos. A intensidade, virulência, ostensividade, velocidade, assim como a escala dos “estímulos” provocados por esses atravessamentos belicistas transbordam, muitas vezes, a capacidade psicofísica de assimilação, processamento, elaboração de muitas pessoas. Isso remete à problemática das fake news. É importante o empenho de inserir tal problemática nos marcos da “guerra” semiótica — a rigor, não exatamente uma “guerra”, posto que não há forças beligerantes em disputas, mas bombardeios semióticos desferidos, a todo instante, por um único lado.

Nesses termos, ocorre algum deslocamento da circunscrição convencional do debate no âmbito da categoria da “ideologia”. Quando tratamos das tais fake news, não estamos nos reportando, exata ou predominantemente, a um fenômeno ideológico. O móvel do estrago das fake news não reside, de modo prioritário, no conteúdo bombardeado. Decerto, tal conteúdo guarda alguma relevância. Entretanto, o eixo do dispositivo reside no bombardeio (ou seja, no vetor da virulência/ostensividade) que, de maneira cirúrgica, atinge o “alvo”, isto é, o perfil psicológico determinado pela captura incessante de dados via “extrativismo digital”. Atinge, assim, “aquela” pessoa “(pré)disposta” a “tomar como seu” o enunciado “bombardeado”; enunciado voltado a acionar “gatilhos” subjetivos responsáveis por disparar mecanismos psíquicos de defesa e correlatas afetações reativas (amalgamadas entre misturas de medo, ódio destrutivo e ressentimento). É relevante frisar que os bombardeios de fake news não provocam apenas mecanismos individualizados de defesa psíquica, mas também a formação de redes de vínculos entre pessoas — e não apenas nas bolhas algorítmicas. Assim, o empenho de análise do bolsonarismo nos remete a considerar e sublinhar o fator relacional, o estabelecimento de identidades coletivas que podem, inclusive, servir como veículos de investimentos militantes, conforme revela a militância bolsonarista, formada no escopo da (re)construção de um campo político de extrema direita no país.

Sobre essa questão, é relevante registrar a ocorrência, no final de maio de 2025, de um tal Segundo Seminário Nacional de Comunicação do Partido Liberal. A rigor, um evento direcionado à expansão, consolidação e adestramento de milícias digitais, mirando as eleições de 2026. Com o protagonismo da Meta (proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp) e do Google, contou com a participação de muitos influenciadores digitais. Junto da manutenção da primazia nas plataformas digitais, o campo bolsonarista pretende dominar o arsenal de recursos das Inteligências Artificiais. O jornalista Sérgio Sousa fez uma imersão no evento, sobre o qual redigiu um relato interessante. Um profissional do marketing político de Michelle Bolsonaro ressaltou que “os sinais falam mais que palavras”, dissertou sobre a utilização dos “sinais que remetem às ideias defendidas pela direita” e “sobre como trabalhar a impostação vocal e a postura dos candidatos”, partindo da premissa que “postura, voz e aparência transmitem autoridade, emoção e conexão”.

Tal premissa nos remete à centralidade da dimensão das afetações nos processos de subjetivação, considerados como circuitos complexos de agir-sentir-pensar (não necessariamente nessa ordem), e nas dinâmicas políticas, cujos mecanismos de interpelação e adesão vão muito além e aquém do convencimento pela via intelectiva. Demandas por conexões intersubjetivas e ambientais, por emoções (na esteira dessas buscas por conexões) e por “autoridade” (aqui, não no sentido autoritário, mas na acepção de suportes, referenciais, contornos) são constitutivas dos processos de subjetivação, de integrações corpo/mente (psique/soma), da formação de vínculos e, exatamente por isso, constituem materiais privilegiados das engenharias de propaganda/ marketing e das disputas políticas — no atual contexto, disputas sobretudo antipolíticas, em viés regressivamente tóxico. Mesmo diante de contextos marcados por exarcebações de individualismo e “ensimesmamento”, referências e demandas relacionais tendem a buscar alguma válvula de expressão (ainda que misantrópica, por mais paradoxal que possa ser; ainda que condicionada a uma inserção social a-social). Analisando, por exemplo, os tais “acampamentos patrióticos” que se sucederam à vitória eleitoral de Lula, a busca por “conexões”, “emoções” e “autoridade” (aqui, já em chaves autoritárias) estava lá, circundando cálculos golpistas e o planejamento de atentados terroristas (como, por exemplo, a tentativa de explosão de uma bomba em um caminhão de transporte de querosene, próximo ao Aeroporto de Brasília, em 24 de dezembro de 2022).

