
A natureza suicida do tiro
rabkor.ru/
Na teoria psicanalítica de Jacques Lacan, o sujeito se forma por meio de encontros sucessivos com as ordens Real, Imaginário e Simbólica. A adolescência é um período particularmente desafiador, em que os jovens precisam se reinventar no mundo social, em meio a regras, leis e relações com os outros. Esse processo é sempre doloroso, mas às vezes se torna tão insuportável que leva a consequências trágicas — como tiroteios em escolas. Tiroteios são mais do que meros atos de agressão. São a manifestação extrema de uma profunda desconexão entre o mundo interior do adolescente e o mundo social exterior, no qual ele se vê incapaz de encontrar seu lugar.
A adolescência pode ser vista como o "segundo nascimento" de uma pessoa. O primeiro ocorre na primeira infância, quando a criança começa a falar e aprende as regras mais básicas de comportamento. O segundo nascimento ocorre na adolescência, quando a pessoa deve realmente entrar no mundo social adulto, com todas as suas complexidades, contradições e crueldade. Lacan disse: "O simbólico não estrutura simplesmente a realidade — ele é a realidade". Para um adolescente, essa realidade social muitas vezes se torna um teste difícil. Ele deve determinar seu lugar entre seus pares, compreender sua sexualidade e construir sua identidade — tudo sob a constante observação e julgamento dos outros.
Durante esse período, a necessidade de reconhecimento dos outros torna-se especialmente forte. O adolescente deseja ser notado, ouvido e aceito. Como disse Lacan, "O desejo do homem é o desejo do Outro". O adolescente não quer simplesmente ser aceito — ele quer que os outros reconheçam sua singularidade, suas qualidades especiais e suas aspirações. No entanto, o reconhecimento completo no mundo social é impossível. Sempre permanece alguma lacuna, alguma insatisfação. Lacan chamou isso de "objeto a" — aquele "algo" ilusório que sempre escapa e nunca pode ser plenamente alcançado. Para o adolescente, esse sentimento de falta constante, a incapacidade de se encaixar plenamente no mundo social, pode ser vivenciado como profunda injustiça e trauma.
Adentrar o Simbólico é sempre um processo violento. O adolescente se depara com a necessidade de renunciar às fantasias narcisistas de onipotência, aceitar a Lei e lidar com as limitações. Lacan descreve esse processo como castração simbólica — a perda da plenitude imaginada do ser. Esse processo se torna especialmente traumático na sociedade moderna, onde a ordem Simbólica perdeu sua estabilidade. "O grande Outro não existe", diz Lacan, apontando que as normas e regras sociais carecem de qualquer garantia transcendental de sua verdade. O adolescente sente intuitivamente esse vazio, essa inconsistência da ordem Simbólica, e isso intensifica sua confusão e alienação.
A violência que um adolescente vivencia é variada:
- A violência da nomeação é a necessidade de se definir por meio de rótulos e categorias (inteligente/estúpido, bonito/feio, popular/pária).
- A violência da normalização é a pressão para se conformar às expectativas sociais que muitas vezes são contraditórias e impossíveis de cumprir.
- A violência da exclusão é o encontro com o que Lacan chama de “Real” – o reino da experiência traumática que não pode ser simbolizado.
A escola moderna, apesar de sua missão declarada de socialização, frequentemente se torna um lugar onde essa violência se manifesta em sua forma mais concentrada. Nela, os adolescentes se deparam com uma hierarquia rígida, regras opacas do jogo social e avaliações e comparações constantes.
Quando a entrada no Simbólico se mostra muito traumática, surge o fenômeno da alienação. O adolescente se sente alienado em um mundo que não o aceita, não reconhece seus desejos e não lhe dá um lugar. Essa alienação se manifesta em vários níveis:
- Alienação do próprio corpo - o corpo é vivenciado como estranho, incontrolável e muitas vezes causando vergonha.
- Alienação dos outros é a incapacidade de estabelecer conexões genuínas com outras pessoas, um sentimento de incompreensão fundamental.
- A alienação de si mesmo é uma divisão entre quem um adolescente deveria ser para o Outro e quem ele sente que “realmente é”.
