por João Mendes, Herbet Toledo Martins
Em maio, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei
(PL) que corresponde a um retrocesso secular. O PL n. 7.663/2010, do deputado
Osmar Terra, atualmente PLC 37/2013 em tramitação no Senado Federal, ameaça
reconduzir o Brasil ao início do século XX ao intensificar a fracassada “guerra
às drogas”. Não obstante os importantes avanços na política sobre drogas mundo
afora − a exemplo do Uruguai, que acaba de regulamentar o uso da Cannabis −, as
supostas bases empíricas utilizadas pelo Parlamento brasileiro são dignas de um
“museu de novidades”.
O deputado Terra1 insiste em apresentar números duvidosos
sobre o cenário das drogas no Brasil. O deputado não explica, por exemplo, o
fato de que de 2006 a 2012, após a Lei sobre Drogas n. 11.343, aumentou-se de três
para cinco anos a pena por tráfico, mas o número de crimes de comercialização
de drogas só tem crescido. Em 2006, o sistema carcerário tinha cerca de 10% de
presos por tráfico de drogas; em 2012, já eram 30%. Estimam-se atualmente 160
mil presos. Esse argumento não explica por que se triplicou a população
carcerária motivada pelas drogas sem que tenha havido diminuição do tráfico.
Para Loïc Wacquant, “a criminologia comparada demonstra que
não existe, em lugar algum – nenhum país e nenhuma época –, uma correlação
entre o índice de encarceramento e o nível de criminalidade”.2 O sistema
penal-punitivo brasileiro só tem prendido os “acionistas do nada”,3 os descalçados,
as mulas do tráfico.
Dessa maneira, de onde surge a “verdade” que o Parlamento
brasileiro tenta fazer crer? Há consistência nesse “antídoto” que está sendo
vendido como inquestionável e irreversível? Foucault4 afirmou que o discurso
tido como verdadeiro “é, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou
aquele que responde ao poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade
de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro – o que é que
está em jogo senão o desejo e o poder...”. O discurso e a intensa defesa do
deputado Terra parecem ter outras motivações que não estão explícitas em seus
enunciados. Operam aí as categorias de “desejo e poder”. Desejo do quê? Poder
sobre o quê? O “Estado-penitência”, que desinveste na proteção social para só
“reencontrar” os sujeitos por seu braço policial – combinado isso com as cifras
homéricas que o aparelho repressor faz girar –, produz uma “motivação” que
harmoniza e naturaliza o desejo de “poder” (substantivo), transformando-o em
desejo de prender.
O relator do PL é fisiologicamente vinculado às comunidades
terapêuticas. Sancionada essa lei, numa só cajadada o “Estado-penitência”
cumpre sua profecia autorrealizadora, a prisão: seja nas penitenciárias ou nas
novas instituições totais de alcunha “comunidades terapêuticas” (CTs). Estas
são uma fusão de manicômios, presídios e conventos. A participação do deputado
Givaldo Carimbão como relator5 do PL gerou, no mínimo, um conflito de
interesse, já que o parlamentar é presidente de honra da Frente Parlamentar
Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas.6
Qual é o preço a ser pago pelo vendaval?
O custo financeiro por preso no Brasil é alto, e o impacto
sobre o sistema prisional será ainda maior com o “endurecimento da pena” para o
tráfico (que passará de cinco para oito anos de prisão) a partir da Lei Osmar
Terra. É fácil concluir que gastamos muito e ineficientemente com o sistema
prisional vigente. O custo médio mensal de um preso em instituições estaduais é
de R$ 1.800. Considerando o tempo de pena atribuída ao crime de tráfico, tem-se
que ao final do tempo mínimo da prisão o Estado terá desembolsado R$ 108.000.
Considerando 30% dos 548.008 presos atuais, são aproximadamente 164.400 presos
por drogas. Tais presos produzem um custo anual estimado em R$ 3.551.040.000.
Somando os sessenta meses de cumprimento de pena dos presos por drogas tem-se a
faraônica cifra de R$ 17.755.200.000,para algo que já se sabe não ser garantia
de solução.
Como visto no quadro 1, o orçamento deverá ser acrescido de
cerca de R$ 10 bilhões com a alteração da lei.