No plano de fundo sócio-histórico desses bombardeios e sua captura está a dependência cotidiana, na “viração” do dia a dia, dos apanágios tecnológicos das Big Techs — computação em nuvem, armazenamento de dados, plataformas digitais, inteligência artificial, e-comerce etc. Esses apanágios são instrumentos de mediação social (ainda que se trate de mediações sociais a-sociais, que ocorrem no âmbito de uma sociedade que é um maquinário de desintegração). Aliás, a presença dos CEOs das Big Techs na posse de Donald Trump delineou um evento muito ilustrativo da centralidade desses impérios empresariais no amálgama de monetarização, financeirização e digitalização que atravessa o quadrante histórico-social vigente do capitalismo. As Big Techs detêm superacumulação astronômica de dados, de capital na forma monetária, de arsenal de intromissão política, de dispositivos bélicos. O extrativismo de dados; a vigilância e o controle digitais reverberam em dispositivos de dominação geopolítica, econômica e de captura de subjetividades. Junto à formação de um universo econômico digital imensurável, o modo capitalista de produção atual é perpassado, transversalmente, por tecnologias digitais, convertidas, também, em armas políticas e em ferramentas tornadas imprescindíveis para as configurações bélicas praticadas nos dias de hoje — sobre isso, a propósito, os territórios palestinos serviram e servem como laboratórios estratégicos da invenção e aplicação de tecnologias digitais militares e paramilitares1.

Com efeito, no empenho de análise dos belicismos econômicos, é possível verificar propensões disruptivas no próprio modus operandi vigente do establishment financeiro, que desfere um arsenal de bombardeios econômicos para coagir o governo federal e impor uma camisa de força fiscal (ou reforçar os cintos da camisa de força já imposta), cuja meta principal reside, na verdade, na espoliação/expropriação de fundo e ativos públicos, recursos naturais e socioculturais — vetores da predominância capitalista de um “regime de acumulação por despossessão ou espoliação”2. Como exemplo, é possível citar a instrumentalização do câmbio como arma político-econômica, que se vale dos efeitos sociais disruptivos que uma turbulência cambial pode provocar. Diante do plano de fundo econômico e político global de superacumulação de capital na forma monetária, predominância de fluxos econômicos de procedência financeiro-especulativo-rentista, dolarização e volatilidade cambial, a turbulência cambial desencadeia, por exemplo, inflação do preço dos alimentos. No Brasil, frações majoritárias das mercadorias agrícolas são direcionadas ao mercado externo, produzidas em latifúndios com elevada mecanização e insumos importados (como agrotóxicos). Denominadas como commodities, tais mercadorias adquirem, ainda, a forma de ativos financeiros, negociados em Bolsas de Valores como a de Chicago (mais, especificamente, nos chamados “mercados futuros de commodities”). Assim, no modo vigente de produção, alimentos não são apenas mercadorias, mas também, em grande proporção, ativos financeiros. Grandes fundos de investimento e empresas financeiras, como BlackRock, Armajaro Tranding e Deutsche Bank, atuam pesadamente nos mercados futuros de commodities, aproveitando-se das desregulamentações de tipo neoliberal que também incidiram nessa seara financeiro-especulativa. A carga especulativa sobre esses ativos financeiros incrementa a volatilidade e o inflacionamento dos preços. No caso recente do Brasil, deve ser considerado ainda o desmanche do arcabouço de políticas sociais públicas voltadas ao enfrentamento da fome e insegurança alimentar desferido pela tecnologia de governança bolsonarista.

Aliás, a respeito da camisa de força fiscal e dos bombardeios econômicos, é ilustrativo um posicionamento (enfático) de um ex-presidente do Banco Central que, à sua época, na segunda metade da década de 1990, catapultou a taxa básica de juros a 45%. Encarnando a perspectiva de um Faria Limer militante, preconizou o congelamento do salário mínimo por seis anos como base de um (suposto) ajustamento de contas públicas. Por meio desse posicionamento, reverberou uma obsessão de elite no país: no âmbito da formação social brasileira, a expansão do salário mínimo e/ou elevação continuada do seu valor real foram detonadores de intervenções golpistas. Para citarmos dois casos emblemáticos, foi assim em 1964, em um contexto de valorização do salário mínimo e movimentações direcionadas a expandi-lo para as relações de trabalho no campo; foi assim em 2016, diante da política de valorização continuada implementada pelos governos federais petistas. Decerto, no “golpe por dentro da Constituição” de 20163, um dos alvos prioritários foi a política de valorização continuada do salário mínimo.