A vergonha torna-se o afeto dominante nessa situação. Mas não se trata de uma vergonha comum por um ato específico — é o que poderíamos chamar de "vergonha ontológica", vergonha pela própria existência. Como escreveu Lacan, "a vergonha é o afeto que surge quando o sujeito ocupa o lugar de objeto do olhar do Outro". O adolescente se sente constantemente vigiado, julgado, e esse olhar do Outro é insuportável. Essa vergonha se torna especialmente aguda quando o adolescente percebe uma lacuna entre a forma como é representado no Simbólico (seus papéis sociais, status) e sua experiência interna de si mesmo. Lacan descreve essa lacuna com a fórmula: "Não estou onde penso, e não penso onde estou".
Quando um adolescente se sente rejeitado, não consegue encontrar seu lugar na sociedade e sua necessidade de reconhecimento permanece insatisfeita, isso inevitavelmente leva à agressão. Essa agressão pode ser direcionada tanto a si mesmo quanto ao mundo ao seu redor. Lacan associa essa agressão ao que chamou de "narcisismo" — a relação de uma pessoa com sua própria imagem. Mesmo na primeira infância, durante o chamado "estágio do espelho", a criança se reconhece no espelho pela primeira vez. Ela vê uma imagem completa ali, embora ainda não tenha controle total sobre seu corpo. Esse momento é crucial: a criança simultaneamente se identifica com essa imagem ("este sou eu") e sente uma lacuna entre a imagem e seus sentimentos reais ("mas eu não sou tão perfeito"). Na adolescência, essa situação se repete em um novo nível. O adolescente se compara constantemente a uma imagem ideal — o que "deveria" ser de acordo com as expectativas da sociedade, da família, dos colegas ou de suas próprias ideias. A lacuna entre esse ideal e a realidade torna-se a fonte de uma profunda agressão interna. Essa agressão pode se manifestar de duas maneiras principais:
- Direcionado para dentro - quando um adolescente começa a se odiar, a se autodepreciar, a se automutilar ou até mesmo a pensar em suicídio.
- Direcionada para fora – quando a agressão é direcionada a outros: colegas, professores, pais ou até mesmo à sociedade como um todo.
É importante entender que esses dois tipos de agressão frequentemente coexistem e se reforçam mutuamente. Um adolescente que odeia a si mesmo frequentemente começa a odiar os outros; por outro lado, a agressão ao mundo exterior costuma ser acompanhada por profundo conflito interno e autonegação. Isso cria um ciclo vicioso perigoso, em que o ódio a si mesmo e o ódio ao mundo se alimentam constantemente.
Quando o ódio é dirigido principalmente a si mesmo, ocorre uma cisão patológica do sujeito. Lacan descreve o sujeito como fundamentalmente dividido (sujet divisé), mas, no caso do atirador em potencial, essa cisão assume formas extremas. O adolescente começa a se experimentar como duas pessoas diferentes:
- O sujeito da vontade é onipotente, cruel e punitivo. É o que Lacan chama de "pai imaginário" — uma figura de poder ilimitado, não sujeita à lei simbólica.
- O objeto de desprezo é patético, insignificante, merecedor de destruição. É um objeto e, em seu aspecto negativo, algo que deve ser descartado para que o sujeito possa manter sua integridade.
Essa dinâmica é claramente evidente nos diários e manifestos dos atiradores escolares. Por exemplo, Dylan Klebold, um dos atiradores da Escola Secundária de Columbine, escreveu em seu diário sobre si mesmo alternadamente como um "deus" com o direito de decidir quem vive e quem morre, e como um "ninguém" indigno de amor e reconhecimento. Eric Harris, seu cúmplice, oscilava entre fantasias grandiosas de sua própria superioridade e descrições autodepreciativas de sua inadequação social.
Essa divisão cria uma dinâmica suicida: a parte da personalidade que se identifica com o "estuprador" busca destruir a parte "patética". Mas, como essas partes são inseparáveis, a única conclusão lógica é a autodestruição.
Chegamos aqui à tese central: tiroteios em escolas, em sua estrutura psicológica, são principalmente um ato suicida. Mas este é um tipo especial de suicídio — demonstrativo, que visa não apenas à autodestruição, mas também a uma demanda final e desesperada por reconhecimento. O atirador em escolas combina duas motivações fundamentais:
- Destrua a si mesmo - a parte insuportável, vergonhosa e alienada da sua personalidade.
- Declarar a própria existência ao mundo é alcançar reconhecimento, mesmo por meio da violência e da morte.