A política e os recursos para tratamento dos usuários de
drogas no Brasil são ainda muito escassos. No Brasil, até 2011, a rede de
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) era composta de 258
unidades para tratamento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e
outras drogas. Calcula-se que exista um Caps-AD para cada grupo de 739.274
habitantes, ou aproximadamente 0,12 para cada grupo de 100 mil habitantes. Com
o valor destinado ao pagamento de um ano dos presos por porte ou tráfico de
drogas (R$ 3.551.040.000) os estados brasileiros custeariam 28,8 anos dos
Caps-AD (ver quadro 2).
Esse serviço pode acolher até 190 usuários/mês distribuídos
nas três modalidades de projeto terapêutico. O custo mensal de um usuário do
Caps-AD chega a um oitavo do que se paga por um preso (ver quadro 3).
Considerando o custo/mês por preso e o custo/mês por usuário
do Caps-AD – ainda que não se possa superpor a rede ao sistema prisional –,
verifica-se que, além de ineficiente, o sistema prisional para usuários de
drogas é caro e inadequado. Mesmo com evidências do equívoco dessa política
proibicionista-policialesca, de tempos em tempos o Congresso Nacional revigora
seu ar anacrônico.
Nova figura num quadro de tintas gastas
Contudo, uma nova figura surge nesse cenário: as comunidades
terapêuticas, com direito a bancada parlamentar, pressão social e venda de uma
imagem de “salvação” diante da maré de trevas. Sem dados precisos sobre
quantidade ou localização, de certo quase a totalidade delas está vinculada a
entidades religiosas cristãs.7 Esse fato gera um conflito, já que as CTs
relutam contra a premissa da laicidade do Estado brasileiro.
A nova modalidade de “cura” trazida pelas CTs centra-se no
internamento dos errantes e desviados. “A prática do internamento designa uma
nova reação à miséria, um novo patético – de modo mais amplo, outro
relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua
existência.”8 O poder atribuído à Igreja fez dela a guardiã das boas práticas
morais e do resgate das almas desgarradas. “A Igreja nada abandona do que a
doutrina havia tradicionalmente concedido às obras, mas procura ao mesmo tempo
atribuir-lhes um alcance geral e avaliá-las conforme sua utilidade para a ordem
dos Estados.”9 Formou-se uma parceria quase inquebrável entre a necessidade do
Estado de manter a “ordem” e a Igreja como aparelho ideológico para disseminar
a práxis “terapêutica” com a finalidade de reengendrar o curso da vida dos
loucos, devassos e errantes. O modus operandi das CTs está traçado desde o
século XVI. Elas são a nova roupagem do velho jeito manicomial de tratar os
desvios morais − novo modelito num manequim já gasto que atualmente sofre
denúncias de abusos e violações a direitos fundamentais.10 O Conselho Federal
de Psicologia constata o óbvio: em 68 CTs inspecionadas foram identificadas
violações de direitos humanos mínimos e fundamentais.
A maioria das CTs no Brasil tem um “programa” que define a
permanência dos internos variando de nove a doze meses de confinamento. Erving
Goffman11 alertou para o fato de que “toda instituição tem tendência de
fechamento”. Essas comunidades se consolidaram mediante regras morais abstratas
e arbitrárias, tornando-se instituições totais, “um híbrido social parcialmente
comunidade residencial, parcialmente organização formal”. Forjam-se como “estufas
para mudar pessoas, cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer
ao eu”. Um mix de manicômio (para os entorpecidos, sem razão e sem autonomia),
presídio (para privar do encontro com o proibido) e convento (pela aposta na
conversão).
Após várias décadas clamando por recursos públicos, as CTs
foram agraciadas com um edital de financiamento do governo federal que destina
R$ 1.000 para cada leito de adulto e R$ 1.500 para leitos de adolescentes.12
Não bastasse o alto custo dos presídios, agora surge outro “serviço” destinado
aos usuários de drogas cujo financiamento causa preocupação. O custeio de uma
só vaga em CT equivale ao recurso necessário para o tratamento de 4,8 usuários
num Caps-AD. Uma CT custa pouco mais da metade de uma vaga numa prisão (exatos
55%), mas custa 478% a mais que uma vaga no Caps-AD. Com esse recurso, o
Caps-AD conseguiria alcançar 80% mais usuários que uma CT.
