Gaza e a quimera dos dois Estados


Por EMILIO CAFASSI*

Mais do que um conflito territorial, a tragédia de Gaza expõe a inversão grotesca do projeto iluminista, onde um Estado teocrático e expansionista esvazia de sentido as promessas universais de razão, direito e fraternidade

O tambor funerário de Nova York

No momento em que estas linhas vão para publicação, a Assembleia Geral da ONU em Nova York bate ao som de um tambor fúnebre: o genocídio israelense contra o povo palestino ressoa como um eco através dos muros diplomáticos, expondo o horror sistemático em Gaza, nos territórios ocupados e em cada canto que seus mísseis escolhem atingir.

Uma parcela significativa da comunidade internacional se refere à tragédia e insiste na ficção de “dois Estados” como a única solução possível: França, Reino Unido, Canadá e outros reconheceram recentemente o Estado palestino, juntando-se a ele com declarações que pedem medidas, pelo menos formais, em direção a um Estado digno, há tanto tempo adiado.

A gravidade deste momento é abismal: não se trata de um conflito regional, mas de uma ruptura diplomática, humanitária e, sobretudo, moral. Se a comunidade global permitir que o genocídio continue – um crime que apenas um punhado de cúmplices ou indivíduos covardes disfarçados de diplomatas se recusam a nomear –, corre-se o risco de naturalizar violações tão monstruosas que minarão para sempre os frágeis fundamentos da justiça, da igualdade e do direito internacional.

E, aliás, como membro independente da Frente Ampla, não posso deixar de me sentir envergonhado pelo discurso de Yamandú Orsi: sua evasão ao termo genocídio torna-se absurda, mesmo para o ritmo cansativo da diplomacia, que não consegue mais esconder o inocultável.

É louvável que mais de cem países tenham reconhecido o Estado palestino nos últimos meses, diante do genocídio em curso. Mas tal reconhecimento é tão paradoxal como se, em meio à campanha genocida no deserto argentino liderada pelo General Roca, um Estado tehuelche ou mapuche tivesse sido proclamado em meio aos escombros de seu extermínio já consumado. O reconhecimento em meio ao massacre não é justiça: valida a segregação, dá forma jurídica à injustiça e exclui a possibilidade de um espaço político comum.

A miragem de dois Estados, reiterada ainda hoje pelos ministérios das Relações Exteriores ocidentais como remédio diplomático, não oferece outra saída senão uma cartografia do isolamento. É a institucionalização da desigualdade sob uma máscara jurídica: uma fronteira reforçada para a discriminação, um mapa de guetos carimbado com o selo das Nações Unidas. Essa ilusão, que antes parecia um horizonte, agora não é apenas impraticável em termos geopolíticos, mas também regressiva no plano civilizacional. Significa aceitar a fragmentação como um destino inexorável e o etnocídio como uma forma degradada de coexistência.

Filosofias invertidas – o espelho quebrado da modernidade

A única alternativa que acredito ser desejável e justa, possível e ética é um Estado único e secular, onde a cidadania não depende de credo, etnia ou linhagem, mas da participação formal e legalmente igualitária na vida em comum.

Israel, por outro lado, não pode ser reconhecido como um Estado moderno no sentido hegeliano: um Estado em que a razão é incorporada na vontade geral e na universalidade da lei, superando as particularidades para integrá-las em um todo comum. Aqui, ocorre o oposto: a particularidade étnico-religiosa não é um resíduo a ser superado, mas o próprio cerne de sua legitimidade.

Dessa forma, o projeto hegeliano do Estado como uma universalidade racional é invertido: o que deveria ser um templo da razão torna-se um altar de identidade, uma caricatura da modernidade e um simulacro grotesco. Sob a aparência institucional de um parlamento e tribunais, subsiste uma ordem teocrática que legisla sobre cadáveres e consagra o privilégio como norma.

O momento atual não tolera ambiguidades: se a comunidade internacional legitima a taxidermizada solução de dois Estados, permitindo a continuidade do massacre, não só trai o princípio da justiça como também abre caminho para a barbárie com selo diplomático. Naturalizar o genocídio palestino equivale a estabelecer um precedente sem retorno: crimes em massa coexistindo com resoluções solenes e o extermínio traduzido em retórica diplomática. A ferida assim infligida não se limita a Gaza: ela permeia toda a humanidade e abala os próprios fundamentos do direito, da igualdade e da liberdade.

