Uma carta aberta ao chanceler Friedrich Merz: A Segurança é indivisível — e a história importa

O chanceler da Alemanha, Friedrich Merz - 21/10/2025 (Foto: REUTERS/Heiko Becker)

A história julgará o que a Alemanha escolhe lembrar — e o que escolhe esquecer. Desta vez, que a Alemanha escolha a diplomacia e a paz, e cumpra a sua palavra

Jeffrey Sachs
brasil247.com/

Publicado iriginalmente no Berliner Zeitung

Chanceler Merz,

O senhor tem falado repetidamente da responsabilidade da Alemanha pela segurança europeia. Essa responsabilidade não pode ser cumprida por meio de slogans, de memória seletiva ou da normalização constante do discurso de guerra. As garantias de segurança não são instrumentos unilaterais. Elas funcionam nos dois sentidos. Este não é um argumento russo, nem americano; é um princípio fundamental da segurança europeia, explicitamente consagrado no Ato Final de Helsinque, no arcabouço da OSCE e em décadas de diplomacia do pós-guerra.

A Alemanha tem o dever de abordar este momento com seriedade histórica e honestidade. Nesse aspecto, a retórica recente e as escolhas políticas ficam perigosamente aquém do necessário.

Desde 1990, as principais preocupações de segurança da Rússia têm sido repetidamente descartadas, diluídas ou diretamente violadas — muitas vezes com a participação ativa ou a aquiescência da Alemanha. Esse histórico não pode ser apagado se a guerra na Ucrânia deve terminar, e não pode ser ignorado se a Europa pretende evitar um estado permanente de confrontação.

No final da Guerra Fria, a Alemanha deu aos líderes soviéticos e depois russos garantias repetidas e explícitas de que a OTAN não se expandiria para o leste. Essas garantias foram dadas no contexto da reunificação alemã. A Alemanha se beneficiou enormemente delas. A rápida unificação do seu país — dentro da OTAN — não teria ocorrido sem o consentimento soviético baseado nesses compromissos. Fingir posteriormente que essas garantias nunca tiveram importância, ou que foram meras observações casuais, não é realismo. É revisionismo histórico.

Em 1999, a Alemanha participou do bombardeio da Sérvia pela OTAN, a primeira grande guerra conduzida pela Aliança sem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Isso não foi uma ação defensiva. Foi uma intervenção que estabeleceu precedentes e alterou fundamentalmente a ordem de segurança do pós-Guerra Fria. Para a Rússia, a Sérvia não era uma abstração. A mensagem foi inequívoca: a OTAN usaria a força além de seu território, sem aprovação da ONU e sem considerar as objeções russas.

Em 2002, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado de Mísseis Antibalísticos, um pilar da estabilidade estratégica por três décadas. A Alemanha não levantou objeções sérias. No entanto, a erosão da arquitetura de controle de armamentos não ocorreu no vácuo. Sistemas de defesa antimísseis implantados cada vez mais perto das fronteiras russas foram, com razão, percebidos pela Rússia como desestabilizadores. Descartar essas percepções como paranoia foi propaganda política, não diplomacia sólida.

Em 2008, a Alemanha reconheceu a independência do Kosovo, apesar de advertências explícitas de que isso minaria o princípio da integridade territorial e criaria um precedente que repercutiria em outros lugares. Mais uma vez, as objeções russas foram descartadas como má-fé, em vez de tratadas como preocupações estratégicas sérias.

A pressão constante para expandir a OTAN à Ucrânia e à Geórgia — formalmente declarada na Cúpula de Bucareste de 2008 — cruzou a mais clara das linhas vermelhas, apesar das objeções veementes, claras, consistentes e reiteradas levantadas por Moscou durante anos. Quando uma grande potência identifica um interesse central de segurança e o reafirma por décadas, ignorá-lo não é diplomacia. É escalada deliberada.

O papel da Alemanha na Ucrânia desde 2014 é especialmente preocupante. Berlim, ao lado de Paris e Varsóvia, mediou o acordo de 21 de fevereiro de 2014 entre o presidente Yanukovych e a oposição — um acordo destinado a interromper a violência e preservar a ordem constitucional. Em poucas horas, esse acordo entrou em colapso. Seguiu-se uma derrubada violenta. Um novo governo emergiu por meios extra-constitucionais. A Alemanha reconheceu e apoiou imediatamente o novo regime. O acordo que a Alemanha havia garantido foi abandonado sem consequências.

O acordo Minsk II, de 2015, deveria ser o corretivo — um marco negociado para pôr fim à guerra no leste da Ucrânia. A Alemanha voltou a atuar como garantidora. No entanto, durante sete anos, o Minsk II não foi implementado pela Ucrânia. Kiev rejeitou abertamente suas disposições políticas. A Alemanha não as fez cumprir. Ex-líderes alemães e outros líderes europeus reconheceram desde então que Minsk foi tratado menos como um plano de paz e mais como uma medida de contenção temporária. Só essa admissão já deveria impor um acerto de contas.

