sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A Cabotagem no Brasil



A geografia do Brasil e seu processo de colonização fizeram com que a navegação de cabotagem fosse uma das primeiras atividades econômicas do país e protagonizasse o transporte de mercadorias desde a época da colonização até os dias atuais. 

No entanto, embora pareça natural que a utilização da navegação de cabotagem seja relevante no Brasil para o transporte de cargas, tanto pelo contexto histórico, quanto pela concentração da atividade econômica próximo à costa, passando pela grande extensão do litoral brasileiro – de aproximadamente 7.400 quilômetros –, não é isso que ocorre. O que se observa, atualmente, é que a navegação de cabotagem transporta um pouco menos de 11% da carga no país, mesmo sendo o meio de transporte mais competitivo, menos poluente e que tem o menor número de acidentes.

História da Cabotagem no Brasil

O processo histórico de colonização foi determinante para a navegação de cabotagem ser praticada no Brasil desde a chegada dos portugueses. Do século XVI até o início do século XX, período durante o qual os meios aquaviários eram a única possibilidade de transporte de cargas a longas distâncias, a navegação de cabotagem desempenhou um papel preponderante – às vezes, exclusivo – na interligação entre os portos brasileiros e na consecução das atividades comerciais.

Muito precárias até o início do século XIX, a indústria naval e a infraestrutura portuária somente começaram a experimentar um desenvolvimento mais significativo a partir de 1808, com a vinda da Família Real e a promulgação do Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas. 

Até o limiar dos anos 1930, em razão das péssimas condições de ferrovias e rodovias, além da restrita malha, a navegação de cabotagem era extremamente importante para o transporte de carga geral e a granel, sobrevivendo aos altos e baixos que vinha enfrentando no decorrer de sua história, com ciclos de abertura e de fechamento para operação de empresas estrangeiras. Essa situação começou a se modificar rapidamente a partir do governo de Washington Luiz entre 1926 e 1930 cujo lema era: “governar é construir estradas”, dando início a uma era de priorização do transporte rodoviário. Tal movimento foi consolidado no fim dos anos 1950, com a vinda e a implantação da indústria automobilística no governo Juscelino Kubistchek (1956-1961).

Graças às políticas governamentais e às linhas de financiamento, mantidas de forma persistente a partir dos anos 1950, no fim da década de 1970 a indústria naval brasileira atingiu seu ápice. O país atingiu o posto de segunda potência na indústria naval do mundo, gerando mais de 39 mil empregos diretos em 1979. 

O segundo choque do petróleo e o aumento da taxa de juros nos EUA refletiram-se em queda da demanda, pressionando o valor dos fretes, o que impactou o Fundo de Marinha Mercante, até hoje uma importante fonte de financiamento do setor. Observou-se uma deterioração da situação financeira dos armadores nacionais, acompanhada de drástica redução na atividade dos estaleiros instalados no Brasil. 
Na década de 1990, marcada pela abrupta abertura econômica ao mercado internacional e pela ampla política de privatizações, o setor aquaviário continuou enfraquecido. Viu-se a descontinuidade de planejamento e de execução de atividades no setor. 

A cabotagem no Brasil hoje

Atualmente, o modal rodoviário responde por quase 65% da carga transportada. Mesmo com o significativo crescimento que a navegação de cabotagem obteve nos últimos anos, ela hoje detém uma participação relativa de menos de 11% do total das modalidades de transportes.

Apesar de seu potencial, a navegação de cabotagem no Brasil está muito restrita à movimentação de poucos produtos, sobretudo ao transporte de petróleo entre as plataformas marítimas e o continente – decorrência de o país ser um grande produtor de petróleo offshore. Entre 2010 e 2016, o petróleo representou 75% da carga total movimentada. A movimentação de bauxita foi de 9,9% da carga total. Na sequência desses dois itens, respondendo por 5,8% da carga movimentada, está o transporte de contêineres. Salienta-se que o transporte de carga em contêineres, nesse período, apresentou um crescimento de 203% chegando a 10,6 milhões de toneladas transportadas, em 2016, chegando a mais que dobrar.