Prolongando as análises sobre bombardeios econômicos, cabe registrar que, no dia 18 de março de 2025, o governo federal protocolou no Congresso Nacional o Projeto de Lei que isenta do pagamento de Imposto de Renda pessoas com rendimento de até R$ 5 mil por mês (ou R$ 60 mil por ano) e assegura descontos àquelas com rendimento de até R$ 7 mil mensais. O alcance dessa isenção e desses descontos ultrapassa o universo de 90 milhões de pessoas. No caso específico da aludida isenção, irá abarcar o percentual de 65% daquelas que declaram IR no país. Em contrapartida distributiva, a camada social com rendimento maior que R$ 50 mil em lucros e dividendos de uma mesma empresa (ou mais que R$ 600 mil por ano), cerca de 0,2% da população brasileira, pagará uma alíquota de 10%. Brasil e Estônia são os únicos países do mundo que isentam lucros e dividendos de taxação de Imposto de Renda. Em dezembro de 2024, o ministro Fernando Haddad anunciou um pacote de ajuste fiscal. Mas, coetaneamente, sublinhou a importância da aprovação da supracitada isenção de IR que nem havia, ainda, sido protocolada como Projeto de Lei no Congresso Nacional. Foi o suficiente para a Faria Lima e seus asseclas, na esteira do viés internacional de alta do dólar (puxado pela eleição de Donald Trump), “tocarem o terror”, visando acuar o governo Lula e, ao mesmo tempo, ganhar ainda mais dinheiro. Mediante sinais do antigo presidente bolsonarista do Banco Central, promoveram um pesado ataque especulativo contra o Real. O binômio combinado dólar nas alturas/real depreciado é um dispositivo econômico-político disruptivo, direcionado a provocar turbulências econômicas e políticas no país e turbinar ganhos financeiro-especulativos.

Na enxurrada da superacumulação de capital monetário, em uma economia dolarizada e mundializada, paramentada por volatilidades cambiais, grandes fundos de investimento e grandes empresas financeiras praticam o chamado carry trade — em outras palavras, buscam dinheiro a custo quase zerado, em países como Japão, por exemplo, e aplicam/investem, por aqui, em ativos financeiros, atraídos pela taxa básica de juros exorbitante definida pelo Banco Central. O jornalista Luis Nassif verificou que, em dezembro de 2024, a tal “taxa de carry” no Brasil estava menor do que a de países como México e África do Sul — dentre outros fatores, exatamente por causa do binômio combinado dólar nas alturas/real depreciado. Houve uma considerável saída de capital monetário do Brasil. Como resposta, um bombardeio especulativo cambial que “empurrou para as cordas” o Banco Central (sob nova presidência) e arrancou mais aumento da taxa básica de juros, a chamada taxa Selic. Com a taxa Selic ainda mais alta, provoca-se elevação da relação dívida pública/PIB, além de mais pressão para empurrar o governo federal na alça de mira do ajuste fiscal. Concomitantemente, os grandes acumuladores de títulos da dívida pública majoram os ganhos financeiro-rentistas decorrentes dos juros embutidos nesses títulos, indexados, na maioria, à taxa Selic. Segundo consta, o referido bombardeio especulativo cambial de dezembro de 2024 ocorreu sob os auspícios do Banco Central presidido pelo bolsonarista e Faria Limer Campos Neto, o que favoreceu a precipitação de sucessivos aumentos da taxa Selic. Atualmente, o Banco Central, sob a presidência de Gabriel Galípolo, encara um nó difícil de desatar, levando em conta o terreno pedregoso legado e o plano de fundo internacional (já citado) de superacumulação de capital monetário, predominância de ganhos econômicos sob forma financeiro-especulativo-rentista, supremacia do dólar, volatilidades cambiais. Para reter dólares no país e segurar a disparada da taxa de câmbio, a taxa básica de juros definida pelo Banco Central é manuseada como instrumento para gerir a rentabilidade do tal carry trade.

