Em tese, há alimentos para todos. Se
mesmo assim uma em cada sete pessoas passa fome, pode-se dizer que essa é uma
situação politicamente tolerada, argumenta a editora-chefe da Deutsche Welle,
Ute Schaeffer.
Um mundo sem fome, com 7 bilhões de
pessoas bem alimentadas e bem nutridas, seria possível. Nosso planeta produz
alimentos suficientes. A fome não é um problema causado pela natureza ou cuja
razão está apenas nas crises. A fome é politicamente tolerada. Ela é aceita
porque há "coisas mais importantes", por exemplo as vozes dos
consumidores e agricultores europeus.
Se nós, europeus, levássemos mesmo a
sério nossos sermões sobre solidariedade, teríamos que cortar os subsídios
agrícolas no continente, revolucionar os sistemas de comércio e aumentar o
preço dos alimentos nos países industrializados.

Quando se fala de acordos econômicos
e fluxos comerciais globais, essas pessoas não têm voz. Embora sejam numerosas:
ainda hoje quase metade da população mundial vive direta ou indiretamente do
cultivo de alimentos. Essa grande maioria silenciosa nos países em
desenvolvimento paga o preço do nosso sistema econômico: em todo o mundo 1
bilhão de pessoas passam fome ou estão subnutridas.
Bons argumentos por uma política
diferente
Os políticos europeus dão sempre a
impressão de não saber o que fazer e perguntam como explicar aos eleitores
europeus uma mudança tributária em prol dos mais pobres.
Acredito que isso nem seria tão
difícil. Se me permitem algumas sugestões: expliquem aos eleitores que o
combate à fome serve também à segurança de nossos interesses e de nosso
bem-estar! Pois como é que a Europa pretende lidar com os potenciais 150
milhões de refugiados da fome da África subsaariana, que poderão emigrar a
partir do ano de 2020?
Expliquem aos eleitores que não
queremos pagar impostos duas vezes. Pois hoje consertamos com recursos e
projetos destinados à ajuda ao desenvolvimento o que nossa política econômica e
nossa ordem econômica mundial destroem. E, como resultado, não produzimos nada,
exceto novas formas de dependência entre o mundo desenvolvido e o não
desenvolvido. Isso sem contar os ridículos subsídios a uma agricultura não
sustentável no Norte.
Beneficiários da fome
Fala-se muito das consequências
humanitárias da fome. Mas quem fala daqueles que ganham com a fome? Isso também
precisa ser dito com todas as letras: há quem se beneficie desse sistema que
produz fome. E essas pessoas somos sobretudo nós, consumidores, que gastamos
hoje menos pelos alimentos do que gastávamos há 20 anos. Gostamos de comprar pão
por 1 euro e leite por 70 centavos de euro, e dizemos a nós mesmos que
alimentos não podem custar caro.
Há 100 anos, os consumidores na
Alemanha gastavam dois terços de sua renda com alimentos; hoje são apenas 20%.
Entre os que tiram vantagem disso estão os agricultores europeus, que produzem
muito além da demanda do mercado e mesmo assim não precisam se preocupar. Altos
subsídios lhes garantem uma renda confortável e uma ampla retaguarda política.
Os agricultores nos países em desenvolvimento nem ousam sonhar com uma situação
como essa.
Entre aqueles que se beneficiam da
fome estão também os grandes grupos de agronegócios, que massacram todos os
mercados com suas sementes e respectivos agrotóxicos. E também as elites nas
capitais do Hemisfério Sul. Em muitas regiões, a política é feita sobretudo
para agradar à própria clientela e aos eleitores nas capitais. Ali se decide,
por exemplo, quantos recursos serão destinados ao desenvolvimento do campo.
Investimentos no desenvolvimento de
regiões interioranas e na agricultura são considerados retrógrados. Países em
que 80% do PIB vêm da agricultura acreditam que podem viver sem uma política
agrária! Ou ainda mais grave: um país com as dimensões de terras férteis como
Moçambique, por exemplo, poderia exportar arroz ou milho para todo o sul do
continente africano. Em vez disso, os moçambicanos dependem de importações
caras, simplesmente porque a elite política local não se interessa por esse
problema.
Em situações como essa, é preciso
realizar um trabalho de convencimento, em todos os encontros de cúpula
bilaterais e em toda conferência internacional. E isso os países
industrializados só vão alcançar quando os países em desenvolvimento estiverem
cientes das vantagens que terão, ou seja: mais possibilidades de exportação do
que aquelas que eles têm hoje, acesso aos mercados europeus e preços justos de
produtos agrícolas no mercado internacional.
Bela mentira do mundo do bem-estar
Quem também se beneficia com a fome
são os especuladores do mercado alimentício. Alimentos básicos transformaram-se
em objetos de especulação, cujos preços aumentaram em torno de 30% no segundo
semestre de 2010. Um mercado lucrativo, ao qual aderem investidores e
especuladores, enquanto as pessoas de Porto Príncipe, Dhaka ou Agadez ficam a
ver navios por não poderem pagar seus altos preços.
Vamos acabar com as belas mentiras do
nosso mundo de bem-estar: a fome e a miséria são causadas apenas em parte por
guerras ou catástrofes. E são raramente apenas um problema da população urbana
pobre. Não! A fome é o resultado de uma exclusão que é no mínimo tolerada por
amplas parcelas da população. As necessidades e penúrias de quem passa fome são
colocadas de lado, politicamente apagadas por todos aqueles que se beneficiam
com o problema.
Após décadas de dependência e
exploração pelas potências coloniais, foram impostos aos países africanos
independentes, nos anos 1980, ajustes estruturais radicais por parte do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial: liberalizar, desregular e
privatizar eram as palavras de ordem. Essa política, contudo, foi implementada
em países sem infraestrutura, sem capital de conhecimento, sem uma economia em
funcionamento e sem investidores nacionais. As consequências foram
catastróficas, especialmente para a agricultura, mas também para os setores de
educação e saúde.
Segurança do mundo desenvolvido em
perigo
Com indiferença e ignorância – é
assim que a comunidade internacional lida com o escândalo da fome no século 21.
Um erro fatídico, não somente por razões morais. Não devemos subestimar a força
dos pobres e famintos, e tampouco seu potencial político explosivo. Em 2008, os
altos preços dos alimentos já provocaram revoltas dos famintos, desde o
Camarões até o Egito. Já nos próximos dez anos, isso nos custará bilhões em
forma de programas de ajuda e reparação. A fome põe em risco a estabilidade
política – primeiro nas regiões atingidas, depois na Europa.

Precisamos adiar nossos interesses de
curto prazo – mais crescimento, mais conforto –, para que ninguém mais morra de
fome. Já transcorreram mais de quatro décadas desde que o então secretário de
Estado norte-americano, Henry Kissinger, prometeu numa conferência
internacional sobre a alimentação: "Em uma década, nenhuma criança
precisará mais ir para a cama à noite com fome". Hoje, continuamos mais distantes
do que nunca desta meta. Um verdadeiro atestado de pobreza!
Autora: Ute Schaeffer (sv)
Revisão: Augusto Valente
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