A grande capacidade operacional de movimentação de cargas da navegação de cabotagem gera ganhos de escala que resultam em vantagens econômicas, como: menor consumo de combustível por tonelada transportada, menor custo por tonelada-quilômetro transportado, reduzido registro de acidentes. Para transportar a mesma quantidade de carga de uma embarcação de seis mil toneladas, haveria necessidade de 172 carretas de 35 toneladas ou 86 vagões de setenta toneladas. Além disso, o menor consumo de combustível por tonelada-quilômetro transportado vai ter como consequência menor emissão de poluentes, um benefício ambiental.

A navegação de cabotagem é uma atividade intrínseca do país, que esteve presente desde a colonização. Ela desempenhou papel relevante no transporte de mercadorias durante séculos. Porém, nas últimas décadas, perdeu importância relativa em comparação a outros meios de transporte de mercadorias, como o rodoviário, apesar de ser o meio de movimentação de carga mais competitivo, menos poluente e com o menor número de acidentes.

O conteúdo deste texto foi extraído e adaptado do artigo Navegação de Cabotagem Brasileira, dos autores Cássio Adriano Nunes Teixeira, Marco Aurélio Ramalho Rocio, André Pompeo do Amaral Mendes e Luís André Sá d'Oliveira, publicado no BNDES Setorial 47.​


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As cidades e seus rios: pelo resgate da riqueza fluvial

Sílvio dos Santos

Historicamente, as cidades de todo o planeta sempre tiveram em seus rios aliados importantes para o abastecimento. Por meio de seu leito, a navegação permite a distribuição de produtos agrícolas, pescados, água como alimento e, além disso, propicia o transporte como fator de desenvolvimento econômico e social.

Em 1825, o mundo registrou um marco importante na história: a construção da primeira estrada de ferro na Inglaterra. Mesmo com esse fator importante, a navegação fluvial não deixou de ter relevância. Continuava com importância nas mais importantes cidades pelo mundo. Nas margens eram mantidas as principais atividades comerciais, portuárias, administrativas, esportivas e recreativas. Enfim, o rio continuava a ser um estruturador urbano, oportunizando atividades em suas margens. O historiador Adam Smith relata que os rios e os mares eram locais que se destacavam na evolução das cidades, devido às vantagens que a navegação possibilitava, lembrando que não havia nada motorizado, apenas a tração animal. Na Europa ficou evidente essa utilização e muitas cidades foram fundadas às margens de rios.

A revolução industrial trouxe inovações e algumas situações críticas. Apareceram as primeiras manchas de despejos nas águas, causados por indústrias e por esgotos dos centros urbanos. Após o período industrial, começaram os primeiros sinais de alerta sobre o perigo dessas práticas poluidoras. Imediatamente, na França e na Alemanha ações despoluidoras foram realizadas nos rios Reno e Sena. Também foram organizadas ações dessa natureza no Rio Tamisa, na Inglaterra.

Reforçando a importância dos rios, Paris, a capital da França, tem seus principais monumentos e construções localizados nas margens do Rio Sena. A Torre Eiffel está na rive gauche (margem esquerda). O Museu do Louvre está na rive droite (margem direita) e a Catedral de Notre Dame na ilha fluvial, Île de la Cité, interligada pelas duas margens por magníficas pontes. Rio Sena inspirador de arte de Monet, demonstrada em sequência na figura 01.

Figura 01: Rio Sena – Quadro Régate à Argenteuil, de Claude Monet

Londres, cidade relevante para a Europa, tem pontos marcantes como o Big Ben, o Parlamento e a Abadia de Westminster localizados nas margens do Rio Tamisa. Lá também se destacam a Ponte de Londres, como um marco histórico, e a London Eye, roda gigante colossal que marca a modernidade.

Ainda podemos citar o importantíssimo Rio Reno que cruza a Basileia, na Suíça, banha Estrasburgo, cidade Francesa; Frankfurt, Colônia e Bonn, na Alemanha, como um eixo de transporte e desenvolvimento.

Continuando, é relevante citar cidades como Hamburgo, Roterdã, Budapeste, Nova Iorque e Buenos Aires. Emolduradas pelos seus rios, todas elas os têm como aliados no crescimento sustentável.

Nesse contexto, percebe-se que cidades do exterior têm grandes exemplos de boa convivência e harmonia com os seus rios importantes. No Brasil, muitas cidades tiveram a fundação, o desenvolvimento e sustentabilidade em margens de rios. Como exemplo, podemos citar a grande metrópole brasileira, São Paulo.

