por Jean François Boyer
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A grande imprensa está de pé. Do Figaro ao Wall Street
Journal, passando pelo New York Times, o novo presidente mexicano é ovacionado.
Enrique Peña Nieto, “jovem”, “sedutor”, “moderno”, concluiu 2013 em apoteose:
no fim de dezembro, adotou uma reforma constitucional que libera os setores de
energia (eletricidade, petróleo e produtos derivados) para o investimento
privado nacional e estrangeiro. E melhor: conseguiu dividir a esquerda.
Pequena retrospectiva. Nos dias que se seguiram à eleição de
julho de 2012, com a derrota de Andrés Manuel López Obrador, candidato de uma
enorme coalizão progressista, o Partido da Revolução Democrática (PRD) –
principal partido da esquerda – e seus aliados manifestaram sua cólera.
Eclodiram acusações de fraude e compra de votos. O presidente do PRD, Jesús
Zambrano, exigiu a anulação das eleições. Parecia que a guerra entre o novo
presidente e seus adversários políticos tinha sido declarada.
Cinco meses depois, uma surpresa. No dia seguinte à posse de
Peña Nieto, o mesmo Zambrano apareceu ao lado do presidente, dos dirigentes do
partido no poder (o Partido Revolucionário Institucional – PRI) e de
representantes do Partido Ação Nacional (PAN, direita católica) para anunciar a
assinatura do Pacto pelo México, espécie de acordo de coabitação que permitiria
a adoção consensual de “reformas estruturais” necessárias para o país.
A decisão de assinar o pacto não foi consenso no conjunto do
PRD, e sim uma iniciativa pessoal do presidente do partido e da tendência
social-democrata que ele controla. López Obrador, dirigente de um movimento
popular antiliberal e nacionalista batizado de Morena (Movimento de Regeneração
Nacional), opôs-se, assim como as outras tendências minoritárias do PRD.
Prevendo a “traição”, saiu do PRD logo depois da eleição presidencial e
anunciou sua intenção de transformar seu movimento em partido político.
Preocupado em não afastar o eleitorado de esquerda, Zambrano
reiterou que o pacto não prevê reforma constitucional no âmbito energético, nem
a privatização da Pemex – a empresa que explora petróleo e derivados desde a
nacionalização dessa substância em 1938 –, nem a instauração de um imposto
sobre o consumo de medicamentos e alimentos, medida fiscal muito impopular.
Efetivamente, o texto não diz nada preciso sobre esses temas. Mas ninguém tem
dúvidas de que sejam objetivos prioritários para o novo presidente e a direita.
E todos entendem que o PRD renunciou ao combate frente a
frente com o governo. Seu apoio facilitou a adoção rápida das primeiras
reformas – algumas criticadas pela esquerda radical – e permitiu ao presidente
manter a promessa feita durante a campanha aos investidores privados: adotar
uma reforma energética antes do fim de 2013. Martí Batres, presidente executivo
do Morena, resume a manobra: “Se Peña Nieto tivesse tomado a decisão de adotar
suas primeiras reformas com o apoio apenas da direita, teria, indiretamente,
reforçado a esquerda, que se aproveitaria do descontentamento popular para
mobilizar protestos nas ruas. Era preciso, assim, cooptar uma parte da esquerda
com o objetivo de dividi-la e fazer os eleitores da esquerda acreditar que as
ações do governo estavam indo em boa direção”.
Habilidade tática
A presença de Zambrano e seus amigos na direção do PRD
revelou a habilidade de tática de Peña Nieto. Ao longo de 2013, o presidente
negociou com eles projetos de lei e reformas contra os quais a esquerda
moderada não reagiria e que não satisfazem totalmente nem a direita nem a
esquerda radical. Foram adotadas – com o apoio dos deputados e senadores fiéis
a Zambrano e de um número flutuante de parlamentares do PAN – uma reforma do
sistema educacional, uma lei antimonopólio e uma reforma fiscal. Com isso, o presidente
pôde se apresentar como o campeão da unidade nacional, desferindo golpes tanto
na direita como na esquerda quando o interesse do país está em jogo.
A reforma da educação provocou a cólera de numerosos
docentes, atualmente submetidos a um sistema de avaliação que pune os
professores dos estados menos desenvolvidos do país.1 A lei antimonopólio, que
promove a concorrência em setores-chave, fez franzir a testa de Carlos Slim, o
homem mais rico do mundo, que reina soberano sobre as telecomunicações mexicanas.2
Também preocupa a Televisa e a Televisión Azteca (inimigos mortais da
esquerda), que há vinte anos compartilham o mercado das mídias eletrônicas. A
reforma fiscal aprova o imposto sobre alimentos e medicamentos e reduz os
“nichos” que permitem às grandes empresas escapar do imposto. Zambrano exulta:
“O projeto de reforma fiscal retoma as ideias da esquerda, essencialmente as do
PRD. São propostas que introduzimos no Pacto pelo México”,3 lançou ele em
outubro de 2013. A três meses da adoção da reforma energética, essa lua-de-mel
entre um partido da esquerda parlamentar e o poder derrotou os eleitores, que
perderam suas referências.
