por: Saul Leblon – Carta Maior
Foi preciso que o presidente de
um dos maiores bancos brasileiros viajasse 8.940 kms para fora do país, um
estirão aéreo de 11 hs até Genebra, na Suíça, para encontrar um
jornalista, o competente Assis Moreira, correspondente do Valor Econômico,
disposto a ouvir e reportar uma
visão da economia ausente na pauta do Brasil aos cacos, que predomina nas páginas do seu próprio jornal.
Que isso tenha acontecido na
carimbada paisagem de neve e ternos pretos de Davos, onde se realiza o concílio
das corporações capitalistas, diz algo
sobre o belicismo da emissão
conservadora em azedar as expectativas contra o Brasil e seu desenvolvimento.
Luiz Carlos Trabuco Cappio,
presidente do Bradesco, não dirige uma instituição socialista.
Segundo maior banco do país, o
Bradesco acumulou até o 3º trimestre de
2013 um lucro da ordem de R$ 9 bilhões, em boa parte pastejando tarifas e
juros no lombo de seus clientes.
Até aí, estamos na norma de um setor que ao primeiro alarme da crise mundial deixou o
Brasil falando sozinho.
Recolheu-se ao bunker dos títulos públicos (juro limpo, risco zero de
inadimplência) e deixou o pau quebrar do lado de fora.
Mais de 50% do financiamento da
economia brasileira hoje é garantido pelos bancos estatais – 15
pontos acima do padrão de mercado pré-crise.
Não dispusesse de um
sistema de bancos estatais, o país seria
arrastado à crise pela vocação
pró-cíclica da lógica financeira.
O Bradesco tem 26 milhões de
correntistas; está espalhado por todo o Brasil
–sua rede de oito mil agências talvez só perca para a do Banco do
Brasil.
Um dos segmentos de maior expansão do banco no ano passado foi a carteira imobiliária: o financiamento de imóveis totalizou
R$ 12,5 bi –crescimento de 33% no período, contra 11% do credito em
geral.
Talvez essa capilaridade explique
a dissonância.
O que disse Trabuco, em
Genebra, destoa da água para o vinho dos
clamores emitidos pela república rentista, aferrada a circularidade do lucro
que não passa pela produção, nem pelo consumo.
No cassino, a regra de ouro é o
descompromisso com a sorte do desenvolvimento e o destino da sociedade –não raro, o confronto, em modalidades conhecidas.
A saber: arbitragem de juros
(leia ‘O governo invisível não quer Dilma’; neste blog), especulação com papelaria e moedas (bolsas, volatilidade
cambial) e imposição de Selic gorda no
financiamento da dívida pública.
Até mesmo pelo maior entrelaçamento geográfico
com o país real (se o Brasil der errado isso tem consequências) o
dirigente do Bradesco se obriga a um outra visão da economia e do governo.
Excertos da sua entrevista a
Assis Moreira soam como mensagens de um marciano em meio ao alarido do rentismo local:
(...) ‘O grande desafio que nós
temos é fazer o capital produzir no Brasil. É fazer o investimento estrangeiro
ou capital privado nacional funcionar para suprir os nossos fossos,
principalmente de infraestrutura. O Brasil não é um país pobre, é um país
desigual. Não é um país improdutivo. Nós temos problema de competitividade, mas
o país é produtivo’.
(...) ‘ninguém quer ficar fora do
Brasil. Porque a democracia brasileira, o Judiciário, as instituições, a
harmonia social, independente dos problemas que possam existir, tem uma coesão.
O Brasil tem um projeto de país’.
(...) ‘Houve uma época na
economia brasileira em que tudo estava no curto prazo. Agora, teve um
alongamento. E foi positivo, porque o governo soube aproveitar isso, que foi o
alongamento da dívida interna. Hoje já temos estoques importante de títulos de 2045, de 2050’.
(...) ‘O relatório do FMI foi até
positivo em alguns aspectos, porque olhou para a economia brasileira e viu um
crescimento superior à média da projeção dos economistas brasileiros. Isso é o
reconhecimento da capacidade do PIB potencial.
Com relação ao movimento de
capitais, o FMI falou genericamente, sobre migração [de capital]. O pior dos
mundos seria um cenário em que os Estados Unidos, Europa e Ásia mudassem o
patamar dos juros, aí teríamos... Acho que a fuga de capital no Brasil não se
aplica’.
