Quem marcha em defesa do golpe é gente que esbofeteia cada
um dos milhões de brasileiros que foram privados da liberdade por mais de duas
décadas neste país.
Antonio Lassance –
Carta Maior
A ditadura valeu-se de psicopatas. Assim manifestou-se a
ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, para expressar o
impacto do depoimento prestado por um coronel do Exército à Comissão Estadual
da Verdade do Rio de Janeiro.
O coronel é Paulo Malhães, especialista em tortura e
desaparecimento de corpos durante a ditadura instaurada em 1964.
Em seu depoimento, esse guardião dos infernos mostrou como
todo o sistema repressivo montado tinha autorização dos ministros das Forças
Armadas, que davam as ordens no país - de forma mais absurda e terrorista entre
1968 e 1974.
Os generais, brigadeiros e comandantes não só tomaram conhecimento como ordenaram que os
procedimentos ganhassem escala.
Mandaram construir e custear os aparelhos, como a Casa da
Morte, em Petrópolis, e comprar os instrumentos de tortura. Trouxeram
torturadores de outros países para treinar seus subordinados a usar requintes
de crueldade.
Ao fim e ao cabo, condecoraram uma legião de psicopatas com
medalhas e outras honrarias que já deveriam ter sido cassadas.
Onde quer que estejam, e a dúvida é apenas que parte do
inferno lhes foi reservada, as mãos e os nomes dos chefes de todos os sádicos
permanecerão eternamente tão sujos quanto os dos que decapitaram, arrancaram as
arcadas dentárias, deceparam as falanges dos dedos e praticaram tantas outras
atrocidades mórbidas com o intuito de desaparecer com corpos de militantes de
esquerda que lutavam contra a ditadura.
Cada ministro das Forças Armadas era sempre rigorosamente
informado. Todos eles sabiam quem era preso, qual o método empregado e o
resultado dos interrogatórios, por meio de relatórios – onde estarão esses
relatórios? Quem os terá queimado ou escondido?
Trechos desse depoimento foram publicados pelo jornal O
Globo – um veículo que certamente tem muito a dizer sobre aquele período.
O depoimento dado pelo coronel à Comissão Estadual da
Verdade do Rio foi, por sua vez, “dado” com exclusividade por alguém dessa
Comissão ao referido jornal. Seria bom que a Comissão depois explicasse seu
critério de “doação” de informações públicas para o uso exclusivo por uma
empresa privada.
De todo modo, diz o coronel:
"Levamos a ideia do CIE para o Burnier (brigadeiro João
Paulo Burnier). Ele mostrou para o ministro (da Aeronáutica, Márcio de Souza
Melo), que disse: ‘Poxa, que troço! Então funciona’. Aí, fundou o Cisa (Centro
de Informações e Segurança da Aeronáutica. Tanto é que recebi a medalha de
Mérito da Aeronáutica. Eu até me senti muito orgulhoso, foi o dia em que eu
fiquei mais vaidoso” - disse o coronel.
Os detalhes contados são preciosos:
“O DOI (Destacamento de Informações de Operações) é o
primeiro degrau. Você entra ali, voando. Aí, se brutaliza, passa a ser igual
aos outros, mas depois vai raciocinando e se estruturando”.
“Houve uma mudança da porrada para o choque. Você pode
dizer: foi uma mudança ruim - foi não. Não deixava trauma, não deixava marca,
não deixava nada. Já foi uma evolução. Aí, você vai caminhando, aprende de
outros lugares, também de outros países, como é feita a coisa. Então, você se
torna um outro personagem, um outro cara e, por causa disto, você é guindado a
um órgão superior por ser um cara diferente e agir diferente. Tem muito mais
amplitude, tem um universo muito maior, aí você se torna um expert em
informações.”
"Aprendi que um homem que apanha na cara não fala mais
nada. Você dá uma bofetada e ele se tranca. Você passa a ser o maior ofensor
dele e o maior inimigo dele. A rigidez é o volume de voz, apertar ele
psicologicamente, sobre o que ele é, quais são as consequências. Isto sim. Tudo
isto é psicológico. Principalmente quando houve outros casos, né? Fulano foi
preso e sumiu. Ele não é preso em uma unidade militar, ele vai para um lugar
completamente estranho, civil, vamos dizer assim, uma casa. Ninguém sabe que
ele está lá. Não há registro.”
Remorso? Nenhum:
“Poxa, não. Só perdi noite de sono estudando [as
organizações de esquerda]. Até hoje, estudo.”
Até hoje? Bem, talvez hoje o coronel esteja então na
reedição da Marcha da Família pela Liberdade, um nome hipócrita para uma reunião
pública de defensores de um regime de psicopatas.
Enquanto permanecer existindo um único desaparecido político
no país, qualquer um que apoie esse tipo de marcha golpista, seja lá que nome
de fantasia ostentar, patrocina um
desfile em desrespeito a qualquer família, não só as que choram seus parentes
sem lápide.
Os que marcham em defesa do golpe são gente que fede a
religião, mas não acredita em Deus – como diria Mário de Andrade.
É gente que esbofeteia cada um dos milhões de brasileiros
que foram privados da liberdade por mais de duas décadas neste país.
Que marchem, mas não ousem tocar suas mãos sujas em nossa
democracia, nem pisar sobre nossas consciências.
(*) Antonio Lassance
é cientista político.
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