Em novembro de 2013, mais uma peripécia. O PRD, que logo
após uma assembleia extraordinária reafirmou sua vontade em manter-se no pacto,
anunciou, uma semana depois – poucos dias depois do debate sobre a reforma
energética –, que estava se retirando do pacto. O partido confessou que a
privatização da exploração de hidrocarbonetos já estava em curso, sem a menor
concessão do governo, e que seria adotada como uma medida provisória. Manter-se
no pacto sob essas condições seria suicídio político. Zambrano finalmente
chamou o povo às ruas. O Morena também.
Tarde demais: a rua respondeu timidamente. A explicação para
a apatia? A crise causada pelo desaquecimento da economia norte-americana e a
inflação crescente tornaram sedutora a promessa de garantir, por meio da
privatização, preços melhores para combustíveis, gás e eletricidade. Martelada
pelas mensagens individualistas e consumistas das televisões nacionais e dos
canais a cabo norte-americanos, grande parte da população se tornou sensível ao
argumento. O governo entendeu o momento e lançou na grande imprensa uma grande
campanha publicitária a favor dessas medidas.
Mas é mais grave ainda, explica Sergio Aguayo, professor da
universidade Colegio de México: “À diferença do PT [brasileiro], instituição
sólida e unida que soube tirar proveito dos resultados na gestão das cidades em
que estava no poder, os partidos de esquerda mexicanos, desunidos,
burocráticos, clientelistas e em geral corruptos, não souberam conquistar
legitimidade. Tampouco souberam explorar o carisma de dirigentes, como López
Obrador e Cuauhtémoc Cárdenas”.
O futuro parece sombrio para a esquerda. Se não conseguir,
por uma tentativa imediata de unidade, dinamitar essa reforma por meio de um
referendo popular ou de um recurso via Corte Suprema – perspectivas pouco
prováveis –, o México nunca mais será o mesmo.
De qualquer forma, não haveria união nessa batalha. Desde
janeiro de 2014, o divórcio está consumado entre o Morena e os setores
“colaboracionistas” que dominam o PRD. López Obrador martela que seus
dirigentes foram corrompidos pelo poder e se recusa a unir-se a eles por causas
comuns, como essas batalhas legais incertas.
Tudo indica que o Morena mergulhará sozinho nessa
empreitada. Apresentou aos juízes, no dia 5 de fevereiro, uma acusação penal
contra Peña Nieto por “traição da pátria”. Uma equipe jurídica especializada
estudará outras iniciativas suscetíveis de enfraquecer o governo: destituição
do presidente do Congresso e multiplicação de ações judiciais para impedir a
aprovação de novas medidas.
Mas, para além dessa guerrilha legal, o movimento elaborou
uma estratégia de longo prazo. Um membro de seu secretariado, que prefere
manter o anonimato, afirma: “Para anular as reformas, há apenas uma solução: a
tomada do poder do Parlamento e do governo. É claro, para nós”. A ferramenta
dessa conquista hipotética será um novo partido apoiado por um grande movimento
social e pela rua – se o poder não recorrer a uma nova fraude, como em 2006.
Durante todo o ano de 2013, o Morena lutou para obter seu
estatuto de partido político. Não sem ônus. As condições impostas pelo
Instituto Eleitoral Federal foram severas e acabaram atendidas somente no fim
de janeiro de 2014, com uma margem maior do que a esperada. Mas seus
responsáveis confessam que precisaram convocar diversas vezes algumas
assembleias constituintes para reunir o quórum exigido pela lei.
A curto prazo, a reconquista parece improvável. Nas eleições
legislativas de 2015, o Morena não poderá apresentar candidatos comuns com o
PRD: a lei exclui essa possibilidade para os novos partidos que concorrem a
eleições pela primeira vez. A esquerda dividida poderia perder algumas
oportunidades. E o PRD, seu estatuto de primeira força parlamentar de oposição,
porque muitos de seus quadros e eleitores parecem dispostos a unir-se a López
Obrador.
A derrota teria o mérito, pelo menos, de esclarecer a
situação e recompor a confusa e pouco coerente paisagem política mexicana. A
divisão da esquerda, anunciada há tempos, seria necessária para que uma
verdadeira força alternativa, um polo de resistência, pudesse emergir no país
latino-americano que mais sofreu com o neoliberalismo.