Isso corresponde à compreensão de Lacan do suicídio como um ato dirigido ao Outro. "O único ato bem-sucedido é o suicídio", diz Lacan, querendo dizer que somente no suicídio o sujeito pode se alinhar plenamente com seu desejo e superar sua cisão.
Seung-Hee Cho (Instituto Politécnico da Virgínia, 2007)
Cho era um aluno extremamente retraído, diagnosticado com mutismo seletivo. Seu isolamento social era tão profundo que ele mal falava. Em seu manifesto, gravado em vídeo antes do ataque, ele se posicionou tanto como vítima ("Você me encurralou") quanto como vingador ("Você me deixou apenas uma saída"). É particularmente revelador que, antes do ataque, Cho tenha enviado seu "manifesto" — gravações em vídeo, fotografias e texto — à NBC News. Trata-se de uma clara demanda por reconhecimento, uma tentativa de ser ouvido, mesmo postumamente. O próprio ato de violência foi uma forma de ele superar seu mutismo, de finalmente "falar" em uma linguagem que a sociedade não podia ignorar.
Adam Lanza (Escola Primária Sandy Hook, 2012)
Lanza sofria de ansiedade social grave e transtorno obsessivo-compulsivo. Ele era tão retraído que bloqueava as janelas do quarto e se comunicava com a mãe apenas por e-mail, embora morassem no mesmo prédio. Antes do ataque à escola, Lanza matou a mãe, o que pode ser interpretado como uma tentativa de romper a conexão primordial com o Outro, de destruir sua fonte no Simbólico. A escolha de crianças pequenas como vítimas também é simbólica — um ataque ao início da socialização, o ponto de entrada no Simbólico. Após o massacre, Lanza cometeu suicídio, confirmando a natureza suicida de seu ato. Seu ataque pode ser visto como uma tentativa de destruir não apenas a si mesmo, mas também o próprio Simbólico em sua fonte.
Vladislav Roslyakov (Faculdade Politécnica de Kerch, 2018)
Roslyakov cresceu em uma família monoparental, onde sua mãe trabalhava como enfermeira em uma clínica de oncologia. Seu status social era marginal e ele era intimidado por colegas mais ricos. Notavelmente, Roslyakov imitou meticulosamente a parafernália de Columbine — vestia-se de forma idêntica a Eric Harris e usava uma arma semelhante. Isso sugere uma identificação com a figura simbólica do "atirador escolar", que já havia se tornado parte da cultura popular. Por meio dessa identificação, ele tentou transcender seu anonimato e se tornar "alguém". Após matar 20 pessoas, Roslyakov cometeu suicídio na biblioteca de sua faculdade — um lugar simbólico de conhecimento e cultura. Seu ato final pode ser interpretado como uma ruptura definitiva com a ordem simbólica, que não o havia acomodado.
Se o tiro é um sintoma de alienação fundamental, a única maneira de preveni-lo é ajudar os adolescentes a superar essa alienação e a encontrar seu lugar no Simbólico sem sacrificar sua subjetividade. Lacan enfatiza que o sujeito é sempre formado por meio de relações com o Outro. Portanto, a superação da alienação só é possível por meio do estabelecimento de conexões genuínas — não formais, não instrumentais, mas que reconheçam o desejo do sujeito. Isso requer uma revisão radical de nossas instituições educacionais e sociais:
- Criando espaços para a subjetividade — lugares onde os adolescentes podem se expressar, expressar seus desejos, sua singularidade, sem serem imediatamente julgados e categorizados.
- Reconhecer a natureza traumática da socialização significa rejeitar a ideia ingênua de integração “indolor” na sociedade, entendendo que todo adolescente vivencia um conflito fundamental entre seus desejos e as exigências do Simbólico.
- A atenção aos sintomas de alienação é a capacidade de reconhecer sinais precoces de cisão patológica sem patologizar o próprio adolescente.
- A criação de novas formas de coletividade — não baseadas em competição e hierarquia, mas permitindo que todos encontrem seu lugar, mantendo sua singularidade.
Como disse Lacan, "Amar é dar o que você não tem a alguém que não precisa". No contexto do nosso tópico, isso pode ser reformulado da seguinte forma: ajudar um adolescente a superar a alienação significa dar a ele o reconhecimento que nos falta (já que também somos sujeitos divididos), sem exigir que ele se conforme às nossas expectativas.

Comentários
Postar um comentário
12