Em "Boa sorte, meu amor", a história de amor dos
protagonistas diz muito do percurso de duas classes sociais – com toda a
beleza, a violência, a alegria e a tristeza que tal estatuto pode comportar
por Maria Luísa Rangel
O peso de um passado parece ainda maior quando ele é
confessado na cabeceira de uma grande mesa de vidro, no centro de uma sala luxuosa,
com as luzes apagadas. O tilintar das pedras de gelo no uísque acompanha o
silêncio do interlocutor, que, entre os goles do outro, absorve a própria
história.
A cena inicial de Boa sorte, meu amor (Recife, 2012; direção
de Daniel Aragão) parece propositadamente satisfazer àqueles que buscam em um
filme da atual safra de cinema pernambucano o tema que é caro aos vários
diretores dessa novíssima geração: a presença do passado patriarcal, de origens
rurais. Passado cuja estirpe teima em permanecer, mesmo na decadência
agonizante desse tipo de poder, ligado ao nome e aos mandos pessoais. Mas o
filme vai além disso.
O patriarcalismo rural é, sem dúvida, uma das linhas
narrativas mestras de Boa sorte, meu amor– assim como, de modo diverso mas com
os mesmos matizes, aparece em O som ao redor(2012), do também pernambucano
Kléber Mendonça Filho. Mas aqui, logo depois de testemunhar as confissões
embriagadas do pai, Dirceu, que o ouvira calado, também faz sua análise do
passado de que é herdeiro: em uma festa ao ar livre no topo de um prédio, bem
distante, portanto, da sala escura e luxuosa, diz sentir uma espécie de
“saudade mórbida” de algo que não sabe se viveu. Considera que as lembranças
são como souvenirse que para ele o que importa são os momentos concretos,
reais, do presente. É de tal conversa que começa seu envolvimento com Maria,
uma mulher linda, quase fantasmagórica, que circula pelos mais diversos
cenários de Recife, também tentando, à sua maneira, lidar com o quinhão do
próprio passado.
A história de amor entre os dois personagens dá caldo ao
enredo do filme. Entre Dirceu e Maria se coloca como base não a ingênua
aproximação entre representantes de diferentes classes sociais, mas o modo como
cada um deles lida com a herança – não apenas moral, mas de ordem econômica –
recebida, transportando-a para o relacionamento. Em Boa sorte, meu amor, a
história de amor dos protagonistas diz muito do percurso de duas classes
sociais – com toda a beleza, a violência, a alegria e a tristeza que tal
estatuto pode comportar.
Dirceu permanece muito confortável em sua posição. Se o
passado é memória de algo que não é seu, os ganhos materiais atuais são.
Jantares, festinhas particulares, carro de último modelo, roupas da moda,
amigos com bons empregos (tão fechados no mesmo grupo que todos “já comeram as
mesmas mulheres”, segundo um deles percebe). Seria um playboy típico de
qualquer metrópole e conta com traços que o particularizam não como
representante de uma burguesia de novos ricos, mas, conforme foi dito, como herdeiro
de um mundo rural em decadência: o enorme apartamento onde mora, contando com a
ajuda de uma empregada uniformizada, remonta à vida de Carlos, em Banguê, livro
de José Lins do Rego; o protagonista do romance de 1934 também vive sozinho,
cercado de empregados inúteis, na casa-grande de um engenho que já não produz.
Por sua vez, Maria, cuja família, do sertão pernambucano, é formada por
trabalhadores livres, não conta com o lastro confortável e paralisante da
genealogia de Dirceu. Sonha em ser pianista desde criança e deixa a cidade onde
nasceu, se não para tentar uma vida ligada à arte na capital, simplesmente para
ter mais liberdade. Divide um apartamento pequeno com amigos (que mudam o todo
tempo) em um bairro popular de Recife, faz bicos em serviços de rua e não se
esquece das palavras da avó, a quem considera revolucionária: não é a devoção a
um amor que lhe trará felicidade, mas a busca do autoconhecimento. A rebeldia
de Maria e de sua turma talvez não seja tão ampla e moderna quanto a que pregava
sua avó, mas traz à cena atual certa libertinagem da classe média das grandes
cidades: o uso controlado da maconha e certo tipo de diversão que não chega
nunca ao inconsequente e ao que viria a ser, de fato, revolucionário. Se uma
raiz comum, rural, une os dois protagonistas, o mesmo acontece com uma cômoda
imobilidade cotidiana que os acomete em diferentes eixos: Dirceu, ligado ao
passado que não é seu, mas que o sustenta; Maria, negando suas origens, presa a
uma liberdade de fachada.
No entremeio de tão vastos modos de vida se revelam não
apenas uma ardente e íntima história de amor (na qual os enamorados quase não
se comunicam verbalmente, deixando que os corpos, mais que as almas, se
entendam), mas o retrato atual de uma sociedade. É supostamente por amor que
Dirceu rompe com a inércia confortável de sua vida para ir até a cidade natal
de Maria quando ela misteriosamente some. A viagem acaba sendo não apenas uma
busca pela amada, mas uma volta às próprias raízes. Pelas estradas que passam
por viadutos, vastos e confusos campos, vilarejos, chega-se a uma pequena
cidade do sertão em que Dirceu se vê à mesa de jantar com parentes de Maria –
entre os quais a avó, tão vigorosa na lembrança da menina, e agora, frágil e
cega – sem que ela esteja presente.
É no estranhamento do espaço, da comida, na falta de
conversa com as pessoas com quem divide a refeição que o abismo entre os dois
mundos (a decadência do patriarcado, representada por Dirceu, e a miúda miséria
cotidiana, pela família de Maria) se evidencia. Diferentemente de seu pai, que
ainda cultiva, mesmo na cidade, o vigor de um antigo senhor de engenho, Dirceu
mostra-se tão deslocado que não consegue nem ao menos incorporar certa
desfaçatez de classe, saturada de simpatiae boa vontade. Será preciso um enfrentamento
sertanejo, em que as leis são as do embate e da força, e não, como entre
senhores, as do mando em palavra (mas nem por isso menos violentas), para que
Dirceu perceba a demolição de um mundo. Um mundo que ainda não desapareceu por
completo e espreita nas sombras das cenas em preto e branco do filme. Um
passado vagaroso e pesado, em ritmo diferente, mas talvez no mesmo tom das
baladas norte-americanas escolhidas como trilha sonora. Assim como Dirceu e
Maria vivem um amor intenso, descompassado e estranho, mas que os possibilita
refazer os rumos de sua vida, as canções que os envolvem trazem uma triste
esperança; como se a melancolia dos frevos de Capiba se estendesse ao tempo
presente e permitisse ecos em outras canções, sem, com isso, perder a identidade.
Boa sorte, meu amor é um filme pernambucano – mas ninguém
ousaria dizer que seus temas não são universais. De uma forma ou de outra,
muitos já tiveram de partir em silêncio, sem olhar para trás, para encontrar
uma vida diante de si. Outros precisaram mergulhar no rio da infância e,
perante o estranhamento alheio, inquisitivo, justificar, talvez mais para si
mesmo: “Eu nasci aqui”.
Maria Luísa Rangel
Mestranda no programa de Teoria Literária e Literatura
Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) e editora
de literatura.
Ilustração: Pedro Lourenço
Página oficial do filme http://www.boasortemeuamor.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12