No dia 23 de dezembro de 2013, o presidente uruguaio José
Mujica aprovou um projeto de lei para criar um mercado regulamentado e legal da
maconha. Com a medida, ele tornou-se o primeiro chefe de Estado a legalizar a
produção e a venda – em uma rede de farmácias – de uma droga proibida em toda
parte
por Johann Hari
No México, fotos de desaparecidos revestem os muros tal qual
uma campanha publicitária colossal de um traficante de humanos. Segundo a
organização Human Rights Watch, mais de 60 mil mexicanos perderam a vida na
“guerra às drogas”, deflagrada em 2006 pelo então presidente Felipe Calderón. O
banho de sangue se alimenta de duas fontes cruzadas: de um lado, os Estados
Unidos fornecendo dinheiro e armas na outra margem do Rio Grande para reprimir
o tráfico de entorpecentes; de outro, os cartéis lutando pelo controle das
rotas de distribuição.1 No dizer de Charles Bowden, a guerra às drogas se
iguala à guerra pela droga. Ambas são igualmente letais.
Até recentemente, dominava certo fatalismo inspirado pela
constatação de que a selvageria não poderia ser detida, apenas deslocada.
Entretanto, há dois anos, dirigentes latino-americanos, entre os quais o
presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, têm procurado romper publicamente
com o dogma repressivo e colocar em prática uma política diferente – a única,
eles asseguram, capaz de erradicar o mercado da droga. É essa a postura que o
Uruguai está tentando adotar. Seu presidente, José Mujica, é um dirigente
atípico. Ex-guerrilheiro tupamaro da década de 1980, ele ficou preso no fundo
de um poço por 2,5 anos. Depois de eleito, em novembro de 2009, desprezou a
pompa do palácio presidencial, preferindo permanecer em sua pequena casa com
teto de zinco, num bairro popular de Montevidéu. Destina 87% de seu salário de
chefe de Estado a instituições de apoio a projetos sociais de habitação e, de
bom grado, vai de ônibus a muitos de seus compromissos.
Origens da violência
Em julho de 2013, ele baixou uma lei autorizando adultos a
cultivar e vender Cannabis em todo o território nacional. Os usuários passaram
a poder obter sua erva favorita nas farmácias, limitados a 40 gramas por mês,
ou a cultivar, por conta própria, até seis pés por residência. É a primeira vez
que um país transgride frontalmente os tratados da ONU que proíbem o uso da
maconha.
“Já faz mais de cem anos que, de um modo ou de outro,
adotamos políticas repressivas em relação às drogas”, explica-nos Mujica. “E,
passado um século, concluímos que essas práticas resultaram num fracasso incontestável.”
O ministro da Defesa uruguaio, Eleutorio Huidobro – outro ex-tupamaro que ficou
preso no fundo de um poço por vários anos –, nos faz uma síntese da tomada de
consciência que levou o governo de seu país a dar esse passo histórico: “Se não
fizéssemos isso agora, o que aconteceu com o México acabaria acontecendo em
nosso país. E estaríamos em maus lençóis”. Na verdade, o Uruguai se situa numa
das principais rotas continentais da droga, seguida pela cocaína boliviana e
pela maconha paraguaia antes de tomar o rumo da Europa. Segundo o deputado
Sebastián Sabini, um homicídio em três no país está associado ao narcotráfico.
É a política de proibição, insiste Huidobro, que criou o
narcotráfico e a violência dela decorrentes: “Ao reprimir a legalização da
marijuana, o que se faz é colocar os benefícios desse mercado nas mãos dos
criminosos e transformar os traficantes em uma instituição superpoderosa”. Numa
economia ilegal, os litígios não são resolvidos por um tribunal, mas pelo
terror. Da mesma forma como a proibição da bebida concebeu Al Capone e o
massacre do Dia de São Valentim,2 a gangue dos Zetas e a carnificina sem fim
que enluta o norte do México são frutos naturais da proibição dos
entorpecentes. “A guerra dos Estados Unidos à droga causa mais dano do que a
própria erva”, enfatiza Huidobro. “Ela provoca infinitamente mais vítimas,
infinitamente mais instabilidade. Ela coloca para o planeta um problema bem
mais grave do que qualquer droga. O remédio é pior do que a doença.”
O governo de Mujica considera a erradicação do comércio de
drogas uma utopia fantasiosa. O slogan da ONU – “Um mundo sem drogas. É
possível alcançá-lo” – parece-lhe um grande absurdo. O chefe de gabinete da
presidência, Diego Cánepa, defende que a alteração química da consciência é
resposta a um desejo básico da espécie humana, manifestado em todas as
sociedades conhecidas.
A mobilização de tropas tem como único efeito o deslocamento
do tráfico em algumas centenas de quilômetros. Os especialistas o definem como
“efeito balão”: quando se aperta o dedo no balão cheio de ar, a circunferência
dele aumenta sob o efeito da pressão. Os locais de produção atacados na
Colômbia reapareceram na Bolívia, as redes desmanteladas no Caribe se
reconstituíram no México etc. No máximo, conseguimos afastar o problema em vez
de extingui-lo.