A chegada ao Poder Executivo federal, em 2018, ensejou a formação de uma tecnologia bolsonarista de governança que catalisou o atrelamento do país à primazia dos ganhos econômicos rentistas/financeiro-especulativos e à pilhagem de fundo e ativos públicos, recursos naturais e socioculturais. Junto a isso, em sintonia com a maioria da elite empresarial brasileira, essa tecnologia de governança carrega uma abdicação (ativa e ostensiva) de qualquer esboço de (re)elaboração/atualização de um projeto nacional de desenvolvimento econômico, sobretudo se esse projeto perseguir a ativação de mecanismos de distribuição direta de renda/riqueza, a inclusão, com profundidade, dos pobres no orçamento público e a participação popular como vetor de governabilidade. Essa tecnologia de governança também carrega renitências golpistas, que encontram ecos no poder econômico do país. Logo, é possível enxergar uma confluência de cargas disruptivas entre bolsonarismo e elite empresarial, que perfazem uma teia de conturbações, atordoamentos, estrondos, choques sociais, atreladas às metas de espoliação/expropriação.

Bombardeios econômicos e semióticos, quando desferidos em uma formação social historicamente já saturada de truculência/violência, em contextos cotidianamente atravessados pela desintegração econômica, segregação socioespacial, desvalia institucional e negligências afetivas, favorecem a adesão ou, pelo menos, algum tipo de identificação com a extrema direita; no caso brasileiro, o bolsonarismo. Por estarem inseridas em uma sociedade onde tudo adquire a forma de mercadoria, as pessoas, em geral, precisam acessar dinheiro. Demarcando um retrato significativo de periferias urbanas no Brasil, milhões dessas pessoas precisam se adestrar para enfrentar os desafios e dificuldades dos “corres” diários de obtenção de uma bagatela de dinheiro que não provém de salário, mas de rendimentos não salariais, obtidos sem direitos trabalhistas, previdenciários, sem respaldo sindical — e nos quais, no caso dos motoristas e motociclistas de aplicativos, por exemplo, todos os custos recaem nos próprios ombros dos trabalhadores —, sendo as partilhas de vivências (no e pelo trabalho) ínfimas ou inexistentes. Nesses termos, o “cada um por si” não é apenas um valor individualista, é uma base objetiva. Não é exagero considerar que esses sujeitos, de fato, atuam assujeitados a uma base objetiva do “cada um por si”. Essas atuações, a partir de uma base objetiva do “cada um por si”, requerem elevadas doses de adestramento, são muito perpassadas pelo registro do adestramento e favorecem, assim, formas hiperindividualistas, “ensimesmadas” de agir-sentir-pensar, que atiçam tendências reativas/constritivas/arredias/acuadas de comportamento, alavancadas por ligações subjacentes entre chaves afetivas de medo/insegurança, ódio (destrutivo), ressentimento.

No agenciamento de bases objetivas e subjetivas, muitos trabalhadores, de alguma maneira, sentem e interpretam a sociedade como a “selvageria” do “cada um por si e todos contra todos”. E, aí, o bolsonarismo incide, fornecendo referenciais, representações, imagens, ideias, valores, mas não só isso: vínculos, conexões a essas milhões de pessoas que, de alguma maneira, sentem e interpretam a sociedade como a “selvageria” do “cada um por si e todos contra todos”. É assustador, mas, diante desses parâmetros, o bolsonarismo parece se encontrar “mais à mão” , ser mais “acessível” e “funcional” àqueles que, nessas condições objetivas e subjetivas, fomentam uma relação de desconfiança, indiferença ou ressentimento perante propostas, projetos de inclusão e reparação social, mediadas por direitos e políticas sociais públicas — até porque, de fato, tais propostas e projetos consistem em contratendências à tendência de contrarreformas de cunho neoliberal no quadrante histórico de predominância do “regime de acumulação por despossessão ou espoliação” e de fluxos econômicos financeiro-especulativo-rentistas (com todas as suas refrações políticas, culturais, semióticas). Assim, muito mais do que ideologia, o bolsonarismo serve mesmo como um manual de adestramento — tomado e sentido, em alguns casos, como componente de uma espécie de “manual de sobrevivência” na selvageria do cada um por si e todos contra todos.

Conforme já registrado, belicismos econômicos e semióticos expressam-se em uma superacumulação de conturbações, atordoamentos, solavancos, estrondos, choques sociais. Sujeitos assujeitados a essa superacumulação, enquadrados nos contextos supracitados, ficam suscetíveis a ingressar em perspectivas subjetivas defensivas contra eventos, processos, interpelações, informações, representações que, pela virulência e ostensividade, transbordam dos recursos psicofísicos de assimilação e elaboração. Isso tende a amplificar as “blindagens” individualistas, e os subjacentes nexos entre afetações de medo/insegurança, ódio (destrutivo) e ressentimento, galvanizando o campo magnético das interpelações bolsonaristas. O caráter defensivo dessas “blindagens” individualistas (que não dizem respeito, exclusivamente, a direcionamentos individuais/subjetivos, mas a agenciamentos entre objetividade social, contextos ambientais e subjetivação) podem, inclusive, desembocar em uma espécie de posicionamento cindido, seccionado, que faz desvanecer do horizonte de vida postulações de inserção na sociedade mediada por direitos sociais, regulações trabalhistas, políticas sociais públicas de reparação social (como cotas) etc.

