Não temos ainda o melhor dos mundos, mas o texto aprovado é
sem dúvida o melhor do mundo.
Paulo Rená da Silva Santarém (*) - Carta Maior
Passados 25 anos desde a promulgação da Constituição Federal
de 1988, bem como desde que Tim Berners-Lee deu corpo ao que viria a ser a
world wide web, hoje o Brasil e o mundo inteiro precisam responder duas
importantes perguntas. Primeiro, quais são as exigências que a sociedade e as
comunicações em rede colocam para o campo da política no início do séc. XXI? E,
segundo, quais as exigências que a política e a democracia da sociedade do séc.
XXI colocam para as novas tecnologias de informação e comunicação?
Existe a tentação da resposta simples, por exemplo, de que a
sociedade e as comunicações exigem uma política mais ágil e veloz, e que as
tecnologias precisam viabilizar mais participação popular. Ou de que a política
precisa se modernizar e a tecnologia precisa estar acessível às pessoas. Mas
descendo a toca do coelho, o buraco é mais embaixo.
O que essas respostas não observam é a necessidade de que o
povo mesmo possa determinar qual a sua identidade, a necessidade de que a
própria sociedade delineie seu horizonte político, indicando, por exemplo, qual
a velocidade e a transparência com que os processos políticos tradicionais
devem se desenvolver, ou qual o modelo tecnológico de desenvolvimento que o
país deve adotar. Essas duas práticas de autodeterminação, no entanto, exigem
que o povo se coloque e seja reconhecido como protagonista tanto de sua
política, quanto da tecnologia.
Esse é o aspecto mais importante no qual o Marco Civil da
Internet, aprovado essa semana pela Câmara dos Deputados, que justifica o seu
apelido de "Constituição da Internet". O seu processo de elaboração é
o elemento central. A mesma lista de direitos fundamentais para o uso da rede
no Brasil não teria o mesmo peso se tivesse sido baixada por medida provisória
lá atrás, em meados de 2009. O Marco Civil da Internet constituiu algo maior: a
partir de agora, o conjunto de internautas representa um novo sujeito coletivo
de direitos, uma nova coletividade de cidadãos ligados pelo uso da rede, que em
inglês tem sido chamada de netizens.
Nessa história recente e ainda inacabada, a releitura dos
direitos de liberdade, igualdade e fraternidade para a web tem suas raízes
expostas na mobilização social contrária ao projeto de cibercrimes. As
propostas de identificação obrigatória, de armazenamento de registros e de
responsabilização de intermediárias foram contestadas, de um lado, como
entraves à inclusão digital, ou seja, uma barreira à própria inclusão social e
ao exercício pleno da cidadania; de outro lado, a criminalização indistinta de
práticas cotidianas de milhões de usuários da Internet foi combatida como um
obstáculo ao uso e desenvolvimento da tecnologia.
Essa dupla face, política e tecnológica, confluiu para
diversos momentos chave, gerando uma recente petição eletrônica com centenas de
milhares de assinaturas. Mesmo em sua irrelevância do ponto de vista formal,
ela serviu para registrar numericamente a legitimidade dos interesses e invocar
muitas outras pessoas de diversos segmentos que sentiram à vontade para apoiar
a causa.
Há ainda muito a ser feito. Lembremos que a mesmo a
Constituição no Brasil demorou muitos anos até garantir a igualdade de direitos
trabalhistas para as empregadas domésticas. A próxima luta no Marco Civil será
aprimorar a questão da retenção de dados, prevista no art. 15 como uma
obrigação das empresas, quanto na verdade a demanda social é por uma navegação
livre de monitoramento. Mas cada internauta pode respirar um pouco e se
permitir comemorar: ainda que imperfeita, a aprovação do Marco Civil na Câmara é
uma grandiosa vitória.
Não temos ainda o melhor dos mundos, mas o texto aprovado é
sem dúvida o melhor do mundo, e todos os louros devem ser sempre ligados a esse
momento constituinte no Brasil, de renascimento do povo como sujeito político,
agora atuante também sobre o espaço público virtual. Chegamos ao final de uma
etapa na jornada de construção cujo significado extrapola o próprio projeto do
Marco Civil.
Há muitas razões para que dizer que o Brasil pode se
orgulhar do seu papel atual no cenário internacional. O Marco Civil elimina o
fantasma do complexo de vira-lata e se alinha ao desempenho do país em outras
áreas da política externa. Em vez de apenas aderir a termos internacionais –
tais como a Convenção de Budapeste, o ACTA e o TPP – hoje o País protagoniza a
esperança por mudanças radicais, não apenas na tecnologia, mas também na
democracia.
Assim como a Constituição de 1988 somente pode ser chamada
de cidadã em função da participação social no processo que culminou com sua
promulgação, o Marco Civil só pode ser apelidado de Constituição Brasileira da
Internet em decorrência da parceria firmada entre o Estado e a sociedade civil
para a afirmação dos direitos fundamentais e a garantia das liberdades também
no ambiente virtual.
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(*) Paulo Rená da Silva Santarém é Mestre em Direito,
Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integra o grupo de
pesquisa Cultura Digital e Democracia e dirige o Instituto Beta Para Internet e
Democracia. É fundador do Partido Pirata do Brasil e foi gestor do projeto de
elaboração do Marco Civil da Internet no Ministério da Justiça.
Créditos da foto: Luis Macedo/ABr
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