Marcelo Justo – Carta Maior
A incorporação da Crimeia à Rússia e a crise com o Ocidente
põe em questão a ordem mundial que surgiu após a guerra fria. As sanções
econômicas de Washington contra um grupo de dirigentes russos e a ameaça de uma
ampliação por decreto contra setores chave da economia russa tiveram como
resposta a proibição, pelo governo de Vladimir Putin, do ingresso de políticos
dos EUA no país.
A União Europeia apoiou com mais retórica que músculo esta
dinâmica devido a sua forte dependência energética da Rússia e a interesses
financeiros. Um documento secreto do gabinete do primeiro ministro britânico
David Cameron mostra as contradições expostas pela crise no interior da Europa.
“O Reino Unido não deveria, no momento, respaldar sanções comerciais ou fechar
aos russos o acesso ao centro financeiro de Londres”, diz o documento.
Em outras palavras, para além da retórica incendiária do
chanceler britânico William Hague, os interesses econômicos têm prioridade.
Segundo a pesquisadora sênior da primeira fundação pan-europeia de análise
internacional, o ECFR (Conselho Europeu de Relações Exteriores), Kadri Liik, da
Estônia, a atual situação é fundamental para o futuro das relações
internacionais. A Carta Maior conversou com Liik sobre esse tema.
Os Estados Unidos e a União Europeia exigem que Moscou recue
na incorporação da Crimeia que decidiu se separar da Ucrânia em um referendo
realizado recentemente. Há alguma possibilidade de que isso ocorra?
A única maneira de fazer a Rússia retroceder seria pela via
militar, mas ninguém está disposto a fazer isso. Assim, penso que a Crimeia
seguirá fazendo parte da Rússia porque tampouco há alguma via diplomática para
mudar a atual situação.
Do ponto de vista legal, isso deixará a Crimeia em uma
espécie de limbo diplomático no qual não é reconhecida por ninguém, mas faz
parte da Rússia.
Os EUA disseram que ampliarão as sanções econômicas que
contam com o apoio mais simbólico que efetivo da União Europeia que depende
muito da Rússia em nível energético e até financeiro, como é o caso do Reino
Unido. Que impacto terão essas sanções?
As sanções econômicas dirigidas contra indivíduos até o
momento só provocaram uma resposta similar da Rússia. Mas ainda que seja certo
que há uma forte interdependência econômica entre a União Europeia e a Rússia,
as coisas podem mudar. Se os países chegarem a conclusão de que a Rússia
representa uma ameaça para o sistema internacional, podem aceitar certos
sacrifícios econômicos.
Dependerá de como avaliem a situação. O fato de que a União
Europeia esteja pensando tão detalhadamente o que fará, pode ser uma indicação
da falta de vontade política ou um sinal de que querem adotar sanções bem mais
pesadas, de modo a causar impacto máximo na Rússia sem afetar a economia
mundial.
Não ocorrerá o que se deu em outras crises mundiais onde,
após certo tempo, há uma aceitação do novo status quo, ou seja, que prevaleça
uma política de fato consumado?
Isso dependerá em grande medida da atitude da Rússia nas
próximas semanas e meses. Se a Rússia invadir o leste da Ucrânia, algo que não
podemos excluir como possibilidade dada a acumulação de tropas russas na
fronteira, a situação se agravará muito e, muito provavelmente, o Ocidente
tratará a Rússia como um inimigo. Não haverá guerra, mas ingressaremos em uma
nova guerra fria. Se a Rússia se abstiver de uma intervenção no leste da
Ucrânia, é mais difícil prever o que ocorrerá. Um cenário possível é que, como
você diz, sem fatos novos no terreno, se possa produzir uma normalização da
atual situação.
Vladimir Putin disse expressamente que a Rússia não tem
nenhum interesse em outra zona da Ucrânia.