Isso na 4ª feira. Um dia
antes, o mesmo jornal debruçava-se no
colo do mercado financeiro para anunciar a rejeição do governo invisível do dinheiro
à reeleição de Dilma.
A dificuldade em pensar o Brasil
advém, muito, da inexistência de um espaço ecumênico de debate em que opiniões como a de um
Trabuco, ou a de Luiza Trajano --a dona do
Magazine Luiza, que desancou ao vivo um gabola desinformado do pelotão
conservador-- deixem de ser um acorde
dissonante no jogral que diuturnamente aterroriza: de amanhã o Brasil não passa.
Os desafios ao passo seguinte do
desenvolvimento brasileiro são reais.
De modo muito grosseiro, trata-se
de modular um ciclo de ganhos de produtividade (daí a importância de resgatar seu principal núcleo irradiador,
a indústria) que financie novos degraus de acesso à cidadania plena.
A força e o consentimento
necessários para conduzir esse novo ciclo requisitam um salto de
discernimento e organização social,
indissociável de um amplo debate sobre metas, ganhos, prazos, sacrifícios e valores.
Não se trata apenas de sobreviver à convalescência do modelo neoliberal.
Trata-se de distinguir se a crise global é uma ruptura ou o
desdobramento natural de um modelo cuja
restauração é defendida por rentistas,
jornalistas e rapazes assertivos, desprovidos do recheio competente.
Antes de classificar como
excrescência o que se assiste na Europa
--onde o ajuste neoliberal
produziu 26,5 milhões de
desempregados, implodiu pilares da civilização e acumula déficits paralisantes,
que a recessão ‘saneadora’ não permite deflacionar--, talvez fosse mais justo creditar à razia o
bônus da coerência.
O que o schumpeterismo
ortodoxo promove no antigo berço do Estado do Bem- Estar
Social é radicalização do processo de ‘destruição criativa’ que por três
décadas esganou o rendimento do
trabalho, sacrificou soberanias, instituições e direitos, simultaneamente a concessão de mimos tributários aos
endinheirados.
Para clarear as coisas: não foi a
crise que gerou o arrocho e a pobreza em desfile no planeta --mas sim o arrocho
e a desigualdade neoliberal que conduziram ao desfecho explosivo, edulcorado
agora por vulgarizadores que, no
Brasil, advogam dobrar a aposta no veneno.
A ordem dos fatores altera a
agenda futuro.
Se a crise não é apenas
financeira, controlar as finanças desreguladas é só um pedaço do caminho.
O percurso inteiro inclui controlar a
redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas
décadas na base do morde e assopra --arrocho de um lado, crédito e
endividamento suicida do outro.
O saldo está exposto no cemitério
de ossos da crise mundial.
Genocídio do emprego, classe
média em espiral descendente, mercados atrofiados, plantas industriais carcomidas, anemia do investimento e colapso dos serviços
público e do investimento estatal.
Para quem acha que a coisa
começou agora, o insuspeito Wal Street Journal acaba de publicar reportagem com números pedagógicos sobre o
esmagamento da classe média no mundo rico, antes da crise.
Dados compilados por Emmanuel
Saez, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Thomas Piketty, da Escola de
Economia de Paris’, diz o Wall Street
corroboram o desmonte social em curso nos países ricos.
Em 2012, os 10% mais ricos da população
norte-americana ficaram com metade de toda a renda gerada no país. Trata-se do
percentual mais alto desde 1917.
Mas o ovo regressivo vem sendo
chocado bem antes disso.
Estatísticas coligidas por Branko
Milanovic, ex-economista do Banco Mundial , adverte o Wall Street, mostram que, de 1988 a 2008, a
renda real dos 50% mais pobres nos EUA cresceu apenas 23%. Enquanto isso, a
renda do 1% dos americanos no topo da pirâmide cresceu 113% no período –‘ um
percentual que outros estudos consideram subestimado’, lembra o jornal
conservador. As famílias dos 50% mais pobres na Alemanha e no Japão tiveram um
desempenho ainda pior. A renda real dos 50% mais pobres no Japão caiu 2% em
termos reais.
“As desigualdades nacionais em
quase todos os lugares, exceto na América Latina, aumentaram", diz
Milanovic ao Wall Street.
Pela ansiedade dos nossos falcões
e a animosidade de seus gabolas no debate
das questões nacionais, tudo indica que eles não querem ficar para trás.
Ao ouvirem notícias encorajadoras
sobre o potencial do país desabafam enfadados:
‘Brasil? Poupe-me...’
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