Desde Vestfália, o Estado moderno tem sido concebido como garantidor da soberania, dos direitos e da universalidade. Hegel o elevou à categoria de expressão da razão histórica, e Arendt alertou para sua perversão quando os seres humanos são privados do “direito de ter direitos”.

Israel desmente essa genealogia: longe de realizar a universalidade hegeliana, erige um Estado étnico-teocrático que condena o povo palestino à instabilidade política. Ali, a modernidade não se realiza: degrada-se em um simulacro grotesco, a mais cruel inversão de sua promessa.

Se agora nos voltarmos para o projeto de Kant de Rumo à paz perpétua, Israel também não pode reivindicar legitimidade como um Estado moderno. Kant exigiu – em termos inequívocos – que nenhum povo fosse tratado como despojo, que os exércitos permanentes fossem abolidos e que os tratados não servissem como subterfúgio para a preparação de novas guerras. Aqui, ocorre o oposto: a expropriação territorial funciona como despojo sistemático; a máquina militar permanece ativa e normalizada; e cada trégua se torna o limiar para a próxima ofensiva. Onde Kant imaginou garantias para a paz, hoje são erguidas justificativas para a hostilidade.

Tampouco está em conformidade com os artigos definitivos de Kant. Não há república onde a igualdade civil seja negada por motivos étnico-religiosos. Não há lei das nações em um sistema que faz da guerra preventiva sua norma diplomática. Não há lei cosmopolita quando o palestino é reduzido a um inimigo ontológico. Israel não invoca o Estado moderno kantiano: inverte-o, fratura a universalidade do direito, degrada a cidadania a um privilégio e transforma a promessa iluminista de paz em um eco vazio.

Não é surpresa que o legado de Kant seja invocado oportunisticamente hoje por chanceleres que transformaram a guerra em um negócio. Que prova maior poderia haver do que ouvir um ministro israelense descrever Gaza como uma “mina de ouro imobiliária” e anunciar, em meio à carnificina, que já estão negociando com os Estados Unidos a divisão do território devastado?

Dessa perspectiva, a ofensiva deixa de ser um desastre humanitário e se torna um investimento: primeiro é demolida, depois colonizada e vendida como progresso. O próprio Olaf Scholz, no tricentenário de Kant, chegou a citá-la para justificar o rearmamento alemão e o envio maciço de armas para a Ucrânia.

Não se trata apenas de Israel ou da Alemanha: o legado de Kant tornou-se lugar-comum na retórica bélica ocidental. O que antes era um projeto de paz perpétua foi degradado a um termo genérico em chancelarias e discursos parlamentares, onde o filósofo é citado com a mesma frieza com que se assina um contrato de armas. Kant, reduzido a um slogan solene, adorna discursos que justificam bloqueios, invasões e orçamentos militares. Assim, o pensador da hospitalidade universal é hoje invocado como o santo padroeiro da indústria bélica: um busto acadêmico colocado no limiar da barbárie.

Menciono os dois maiores expoentes da filosofia clássica alemã, arquitetos conceituais do Estado burguês moderno, não por indulgência com aquela forma histórica que o tempo superará, mas para demonstrar a incompatibilidade radical de seus princípios com as teocracias, o colonialismo e o genocídio. Nem Hegel nem Kant podem oferecer uma saída para a crise civilizacional atual, mas servem como um espelho invertido: em seu nome, as chancelarias legitimam a barbárie e, comparado aos seus ensinamentos, Israel exibe o fracasso de um projeto que substitui a universalidade pelo pertencimento tribal, a cidadania pelo privilégio e o direito pela metralha.

Demonização, expansionismo e boicote

Israel aperfeiçoou a arte da demonização: todo adversário é apresentado como um “novo Hitler”, seja Nasser, Khomeini, Arafat ou Saddam Hussein. Ou, mais recentemente, Ali Khamenei, Lula ou Gustavo Petro. Essa retórica não apenas legitima a agressão preventiva, mas também encerra qualquer debate no Ocidente, onde a palavra “Hitler” opera como um feitiço paralisante. Assim, o essencial é obscurecido: o genocídio palestino, relegado a uma nota de rodapé enquanto os canhões disparam em outros lugares.

