Folha de S. paulo
DOMINGO, 27 DE JANEIRO DE 2013
Lincoln, de Nabuco a Spielberg
LUIZ
FELIPE DE ALENCASTRO
RESUMO A reeleição
de Obama e os contrastes culturais entre o século 21 e o 19 realçam teor
contemporâneo e político de "Lincoln". Para o público brasileiro, o
longa de Spielberg suscita reflexões sobre o abolicionismo num tempo em que o
Brasil era visto, pelos escravocratas sulistas, como um exemplo a ser seguido
nas Américas.
DESDE O INÍCIO das
celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana
registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua
história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as
duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado
Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas em opinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.
Para não se enredar em batalhas
oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador
e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar
distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de
"Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano
passado para não interferir na campanha presidencial.
Pouco importa: a projeção de Lincoln
nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente
planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse
do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.
Logo de saída, a primeira cena do
filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado
por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um
deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da
União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães
e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o
direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não
vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".
Com o filme em cartaz, o noticiário
fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os
dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada.
Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de
Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC,
abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual
-"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama
como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".
GANCHOS Na realidade,
o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns
ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg
vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para
transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865,
ao cotidiano das famílias do século 21, o diretor bota na mão do garoto, como
se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.
Várias cenas mostram Tad mexendo nas
fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As
salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de
cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários. Num
plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de
Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a
escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do
"Obamacare" - como é chamada a reforma do sistema de saúde que
favorece os pobres e regula as empresas do setor - e de outras reformas
sociais.
A busca do entendimento entre os
partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso
faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.
Mas há outros pontos importantes no
filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln"
consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece
óbvio, mas não é.
Em 2010, o governador da Virgínia,
Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa
das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão. Mais ainda,
o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.
Numa cena, o vice-presidente da
Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão
"extingue" a economia do Sul - e completa: "Todas as nossas
tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".
Lincoln, que era advogado, acreditava
na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia. Para
ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte
estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade
(caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do
Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão
definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos
confederados.
Em editorial de 5 de novembro de
1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o
candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria
favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário,
aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria
conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz
Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois
na cozinha da Casa Branca.
Na verdade, ao contrário do que
acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a
escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado
como exemplo pelos escravocratas americanos.
PROSPERIDADE Um dos mais
eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67),
escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa,
é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira
parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal
ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de
1831 e ilegalmente escravizados desde então.
Em 1854, o então ministro da Justiça,
Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a
propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava
assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando
esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento
fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus
descendentes - que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente
sequestrados por seus alegados proprietários - passavam a ser escravos até
morrer.
Em fevereiro de 1909, em Washington,
onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia
do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos
Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave
power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o
Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela
abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na
América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da
escravidão."
Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando
seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco
de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão:
"Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma
só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade
nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas
cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias
sucessivamente decretadas".
Nabuco reescreve a história do
abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de
seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os
mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda
de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".
O Lincoln de Steven Spielberg mostra
o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana.
Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros
dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas,
vencida pelos escravocratas.
O
"grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente,
de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.
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