Nesse contexto, os apelos por cada vez mais armas, por uma retórica cada vez mais dura e por uma “determinação” cada vez maior soam vazios. Eles pedem que a Europa esqueça o passado recente para justificar um futuro de confronto permanente.

Chega de propaganda. Chega de infantilização moral do público. Os europeus são plenamente capazes de compreender que dilemas de segurança são reais, que as ações da OTAN têm consequências e que a paz não é alcançada fingindo que as preocupações de segurança da Rússia não existem.

A segurança europeia é indivisível. Esse princípio significa que nenhum país pode fortalecer sua própria segurança às custas da segurança de outro sem provocar instabilidade. Significa também que diplomacia não é apaziguamento e que honestidade histórica não é traição.

A Alemanha já entendeu isso no passado. A Ostpolitik não foi fraqueza; foi maturidade estratégica. Ela reconheceu que a estabilidade da Europa depende do engajamento, do controle de armamentos, de laços econômicos e do respeito aos interesses legítimos de segurança da Rússia.

Hoje, a Alemanha precisa novamente dessa maturidade. Pare de falar como se a guerra fosse inevitável ou virtuosa. Pare de terceirizar o pensamento estratégico para pontos de discussão de alianças. Comece a se engajar seriamente na diplomacia — não como um exercício de relações públicas, mas como um esforço genuíno para reconstruir uma arquitetura de segurança europeia que inclua, em vez de excluir, a Rússia.

Uma arquitetura de segurança europeia renovada deve começar com clareza e contenção. Primeiro, exige um fim inequívoco da expansão da OTAN para o leste — para a Ucrânia, para a Geórgia e para qualquer outro Estado ao longo das fronteiras da Rússia.

A expansão da OTAN não foi uma característica inevitável da ordem do pós-Guerra Fria; foi uma escolha política, tomada em violação de garantias solenes dadas em 1990 e levada adiante apesar de repetidos avisos de que desestabilizaria a Europa.

A segurança na Ucrânia não virá do destacamento avançado de tropas alemãs, francesas ou de outros países europeus, o que apenas aprofundaria divisões e prolongaria a guerra. Ela virá por meio da neutralidade, respaldada por garantias internacionais críveis. O registro histórico é inequívoco: nem a União Soviética nem a Federação Russa violaram a soberania de Estados neutros na ordem do pós-guerra — não a Finlândia, a Áustria, a Suécia, a Suíça ou outros. A neutralidade funcionou porque abordou preocupações legítimas de segurança de todos os lados. Não há razão séria para fingir que ela não pode funcionar novamente.

Em segundo lugar, a estabilidade exige desmilitarização e reciprocidade. As forças russas devem ser mantidas bem afastadas das fronteiras da OTAN, e as forças da OTAN — incluindo sistemas de mísseis — devem ser mantidas bem afastadas das fronteiras da Rússia. A segurança é indivisível, não unilateral. Regiões fronteiriças devem ser desmilitarizadas por meio de acordos verificáveis, não saturadas com cada vez mais armas.

As sanções devem ser suspensas como parte de um acordo negociado; elas fracassaram em trazer a paz e infligiram danos severos à própria economia europeia.

A Alemanha, em particular, deve rejeitar a confiscação imprudente de ativos estatais russos — uma violação descarada do direito internacional que mina a confiança no sistema financeiro global. Revitalizar a indústria alemã por meio de comércio lícito e negociado com a Rússia não é capitulação. É realismo econômico. A Europa não deve destruir sua própria base produtiva em nome de uma pose moral.

Por fim, a Europa deve retornar aos fundamentos institucionais de sua própria segurança. A OSCE — e não a OTAN — deve voltar a servir como o fórum central para a segurança europeia, a construção de confiança e o controle de armamentos. Autonomia estratégica para a Europa significa precisamente isso: uma ordem de segurança europeia moldada por interesses europeus, e não a subordinação permanente ao expansionismo da OTAN.

A França poderia legitimamente estender sua dissuasão nuclear como um guarda-chuva de segurança europeu, mas apenas em uma postura estritamente defensiva, sem sistemas avançados que ameacem a Rússia.

A Europa deve pressionar urgentemente pelo retorno ao arcabouço do INF e por negociações abrangentes de controle de armas nucleares estratégicas envolvendo os Estados Unidos e a Rússia — e, com o tempo, a China.

Acima de tudo, Chanceler Merz, estude a história — e seja honesto a respeito dela. Sem honestidade, não pode haver confiança. Sem confiança, não pode haver segurança. E sem diplomacia, a Europa corre o risco de repetir as catástrofes que afirma ter aprendido a evitar.

A história julgará o que a Alemanha escolhe lembrar — e o que escolhe esquecer. Desta vez, que a Alemanha escolha a diplomacia e a paz, e cumpra a sua palavra.

Respeitosamente,

Jeffrey D. Sachs

Professor Universitário

Universidade de Columbia

Chave: 61993185299


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