O verdadeiro sonho dos sucessivos governos israelenses não é a paz. É o redesenho do mapa regional: um Oriente Médio onde os países árabes abandonam para sempre sua demanda por um Estado palestino e onde a limpeza étnica se torna naturalizada como uma rotina burocrática de poder. Longe de qualquer universalidade esclarecida, prevalece um projeto expansionista e teocrático, onde a legitimidade é medida em canhões e cadáveres.

Diante dessa maquinaria de extermínio e manipulação, emerge a resposta não violenta do boicote. O movimento BDS, inspirado na luta contra o apartheid sul-africano, busca isolar Israel diplomática, econômica e culturalmente. Não se trata apenas de sancionar produtos ou empresas: trata-se de romper o escudo simbólico e midiático que o apresenta como uma democracia moderna.

No Ocidente, a reação imediata é a acusação de antissemitismo, usada como mordaça. Em outras regiões, livres dessa culpa histórica, o boicote surge como um gesto de dignidade civilizacional: uma forma de deter, ainda que parcialmente, o genocídio e lembrar que nem tudo está fadado à impotência.

O filósofo Michel Onfray nos lembra que a Torá, matriz do judaísmo, estabeleceu desde suas origens um mecanismo de obediência e exclusão. É – em suas palavras – uma máquina teológica de produção de culpa e subordinação, onde a lei não surge da vontade esclarecida dos homens, mas do mandato sagrado de um Deus que tudo prescreve.

Mas minha crítica – como a de Michel Onfray – não se dirige a formas de consciência religiosa, mas à sua conversão em uma ordem social teocrática. Quando essa estrutura se torna o fundamento do Estado – seja em Israel, no Irã ou no Vaticano – a modernidade se dissolve: o cidadão deixa de ser sujeito de direitos e se torna sujeito de uma identidade sagrada.

E o mesmo poderia ser dito de qualquer teocracia que substitua a cidadania pela obediência religiosa: Israel não é uma exceção, mas sim uma confirmação dessa deriva. Apresenta-se como uma democracia parlamentar, mas na realidade funciona como uma teocracia de fato. Michel Onfray alerta que a memória do Holocausto é instrumentalizada como legitimação de um projeto expansionista que, longe de encarnar a racionalidade republicana, se baseia na sacralização da terra e da etnia.

O apelo à “Terra Prometida” substitui o contrato social por um pacto divino, e a cidadania universal por pertencimento étnico-religioso. O resultado: um Estado que legisla a partir do sagrado, disfarçado de legalidade moderna.

Nesse sentido, Israel cai na mesma deriva obscurantista que Michel Onfray identifica em todas as teocracias: Irã, Vaticano, certas teocracias islâmicas e monarquias que se justificam pela fé. Todas compartilham a mesma atitude: desativar o legado iluminista, substituir a autonomia pelo dogma e a universalidade dos direitos pelos privilégios do credo.

Nessa perspectiva, a existência de um Estado definido pela Torá não é um acidente histórico, mas sim a confirmação de que a tentação de submeter a política ao sagrado persiste. E essa tentação transforma Israel em um paradoxo civilizacional: democracia teológica, modernismo arcaico, simulacro de um Estado racional em que a lei é subordinada à fé.

O que Kant imaginou como uma república universal de cidadãos livres, e Michel Onfray denuncia como uma ameaça persistente de obscurantismo teológico, converge em um paradoxo trágico: um Estado que se proclama moderno enquanto se apega a dogmas fossilizados. Essa dupla negação – da razão iluminista e da emancipação secular – não é um problema local nem uma anomalia distante, mas um desafio civilizacional em escala global.

Porque a cada dia que Israel perpetua o genocídio palestino sem sanção efetiva, o projeto iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade se torna ruína semântica, uma palavra oca que o poder manipula à vontade.

Da Nakba ao presente: enclave armado e possível futuro

Embora o sionismo tenha começado como um projeto político dentro do judaísmo, logo se transformou em uma causa de poder em vez de fé, confirmando as suspeitas de Karl Marx sobre as verdadeiras motivações por trás dos conflitos ideológicos e religiosos. Governos, elites políticas, líderes empresariais e lobbies internacionais o abraçaram não por convicção espiritual, mas por cálculo oportunista: eles veem Israel como um enclave estratégico no Oriente Médio, um parceiro militar e econômico privilegiado, um posto avançado dos interesses ocidentais em terras árabes.