É certo, mas Putin disse antes que não tinha interesse na
Crimeia, de maneira que sua palavra está um pouco desvalorizada. A Crimeia não
era um objetivo em si mesmo para a Rússia, ainda que tivesse um valor
sentimental. O objetivo estratégico real é controlar Kiev e evitar uma Ucrânia
pró-OTAN ou pró-União Europeia. O problema é que a Rússia poderia ter atingido
esse objetivo de maneira diplomática. O novo governo da Ucrânia é muito débil,
não representa o conjunto da população e o próprio Ocidente estava interessado
em acalmar a Rússia para que se chegasse a um acordo, de maneira que teria
pressionado a Ucrânia nesta direção. Mas a Rússia decidiu anexar a Crimeia.
Isso gera uma indagação a respeito da real intenção da Rússia.
Ao mesmo tempo e olhando desde a perspectiva russa, desde a
desintegração da União Soviética no início dos anos 90, a Rússia se opôs a uma
série de medidas da OTAN que considerou ameaçadoras para sua própria segurança.
Nisso coincidiram líderes políticos russos muito distintos, desde Mikhail
Gorbachev, passando por Boris Yeltsin e chegando a Vladimir Putin. Iniciativas
como a proposta no ano passado para uma associação econômica da União Europeia
com a Rússia foram descartadas pela própria UE. A União Europeia e o Ocidente
não cometeram sérios erros que levaram a essa situação?
Há uma forte corrente de opinião que pensa isso. Mas creio
que há uma premissa perigosa aqui, que é pensar a situação como algo que diz
respeito somente a Rússia e ao Ocidente, sem levar em conta que há países
pequenos no meio que tem sua própria vontade e direitos. Na minha opinião, o
motor da ampliação da OTAN e da União Europeia para o leste foi acionado pelos
próprios países do leste europeu que podiam se apoiar na premissa pós-guerra
fria de que cada nação tem o direito de decidir seus próprios assuntos. Ao
mesmo tempo é certo que a União europeia cometeu muitos erros em nível
diplomático. Não havia acordo interno sobre que estratégia seguir.
Estabeleceu-se como condição a libertação incondicional da ex-primeira ministra
Yulia Timoshenko, que não é nenhuma santa. Nada disso contribuiu para
neutralizar a crise. Ao mesmo tempo, o que ocorreu nas ruas da Ucrânia mudou as
coisas porque não se percebe entre os manifestantes um maior interesse de
compromissos.
Seja como for, não chega a surpreender que a Rússia se sinta
ameaçada por uma organização que nasceu para combater a União Soviética, como é
a OTAN hoje que, além da “ameaça terrorista”, só pode justificar sua existência
tendo a Rússia como inimiga. A OTAN não é ela mesma um entulho do passado?
É certo. Mas o problema é que os vizinhos da Rússia querem
fazer parte da OTAN ou da União Europeia. A Rússia deveria se perguntar por que
isso ocorre? Por que não querem fazer parte de uma organização vinculada com a
Rússia.
Que impacto essa crise pode ter em nível internacional?
Se comparamos a situação atual com o conflito militar na
Geórgia, em 2008, vemos que, naquele conflito, a Rússia tentou por todos os
meios mostrar seu apego ao direito internacional. Neste caso, não. A Rússia
tinha um plano muito claro a respeito do que queria fazer, o que explica a
rapidez com que incorporou a Crimeia, mas ao mesmo tempo seus pretextos para
fazê-lo foram muito pobres, quase como se não importasse que eles fossem
críveis. O que marca esta diferença de atitude é que Moscou está desafiando as
regras da ordem internacional pós-guerra fria que postulava entre outras coisas
a inviolabilidade das fronteiras e a resolução pacífica dos conflitos.
É certo que o Ocidente também violou estas regras, seja por
motivos supostamente mais elevados como o caso humanitário no Kosovo e o perigo
de limpeza étnica, seja por motivos que se mostraram falsos como na invasão do
Iraque. Na minha avaliação, a ordem internacional pós-guerra fria está se
desintegrando. Isso pode ser um processo gradual, mas será turbulento e não
sabemos o que o substituirá. Dependerá muito de como for resolvida essa situação
na Ucrânia.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Créditos da foto: Arquivo
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