BOX
VIRANDO A PÁGINA DA REVOLUÇÃO
A reforma energética do presidente Enrique Peña Nieto
realiza o sonho de seu predecessor, Carlos Salinas,1 presidente tecnocrata
formado em Harvard que privatizou, entre 1989 e 1994, setores inteiros da
economia e assinou com os Estados Unidos e o Canadá o Tratado Norte-Americano
de Livre Comércio (Nafta). O tratado abriu esses países aos produtos, serviços
e investimentos de seus vizinhos, resultando em um golpe severo ao setor
agrícola e à indústria nacional, com exceção da terceirização e da produção descentralizada
das multinacionais estrangeiras. Restava “liberar” o setor de energia. Quando
as leis da reforma energética de 2013 forem regulamentadas, será fato
consumado.
Perderam-se na memória as conquistas da Revolução Mexicana,
a nacionalização dos hidrocarbonetos em 1938 e da eletricidade em 1960, as
políticas de subsídio a combustíveis, gás e eletricidade, e os grandes
trabalhos de infraestrutura impulsionados pelo Estado.
Em teoria, o petróleo e o gás permanecerão “propriedade da
nação”, e a Pemex – a estatal dos hidrocarbonetos – e a Comissão Federal de
Eletricidade (CFE) ainda serão empresas nacionais. Mas uma parte importante do
lucro do petróleo, do gás e da eletricidade escapará ao Estado.
Para explorar novas reservas de petróleo e gás de xisto, a
Pemex – encarregada, sob a coordenação de um organismo governamental, de
definir a estratégia de desenvolvimento do setor – poderá se associar a
empresas privadas nacionais ou a multinacionais estrangeiras. Essa colaboração
acontecerá em duas modalidades: nos contratos de risco compartilhados com o
setor privado (o investimento privado sendo remunerado, em caso de sucesso, por
uma porcentagem do valor de mercado do produto) ou nas licenças de exploração
concedidas às empresas (as quais destinarão uma porcentagem contratual ao
Estado, mas permanecerão proprietárias dos hidrocarbonetos). A nação mexicana
perderá, assim, uma parte de suas riquezas. No caso da petroquímica, do
transporte de fluidos e da produção de eletricidade, novas empresas privadas participarão
de concorrências diretas com empresas nacionais e embolsarão a totalidade do
lucro dos produtos sem qualquer benefício ao Estado.
O Wall Street Journal alegrou-se: “Apesar de a necessidade
de abrir os recursos energéticos do México a empresas privadas estar evidente
há anos, aos olhos dos dirigentes políticos ela parecia impossível. As
exigências da economia – e o desejo de que as novas possibilidades ganhem
espaço – finalmente triunfaram sobre a história e sobre os interesses
adquiridos”.2
A adoção dessas reformas é uma vitória para o México, afirma
Peña Nieto, porque poderão aquecer o fraco crescimento do país (ao redor de 1%
em 2013, contra 2,3% do Brasil); criar novos empregos na produção de
eletricidade, na exploração do petróleo em águas profundas, no gás e nas minas;
abaixar o preço da energia para o consumidor e reduzir a pobreza, que toca 45%
da população.
A imprensa norte-americana vê uma vitória dos Estados
Unidos. O Los Angeles Times afirma sem filtros: “O impacto [dessas reformas] poderia
ser significativo se ampliar o boom da produção de gás de xisto para os Estados
Unidos e o Canadá e redesenhar os esquemas de produção e consumo que definem as
realidades geopolíticas”. No mesmo artigo, Dallas Parker, sócio de um
escritório jurídico texano que trabalha para grandes petroleiras, reforça seus
argumentos: “A Rússia e o Oriente Médio acompanham de perto a situação. O
controle absoluto do mercado do petróleo e do gás está seriamente ameaçado”.3
(J.-F.B.)
Jean François Boyer é diretor de Le Monde Diplomatique no
México, América Central e Estados Unidos.
Ilustração: Alves
1 Ler Renaud Lambert,
“Un chevalier pas si blanc” [Um cavaleiro não tão branco], Le Monde
Diplomatique, jan. 2012.
2 Daniel Yergin,
“Behind Mexico’s oil revolution” [Por trás da revolução mexicana do petróleo],
The Wall Street Journal, Nova York, 18 dez. 2013.
3 Richard Fausset e
Tracy Wilkinson, “Mexican Senate OKs bill to open oil industry to foreign
investors” [México libera a indústria do petróleo para investidores
estrangeiros], Los Angeles Times, 11 dez. 2013.
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