Ao contrário dos Estados-nação, que emergiram da dissolução de impérios e feudos na transição para a modernidade, o sionismo é ainda mais recente: uma ideologia nacionalista e um movimento político concebido no final do século XIX, com o objetivo de criar um Estado judeu na Palestina, sob a proteção mítica da “terra consagrada” a Abraão.

Jerusalém, o coração simbólico do judaísmo, também se ergue como uma cidade sagrada para o cristianismo e o islamismo, religiões que, por sua vez, legitimaram teocracias e exclusões – da Inquisição ao Talibã –, multiplicando fraturas em nome de deuses conflitantes. O antissemitismo europeu, forjado por séculos de perseguição e extermínio, alimentou a urgência de encontrar uma pátria segura.

Assim, em 1948, com apoio internacional, o projeto tomou forma e nasceu o Estado de Israel. Mas também nasce a catástrofe: mais de setecentas mil vidas palestinas deslocadas, condenadas ao exílio na tragédia que a memória árabe nomeia com uma única palavra: Nakba.

Desde então, Israel tem funcionado menos como um lar do que como uma trincheira: não um Estado enraizado na universalidade dos direitos, mas um bastião militar a serviço de interesses globais. Sua legitimidade se mede não pela coexistência com povos vizinhos, mas pela capacidade de projetar poder em uma região cobiçada por seus recursos e posição estratégica. Ali, a tutela armada dos Estados Unidos, o financiamento europeu e a cumplicidade dos lobbies empresariais e midiáticos convergem, transformando-o em uma peça-chave em um jogo de xadrez geopolítico.

A memória do Holocausto, em vez de ser erguida como um farol de justiça, foi acorrentada como um álibi para a desapropriação: a expulsão sistemática do povo palestino, a expansão territorial protegida pela força, o cerco à vida em nome da segurança. Assim, o que era apresentado como uma pátria segura tornou-se um laboratório de dominação, um palco onde o poder global testa e aperfeiçoa seus dispositivos de controle.

Hoje, sob a liderança de Benjamin Netanyahu, essa força está abertamente em exibição: Gaza tornou-se um campo de testes para armas e tecnologias de controle populacional destinadas ao mercado global. Cada bombardeio serve como uma vitrine comercial; cada muro, um catálogo exportável de segregação apresentado como segurança.

Israel, sustentado pela cumplicidade das potências, apresenta-se como vítima enquanto age como carrasco, transformando o genocídio palestino em uma mercadoria geopolítica. A catástrofe que começou com a Nakba nunca foi interrompida: hoje é reativada com drones, bloqueios, algoritmos de vigilância, fome e sufocamento de uma população reduzida à escória humana. Nesse espelho escuro, o mundo não vê mais apenas a aniquilação de um povo, mas a vitrine sangrenta onde o poder global antecipa seu futuro autoritário.

Que um acadêmico judeu, herdeiro cultural da memória do Holocausto e especialista em decifrar sua lógica de extermínio, chame o que está acontecendo em Gaza de genocídio tem um valor que vai além da semântica. Omer Bartov alerta que isso não é mais uma questão de interpretação: a própria Comissão da ONU o reconheceu.

A maior obscenidade, no entanto, é que Israel busca justificar esse genocídio invocando a memória daquele outro. O crédito moral acumulado em Auschwitz se esgota quando se transforma em salvo-conduto para devastar Gaza. O genocídio não pode ser invocado para perpetrar outro: esse espelho invertido revela a podridão ética de um Estado que devora seu próprio mito fundador.

O que é único neste genocídio, Omer Bartov aponta, não é apenas sua natureza sistemática ou sua brutalidade televisionada em tempo real, mas a cumplicidade ativa daqueles que se proclamam guardiões do direito internacional. Os Estados Unidos, a Alemanha, a França e o Reino Unido, as mesmas potências que erguem memoriais do Holocausto, hoje financiam e protegem a maquinaria que fabrica novas vítimas em Gaza.