A partir dessa constatação, Mujica concluiu que, “uma vez
que o mercado já existe, é preciso regulamentá-lo, fazê-lo sair das sombras
para tirá-lo dos traficantes”. Nos Estados Unidos, a legalização do álcool em
1933 pôs fim ao tráfico de destilados de má qualidade e aos assassinatos entre
concorrentes. A Budweiser não é chegada à filantropia, mas pelo menos não
defende sua fatia de mercado acabando com funcionários da Guinness. Da mesma
forma, a legalização da maconha – e sua comercialização em farmácias
estabelecidas legalmente – tira o pão da boca do crime organizado. Por outro
lado, os impostos cobrados podem servir para financiar centros de tratamento
para dependentes e programas de prevenção contra o consumo de tóxicos.
Os adeptos sul-americanos da legalização não estão
pretendendo enaltecer os benefícios da maconha nem estimular o consumo – o
presidente Mujica não hesitou em qualificar os usuários de drogas leves de
nabos, termo pejorativo que significa literalmente “nabos”. Eles estimaram, em
contrapartida, que um “baseado” não é mais nocivo do que um copo de bebida
alcoólica e que, portanto, era preciso ajustar-se à situação.
Doces com psicotrópicos
Os reformistas uruguaios não ignoravam que iam bater de
frente com a indignação dos adeptos da proibição. Por décadas, estes últimos
acenaram com o espectro de que a legalização seria sinônimo de caos e
depravação, que convidaria crianças a correr até a confeitaria da esquina para
se abastecer de psicotrópicos − ao que os uruguaios retrucam que caos é o que o
continente deles vive no presente momento. A reforma que defendem visa
exatamente ao oposto: retomar o controle do mercado para poder dominá-lo.
Segundo eles, os adolescentes serão os principais beneficiários. Sabe-se que o
consumo regular de maconha pelos mais jovens pode alterar-lhes as faculdades mentais
e que é vital dissuadi-los do consumo. Hoje, os jovens norte-americanos
preferem a maconha ao álcool,3 pela simples razão de que um traficante
raramente pede um documento de identidade ao cliente. Em contrapartida, o
farmacêutico está mais inclinado a respeitar a lei, caso contrário pode perder
sua licença.
Pelos quatro cantos do mundo, são numerosos os legisladores
e representantes do aparato policial a reconhecer, em caráter privado, as
vantagens da legalização. No Uruguai, eles o fazem abertamente e agem de
acordo. Por que eles, por que aqui? Por que razões os obstáculos
intransponíveis lá fora – a inércia, o medo de desagradar aos Estados Unidos, o
temor da opinião pública – são mais fáceis de ser vencidos no Uruguai do que em
outra parte?
São diversos os fatores que se combinam. O primeiro diz
respeito ao vigor excepcional do movimento antiproibicionista, atiçado por uma
série de injustiças ostensivas. Em abril de 2011, por exemplo, uma professora
da academia militar, Alicia Garcia, de 66 anos, foi presa por cultivar alguns
pés de Cannabis em sua residência. Ela encarou vinte meses de prisão por
produção ilegal para uso comercial. Formou-se então, em torno dela, uma rede de
apoio à qual se associaram os jovens parlamentares do Movimento de Participação
Popular (MPP), o partido de Mujica, em defesa da legalização.
Ao mesmo tempo, a autoridade dos Estados Unidos em relação
ao assunto começou a vacilar. Em 2013, os estados do Colorado e de Washington
adotaram uma lei, aprovada por meio de referendo, que legaliza o uso, a
produção e a venda da marijuana. As autoridades norte-americanas estariam, a
partir de então, em situação menos vantajosa para coibir ou punir países
desejosos de fazer o mesmo.
Enfim, a popularidade e a determinação do presidente uruguaio
exerceram um papel fundamental. Sem dúvida, depois de sobreviver anos no fundo
de um poço, fica-se mais bem equipado para resistir a pressões, tanto internas
como externas.
Até hoje, entretanto, Mujica e seus aliados ainda não
obtiveram êxito em persuadir a maioria de seus compatriotas, atraindo-os para a
causa. Mesmo considerando que, ao longo do tempo, a legalização conta com uma
adesão crescente, há ainda 60% de opiniões contrárias, segundo as pesquisas. Os
oponentes alegam três objeções. Em primeiro lugar, o efeito de um ganho
inesperado: “A partir do momento em que se legaliza uma droga, as pessoas
passam a consumi-la em maior quantidade”, afirma a deputada Verónica Alonzo. O
argumento parece sensato; no entanto, os fatos o contradizem. Na Holanda, onde
a venda da maconha nos coffee shops foi autorizada em 1976 (as autoridades
renunciaram a uma legalização formal para não transgredir abertamente os
tratados da ONU), os usuários representam apenas 5% da população, contra 6,3%
nos Estados Unidos e 7% no conjunto da União Europeia.4 A imagem de uma corrida
às farmácias uruguaias parece assim algo fantasioso.