Às margens do rio Tamanduateí foi construído o histórico Pátio do Colégio, que em seu espaço serviu como ponto estratégico de organização dos bandeirantes. Por meio da bacia fluvial do Rio Tietê, os bandeirantes iniciaram as navegações e utilizavam as correntezas em direção ao sertão, interior do Brasil. Tiveram grande êxito e as bandeiras ultrapassaram os limites do Tratado de Tordesilhas. Na ladeira Porto Geral, ponto importante desse rio, cresceu o Velho Mercado Público. Local em que havia comércio de produtos em larga escala e, como consequência, movimentava a economia.

Não eram apenas a mobilidade e o comércio que aconteciam nas margens do Rio Tietê, mas também recreação, socialização e esporte. O rio apresentava vasta área fluvial, margeada por bosques e águas límpidas. A localização estratégica permitiu a instalação de importantes agremiações sociais como os clubes esportivos Espéria, Tietê, São Bento, Estrela, São Paulo (no antigo Canindé), Corinthians e Palmeiras, como pode-se observar na figura a seguir.

Figura 02: Clubes localizados próximos às margens do Rio Tietê

Figura 03: Prova de natação realizada no Rio Tietê

Essa riqueza fluvial sadia à cidade, fez com que São Paulo passasse a organizar competições de natação e de remo no rio Tietê, conforme ilustra a figura 03. A escolha era pela excelente qualidade - na época! - das águas dos rios. Além desses clubes, na cidade de São Paulo, também o Clube Pinheiros, antigo Germânia, sediava provas de remo no Rio Pinheiros. Esporte em destaque na época e com muitos bons resultados para os atletas do País.

A economia agropecuária também tinha o seu êxito em torno dos rios. O transporte de animais, principalmente o gado, era realizado de forma terrestre. Nessa região tinha lugar propício para o translado de gado vindo do sul. Passou a ser conhecido como o caminho do gado, ou seja, a Estrada das Boiadas.

E assim, evoluiu a maior metrópole brasileira chamada, como embrião, de Vila de São Paulo de Piratininga. Tornou-se grande por diversos fatores e, principalmente, em função de fontes ricas propiciadas por grandes rios e suas margens.

Nesse crescimento, ao longo do século passado, a cidade virou de costas para seu berço natal. Utilizou as bacias fluviais como reservatório de esgoto e depósito de lixo e as margens fluviais como eixos viários congestionados. Aquele ambiente limpo, saudável e navegável passou a exalar odor irrespirável, ruído ensurdecedor e paisagem árida.

Temos outras situações parecidas, como em Recife o Rio Capibaribe e em Porto Alegre o Rio Guaíba. Ambos estão poluídos e muito mal cuidados! Estamos no século XXI, com muita evolução. Mas a que preço e que evolução é essa? Se os nossos rios estão poluídos e dizimados? Serviram para o desenvolvimento das cidades, mas a que preço? É um bom momento para refletir sobre o retrato feio que está disponibilizado para a nova geração. Urgentemente, precisamos mudar o caminho e minimizar os danos. Buscar alternativas para salvar as nossas águas; começar a resgatar nossos rios!

Figura 04 – Pintura de Felizberto Ranzini do Rio Tietê próximo a Ponte do Anastácio, na Freguesia do Ó, cuja igreja se destaca a esquerda.

Felizberto Ranzini, autor da imagem na figura 04, e Claude Monet (figura 01) tiveram a oportunidade de inspirar grandes obras, como arte imortal, colhidas pelos olhos diante a uma vista real.

É necessário um resgate da riqueza fluvial para que a geração atual possa imortalizar e disponibilizar para gerações futuras. Que a simbiose das cidades e rios seja harmônica. Vamos nos empenhar ao menos para tornar límpidas as águas de nossos rios!
Referências bibliográficas

François Beaudouin em “Paris à gré d éau” – Musée de la Batelerie

Tietê O Rio Do Esporte - Henrique Nicolini – Editora Phorte – 2000

(artigo originalmente publicado na ONG Águas Limpas do Rio Pinheiros e revisado por Ortenila Chaise)

Silvio dos Santos é engenheiro civil, opção transportes, formado pela Escola Politécnica da Universidade de SãoPaulo (USP). Desde 2003 é engenheiro do Laboratório de Transportes e Logística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde trabalhou em convênios desenvolvidos com a Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT) e com a Secretaria Nacional de Portos para a realização do Plano Nacional de Logística Portuária

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