O sonho do Estado judeu como refúgio degradou-se em um pesadelo colonial: uma fortaleza segregacionista e autoritária condenada à ignomínia histórica. Como a África do Sul em seu momento mais sombrio, Israel está deslizando para o status de pária, mas aqui o sangue flui livremente e o mundo inteiro assiste.

A palavra já foi dita, não apenas nas ruas árabes ou em faixas de solidariedade, mas também por consciências autoritárias: acadêmicos israelenses, herdeiros da memória do Holocausto, juristas bebendo no Lemkin, figuras como Bartov ou Goldberg. Todos concordam em chamar o que está acontecendo em Gaza de genocídio.

Quando até mesmo aqueles que carregam a memória de Auschwitz em seus ombros reconhecem isso, o muro de eufemismos que o Ocidente ergue para desculpar a barbárie desmorona. O termo não é mais um slogan: é um diagnóstico jurídico, histórico e moral. Negá-lo equivale a encobri-lo; aceitá-lo é dar o primeiro passo para detê-lo.

O álibi da segurança desmorona até mesmo na Cisjordânia, onde o Hamas não governa e os túneis de reféns não existem, mas a colonização avança com demolições, expropriações e queimadas de olivais. Lá, a verdade é exposta: um enclave colonial em expansão cuja remoção é uma condição indispensável para a paz.

Dessa constatação emerge a única solução possível: a construção de uma Palestina laica e soberana – ou como quer que a região se chame no futuro – capaz de acolher as três religiões monoteístas em pé de igualdade, com plena liberdade de culto, como ocorreu durante séculos antes do avanço sionista.

Essa Palestina deve garantir o direito de retorno aos expulsos a partir de 1948, pois não há justiça possível se apenas judeus nascidos em qualquer lugar do mundo puderem reivindicar como pátria o que foi tirado de outros. Fazer o contrário perpetua a segregação institucionalizada, reveste-a de uma roupagem legal e a naturaliza na consciência global. Não se trata de alimentar vinganças ou sonhar com o extermínio.

Assim como quando exigimos que os britânicos abandonem as Malvinas, não estamos propondo lançar os Kelpers ao mar, a demanda pela descolonização palestina também não implica violência contra aqueles que hoje ocupam esse território à força. Trata-se de restaurar o princípio universal da igualdade, de desmantelar o resíduo imperial e devolver a cada povo a dignidade de habitar, cultivar e legar sua própria terra. Somente assim poderá emergir um horizonte de verdadeira coexistência, e não a impostura sangrenta de um “processo de paz” destinado a perpetuar a dominação.

No entanto, o veredito não vem apenas de vozes individuais, por mais autoritárias que sejam, mas também da comunidade acadêmica especializada no estudo do horror. A Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio (IAGS), com quase 500 especialistas, votou por ampla maioria que o que Israel está perpetrando em Gaza atende à definição legal de genocídio estabelecida na Convenção de 1948.

Este não é mais um julgamento político ou moral, mas uma constatação jurídica: assassinatos deliberados de civis, fome induzida, privação de água e medicamentos, violência sexual e deslocamento forçado. Cada crime se encaixa como uma peça na estrutura do horror palestino. O fato de Israel negá-lo e descartá-lo como uma “desgraça acadêmica” apenas confirma a magnitude de seu isolamento ético.

Não haverá reconciliação enquanto persistir este reduto expansionista. Não haverá justiça sem o pleno reconhecimento do direito de retorno dos expulsos, nem paz enquanto a segurança for confundida com extermínio. O tempo dos paliativos acabou: a única saída é uma Palestina soberana, laica e secular, capaz de garantir a igualdade de culto e a cidadania plena.

O refrão sionista do direito de Israel à existência revela a monstruosidade de suas prioridades. O direito de existir pertence à humanidade e, portanto, aos indivíduos que povoam um território. Uma fórmula jurídico-política, tão fugaz quanto um Estado-nação na história, jamais poderá reivindicar o direito de existir sobre a vida humana.

A paz que merecemos não será uma assinatura em um pedaço de papel: será a restituição de terras, histórias e corpos ao abraço de uma vida compartilhada. Toda a região precisa de uma mudança revolucionária que restaure o sentido de palavras que não são novidade na história recente, agora sinistramente esvaziadas, e que revelam a extensão do imenso atraso dos protagonistas envolvidos: liberdade, igualdade e fraternidade. Até as últimas consequências.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.



 

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