A legalização da cocaína?
O segundo medo é que a legalização da Cannabisincite os
usuários a recorrer a drogas pesadas, especialmente a pasta-base, um derivado
da cocaína comparável ao crack que faz estragos nas camadas menos favorecidas
da população uruguaia. É a teoria chamada da “porta aberta”: um vício menor
leva necessariamente a um mais grave. Raquel Peyraube, especialista no
tratamento de toxicômanos, não acredita nisso, nem por um segundo. Segundo ela,
é justamente o contrário: a proibição é que, por meio do monopólio que confere
aos traficantes, orienta os usuários de maconha na direção de produtos mais
perigosos. “No supermercado, compramos coisas de que não precisamos porque nos
mostram ou porque as tornam atraentes para nós”, explica. “Da mesma forma, os
traficantes vão tentar empurrar cocaína e outras substâncias para seus
clientes. A proibição faz a cama das drogas pesadas.” A análise foi confirmada
por um estudo recente realizado pela Open Society Foundations, a rede de
fundações criada pelo milionário George Soros: ela verificou que a Holanda
apresenta os índices mais baixos de toxicômanos da Europa, precisamente por ter
mantido as drogas pesadas afastadas da maconha.5
Raquel também rechaça a ideia segundo a qual a legalização
provocaria uma elevação dos casos de esquizofrenia. Se houvesse uma ligação
entre a maconha e a aparição da doença, afirma, as taxas de esquizofrênicos
teriam explodido ao longo das últimas décadas, já que é incontestável que o
consumo de maconha não parou de crescer em numerosos países ou permaneceu
estável. Segundo a médica, é possível, em contrapartida, que os esquizofrênicos
consumam essa droga com mais frequência do que a média em função de seu efeito
relaxante, o que explicaria a correlação.
A essas críticas junta-se outra, mais séria, que não deixa
de sensibilizar certos membros da administração uruguaia. A maconha não passa
de uma mercadoria entre outras no mercado de drogas ilícitas. Certamente a
legalização vai reduzir o mercado, mas conserva intacto o comércio dos produtos
mais rentáveis. Para abalar de fato o poder dos cartéis, o coerente seria ir
mais além e regulamentar o circuito de todas as drogas cuja demanda é elevada.
Com certas drogas, como o ecstasy e a cocaína, seria o caso de regular a venda;
com outras, como a heroína, seria, sem dúvida, mais recomendável uma
distribuição sob prescrição médica, conforme sugerem as experiências-piloto
realizadas na Suíça.
“Vai levar algum tempo”, reconhece Sebastián Sabini, o
representante do MPP mais envolvido com a reforma. “Mas quando chegar o dia,
quando for a hora das outras drogas, estaremos prontos para defender nossa
causa perante a população.” Aquele que os observadores consideram como o futuro
sucessor do chefe de Estado já se pronunciou como favorável à legalização da
cocaína.
Existe ainda uma alternativa? Qual é a vantagem em teimar em
perseguir aquilo que Huidobro chama de uma guerra “já perdida”? Esperando que
os políticos de seu país decidam reagir, a mexicana Emma Veleta chora o
desaparecimento de oito familiares, sequestrados por traficantes com a provável
cumplicidade das autoridades locais.6 Conforme observado por David Simon, o
criador da série televisiva The Wire, os Estados Unidos poderiam muito bem ser
tentados a conduzir sua luta contra a droga “até o último mexicano”.7
Johann Hari
Jornalista
Ilustração: Lorenzo Gritti
1 Ler Jean-François Boyer, “Mexico recule devant les
cartels” [México recua diante dos cartéis], Le Monde Diplomatique, jul. 2012.
2 No dia 14 de fevereiro de 1929, a máfia de South Side,
comandada por Al Capone, armou uma emboscada contra a de North Side, sob o
controle de Bugs Moran, e assassinou sete de seus membros.
3 Tom Fielding, The candy machine: how cocaine took over the
world [A máquina de doces: como a cocaína dominou o mundo], Penguin, Londres,
2009.
4 “Dutch fear threat to liberalism in ‘soft drugs’ curbs”
[Holandeses temem ameaça ao liberalismo em freios às “drogas leves”], Reuters,
10 out. 2011.
5 “Coffee shops and compromise: separated illicit drug
markets in the Netherlands” [Coffee shops e compromisso: mercados de drogas
ilícitas separados na Holanda], Open Society Foundations, Nova York, jul. 2013.
Disponível em: .
6 “La pesadilla de perder a toda su familia en Chihuahua” [O
pesadelo de perder toda a família em Chihuahua], 28 maio 2012. Disponível em: .
7 David Simon, “A fight to the last Mexican” [Uma luta até o
último mexicano], 10 jul. 2012.
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