Cabe perguntar: o destaque dado pelo deputado Carimbão
estaria motivado somente pelo desejo de ajudar?
Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), a rede Caps-AD
é insuficiente para a cobertura assistencial adequada. A incompleta introdução
dos Caps-AD alimenta “as críticas a esse modelo, priva do acesso ao tratamento
milhares de pessoas, em geral de baixa renda, que se veem obrigadas a recorrer
a outras formas pouco efetivas, seguras e que respeitem os direitos humanos do
dependente de álcool e outras drogas” (parágrafo 420).13 Dialeticamente, o
sucateamento da rede Caps-AD gera expectativas financeiras para setores que
podem se beneficiar com essa fragilização.
No já citado relatório do TCU verificaram-se fragilidades
nas ações de tratamento quanto aos mecanismos de inclusão de usuários, seleção,
fiscalização e controle das atividades desenvolvidas pelas CTs selecionadas
pelo Edital n. 001/2010/GSIPR/Senad/MS. Constatou-se que cerca de 55% das CTs
apoiadas financeiramente pelo governo federal não possuíam nem licença
sanitária.
Há motivos para uma mudança paradigmática em rota
radicalmente contrária ao que acena o Parlamento nacional. Contudo, o espectro
conservador insiste em não recuar. Dizia Einstein: “Difíceis tempos esses em
que é mais fácil quebrar um átomo que um preconceito”. A crença no modelo
reclusivo para usuários de drogas não se sustenta nem convence seja qual for a
hipótese das que aqui foram citadas.
Um país que possui uma dívida histórica decorrente do
vilipêndio a direitos fundamentais de segmentos já vulnerabilizados pelas
desigualdades sociais não pode aceitar passivamente essa reprodução do
higienismo social típica dos séculos XIX e XX. Karl Marx dizia que “a história
se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Uma política
sobre drogas centrada na repressão e no encarceramento em massa é uma farsa.rdd
João Mendes
Psicólogo pela UFPB, mestre em Linguística e Psicanálise,
professor de Psicologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e
coordenador do Centro Regional de Referência para Educação Permanente em Crack,
Álcool e Outras Drogas.
Herbet Toledo Martins
Doutor em Sociologia pela UFRJ, professor do curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e coordenador do
Grupo de Pesquisa em Conflitos e Segurança Social (GPECS/UFRB).
Ilustração: Allan Sieber
1 Osmar Terra, “Premissas erradas”, Folha de S.Paulo,
1o jun. 2013.
2 Loïc Wacquant, “A aberração carcerária”, Le Monde
Diplomatique Brasil (site), 1o set. 2004. Disponível em:
.
3 Orlando Zaccone D’Elia Filho, Acionistas do nada:
quem são os traficantes de drogas, Revan, Rio de Janeiro, 2007.
4 Michel Foucault, A ordem do discurso, Loyola, São
Paulo, 2005.
5 Relatório do deputado Givaldo Carimbão sobre o PL n.
7.663/2010. Disponível em:
.
6 Instituição Padre Haroldo, “Frente Parlamentar Mista
em Defesa das Comunidades Terapêuticas, Acolhedoras e Apacs vai promover um
encontro nacional das comunidades terapêuticas de todo o Brasil”. Disponível
em: .
7 Senado Federal, “Destinação de recursos públicos a
comunidades terapêuticas esbarra na religião e em critérios médicos”, Em
Discussão!. Disponível em:
.
8 Michel Foucault, A história da loucura na Idade
Clássica, Perspectiva, São Paulo, 2005, p.52-53.
9 Ibidem, p.59.
10 Daniela Arbex, Holocausto brasileiro, Geração
Editorial,São Paulo, 2013.
11 Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos,
Perspectiva, São Paulo, 2001, p.22.
12 Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
(Senad), Edital de Chamamento Público n. 1/2012. Disponível em:
e >.
13 Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(Sisnad), Relatório Operacional. Disponível em:
.
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