Nesse sentido, é muito ilustrativa uma situação narrada por Guilherme Boulos4. No contexto da eleição municipal de São Paulo de 2024, muitas pesquisas qualitativas foram realizadas para subsidiar a condução da campanha. Em uma dessas pesquisas, eleitores de uma área da periferia de São Paulo reconheceram na candidatura e no próprio então candidato, Boulos, o comprometimento com as pessoas mais pobres. Entretanto, esses eleitores não se enxergavam na condição de pobreza. Buscando um “outro” tipo de demarcação socioeconômica, como “empreendedor”, esses eleitores ouvidos atribuíam a condição de pobreza aos “outros” — por exemplo, os “outros” que dependem do Bolsa Família. Revestindo-se como agregado político, econômico, cultural e afetivo, o bolsonarismo continua fornecendo referenciais, balizamentos, representações e mais: canais de vínculo e de formação de identidades coletivas (que alcançam subjetivações soldadas pelo hiperindividualismo), além de canais de investimento militante a uma fração que, mesmo minoritária no universo bolsonarista, continua numerosa e impactante se considerarmos o escopo das militâncias políticas no país.

Reportando-se ao ilustrativo retrato social da massa não assalariada e pós-assalariada de trabalhadores e trabalhadoras, não são apenas os custos econômicos que são externalizados sobre os ombros dessas pessoas, mas também os custos subjetivos, os perrengues, as angústias, os sofrimentos. Como bem disse o presidente Lula, renda, escolaridade, gênero, raça, local de nascimento são determinantes de quem adoece e quem morre. A propósito, um fator significativo da vitória eleitoral de Lula, em 2022, foi a adesão majoritária do eleitorado feminino. Análises e levantamentos empíricos variados indicam que essa adesão decorreu (e decorre), dentre vários fatores, de experiências com as políticas sociais públicas, visto que a implementação dessas políticas é consideravelmente direcionada às mulheres.

Por mais que se adestrem à “viração” cotidiana na selvageria do cada um por si e todos contra todos, por mais “ensimesmamentos” defensivos que se tornem, por mais “blindagens” hiperindividualistas que se interponham, as necessidades de cuidado das pessoas não são dissolvidas por completo, tampouco as demandas por conexões, vínculos, reconhecimento e identidades coletivas. Isso também constitui material político. Políticas sociais públicas, equipamentos públicos, especialmente quando movidos pelo vetor do engajamento, podem engendrar vias de acesso e mobilização desse material. Mas, todo esse universo de agenciamentos objetivos e subjetivos é atravessado por disputas econômicas, políticas, culturais e afetivas.

Vale registrar e destacar, a título ilustrativo, que as experiências nas Cozinhas Solidárias formadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a configuração desses espaços como políticas sociais públicas fornecem relevantes sinalizações para atuar nessas disputas.

Notas

  1. Sobre esse arco temático tratado neste e nos parágrafos anteriores, vale a interação com os seguintes materiais, dentre outros: Faustino, Deivison & Lippold, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023. Ferreira, Wilson. Lula precisa criar gabinete de inteligência semiótica, diz especialista. YouTube. 14 de janeiro de 2025. Disponível aqui. Acesso em 21 de julho de 2025. Amadeu, Sérgio. Big Techs, Inteligência de Defesa e Guerra. YouTube. 1 de julho de 2024. Disponível aqui. Acesso em 21 de julho de 2025. ↩︎
  2. HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004. ↩︎
  3. SINGER, André. Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2010-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018. ↩︎
  4. Boulos, Guilherme. Pra onde vai a esquerda? São Paulo: Contracorrente, 2025. ↩︎

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Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras. Pela Boitempo, organizou, com Pedro Rocha de Oliveira, o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013). Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira), que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.


Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira
Análise sobre a militarização das favelas cariocas, revelando as UPPs como ocupações armadas e revelando a complexidade da gestão do colapso social. A coletânea destaca a relação entre militarização e vida cotidiana, desmistificando a suposta eficácia das políticas de ocupação permanente.




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