por Flávio Aguiar, em Carta Maior
Estava eu posto em sossego, das festas
colhendo o doce fruito, tendendo a voltar às lides apenas para o ano, quando
dois excelentes artigos vieram arrancar-me do merecido repouso.
Refiro-me a Uma proposta de reflexão para o PT,
do amigo e governador Tarso Genro, e Pacto adversativo x Pacto progressista, do
também amigo e editor, Saul Leblon.
Ainda que de modos diversos, tocam
ambos na mesma tecla de entrada: como pode a direita brasileira desqualificar a
atual experiência democrática das administrações populares que se sucedem,
notadamente no plano federal, as de Lula e Dilma?
Também deve-se incluir aí tentativas
internacionais. Primeiro foi a da The Economist, numa iniciativa
digna dos tempos império-coloniais, pedindo a cabeça do ministro Guido Mantega.
Mais recentemente o Financial Times entrou na dança, montando uma
ridícula farsa dialogada em que se misturam alusões toscas e grosseiras à
presidenta Dilma Roussef, ao ministro Mantega, com outras a Putin e aos BRICS,
a Cristina Kirchner, apenas para manifestar a indigestão que as administrações
progressistas da América Latina provocam na sua linha editorial sempre alinhada
com os princípios da ortodoxia neo-liberal.
Durante muito tempo a mídia ortodoxa
internacional exerceu um “ruído obsequioso” em relação ao Brasil, visto como
uma terra exótica de empreendimentos governamentais exóticos que “davam certo”
no desconcerto universal da hegemonia neoliberal.
Um acontecimento mudou essa situação: a
vitória de François Hollande na França, destruindo a “aliança Merkozy” e
introduzindo – ainda que de modo tímido – uma cunha adversa na hegemonia
orotodoxa no reino da Zona do Euro. A partir daí – de modo conjugado com a
diminuição ostensiva dos lucros (e dos bônus, prebendas e sinecuras) do
investimento financeiro-especulativo no Brasil, este tornou-se uma influência
perigosa, que necessariamente deve ser desarticulada para impedir que se
espraie acima do Mediterrâneo. Ainda mais depois da exitosa passagem de ambos,
Lula e Dilma, por Berlim (o primeiro) e Paris (ambos), articulando um seminário
anti-ortodoxia com o próprio Hollande – que também deve ser desarticulado, ou
nem chegar a se articular.
É nesse movimento internacional que se
situam as iniciativas da nossa direita caseira, tendo sempre em vista a
neutralização de qualquer exercício de soberania popular em nossa terra –
iniciativa em que desde sempre se harmonizaram conservadorismo político e
midiático, sobretudo desde que a Revolução de 30 e acontecimentos em torno
introduziram no cenário político institucional esse “elemento” duvidoso e
arriscado, o chamado “povo brasileiro”, às vezes, simplesmente “o povão”,
outras vezes de modo mais preciso “os trabalhadores”.
Num ensaio brilhante, publicado em
1945, logo ao fim da Segunda Guerra (‘As raízes psicológicas do nazismo’),
Anatol Rosenfeld caracteriza o universo espiritual nazista: um misto de
sadomasoquismo. De modo masoquista, o típico nazista se situava como “inferior”
dentro de uma hierarquia estabelecida, tendo ao topo o Führer, ou simplesmente
uma “Ordem Superior”, à qual este mesmo estaria submetido: no caso, era uma
visão fanática de uma superioridade racial associada a uma missão civilizatória
no estabelecimento de uma sociedade de eleitos. Auto-eleitos, sublinhemos. Daí,
de modo sádico, o nazista típico se voltava para oprimir – negando toda a forma
de humanidade – os que vê como inferiores nesta hierarquia que é, ao mesmo
tempo, social, cultural, antropológica, espiritual, até religiosa.
Mutatis mutandis, pois não estamos
falando de nazistas, a estrutura espiritual da(s) direita(s) hoje é análoga. A
atividade política é algo por natureza reservado a uma casta superior, os
“entendidos”, aqueles que carregam consigo não mais uma superioridade racial,
pois esse assunto tornou-se proibitivo, mas uma superioridade civilizatória. No
caso europeu, por exemplo, isso se manifesta em relação aos “extemporâneos”
muçulmanos, norte-africanos, ou até mesmo, por parte dos que se identificam com
um “norte saudável e austero”, em relação aos que estes “auto-eleitos”
identificam como os “sulistas ineficientes e perdulários”.
No caso brasileiro (latino-americano,
de um modo geral), os arautos dessa apologia da desigualdade se situam
(inclusive e sobretudo na mídia) como portadores de uma mensagem civilizatória
vinda de uma “ordem superior”, qual seja, a atual ordem capitalista imposta
pela financeirização da economia e da política, e como tais, negam qualquer
possibilidade de exercício de soberania democrática por parte dos que estão
“abaixo” desse círculo de “auto-eleitos”.
Como aponta Tarso Genro, uma das vias
para se concretizar essa negação da soberania democrática é a “judicialização”
da política; como aponta Leblon, outra via é a pura e simples negação da
história. Abrir o caminho da participação no círculo do consumo para dezenas de
milhões de brasileiros que dela estavam excluídos não tem o menor significado
para esse tipo de pensamento que se cristaliza em torno da “auto-eleição”. Ou
melhor, tem sim um significado: é insuportável, porque isso pode abrir-lhes o
apetite para quererem mais, como diz Genro, citando Döblin, do que “pão e
manteiga”.
Portanto, para esse
tipo de pensamento, é necessário destruir essa experiência de soberania
democrática, destruí-la institucionalmente, pela negação da política ao seu
alcance, e destruí-la na memória, negando seu valor histórico ou até mesmo a
sua existência, ou afirmando-a como um “anti-valor”: coisa de “demagogia”, de
“compra das consciências através de favores”. Se bem olhada, outra não foi a
argumentação de Mitt Romney para justificar sua derrota em novembro.
Como Leblon e Genro, situo-me entre
aqueles que olham também – com alguma apreensão – para o lodo esquerdo do
tabuleiro, onde me situo.
Haverá entre nós suficiente amplitude de espírito
para entender o que está em jogo? Claro, existe uma dimensão imediata que está
presente de modo imperativo: no Brasil, a eleição de 2014. Mas não é só isto. O
que está em jogo é, depois da derrota histórica do socialismo ao final do
século XX, a possibilidade ou não de reconstrução de uma alternativa que
reponha na agenda política a questão da soberania democrática e popular. Esta é
a questão hoje colocada nos cinco continentes.
Com a palavra, no caso do Brasil, o
governo. Mas não só: com a palavra, também, todos nós.
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