Os cinco dias de vivência que tive no mundo zapatista não
foram suficientes para uma compreensão plena da complexidade de seu
funcionamento, da relação entre as instituições armadas e políticas e da
dinâmica de liderança. Pude ver, porém, o comprometimento da luta dos indígenas
chiapanecos
por Felipe Addor
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O contexto histórico
Há pouco mais de trinta anos, um grupo de seis militantes de
esquerda, sendo três indígenas,1 embrenharam-se nas selvas do estado de
Chiapas, um dos mais ricos e desiguais do México, com um único objetivo:
constituir um foco de resistência aos avanços das políticas que atentavam
contra o bem-estar da população mexicana e promoviam a privatização e a
concentração das propriedades rurais. Graças à convivência de aprendizado mútuo
com as comunidades indígena descendentes dos povos maias, começou a
consolidar-se uma nova luta, que misturava a formação socialista daqueles
militantes com a cultura indígena, baseada na organização comunitária, nas
decisões coletivas e na luta pela autonomia. Não menos importante,
desenvolveu-se uma sólida formação militar, que tinha como estratégia o
conhecimento dos meandros do território da Selva Lacandona.
No dia em que Estados Unidos, Canadá e México assinaram o
Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), estabelecendo
definitivamente a economia mexicana como apêndice da maior economia mundial, os
indígenas de Chiapas tornaram pública a luta do Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZLN). Naquele 1o de janeiro de 1994, os zapatistas ocuparam
cidades da região com o intuito de anunciar sua luta e expulsaram
latifundiários instalados em suas antigas terras. Uma das principais bandeiras
foi a recuperação das terras comunitárias, el ejido.
A referência a Emiliano Zapata, líder guerrilheiro da
Revolução Mexicana do início do século XX (1910-1920), faz-se pela perspectiva
rural de sua luta e pelo objetivo da autonomia.2 Os indígenas liderados por
Zapata lutavam contra a concentração fundiária e queriam retomar os ejidos como
política agrícola. Embora as frentes populares de base não tenham conseguido
efetivamente tomar o poder, a força das revoltas e a forte instabilidade
política cravaram as demandas na Constituição de 1917. A demanda pelo
restabelecimento do sistema de terras comunitárias só foi atendida, no entanto,
por Lázaro Cárdenas (1934-1940), que ampliou de 6,3% para 22,5% a participação
ejidal nas terras agrícolas.3
Recentemente, o presidente Carlos Salinas de Gortari
(1988-1994), com uma clara agenda neoliberal, foi quem atacou mais duramente as
propriedades comunitárias. Sob o manto da promoção de uma “reforma agrária” que
impulsionasse a produção agrícola, Salinas aprovou, em 1991, uma mudança das
leis agrárias, que passaram a permitir a venda dos ejidos, o que levou a um
aprofundamento da concentração fundiária.
O Levante Zapatista em 1994
O processo inicial de lançamento do movimento inaugurou uma
de suas características principais: o intenso diálogo com as comunidades
indígenas que compunham sua base. A coordenação do movimento consultou cerca de
quinhentas comunidades indígenas, que optaram pelo conflito armado. Capitaneado
por seu Comité Clandestino Revolucionario Indígena – Comandancia General
(CCRI-CG), oEZLN estourou uma revolta de resistência às políticas neoliberais,
retomando terras e ocupando sete capitais municipais de Chiapas. O movimento
fez sua primeira Declaración de la Selva Lacandona, na qual traçou seu
histórico de formação, exaltou que sua luta vinha de abajo y a la izquierda,
apresentou sua insígnia de luta democracia, libertad y justicia, e conclamou
todo o povo mexicano a integrar-se à luta.4
O conflito armado foi intenso, mas não longo. As forças
oficialistas eram muito mais fortes que as rebeldes. Entretanto, a capacidade
destas de utilizar o território a seu favor permitiu uma sólida resistência. A
população mexicana mobilizou-se contra o conflito armado, e as partes
negociaram um cessar-fogo um mês depois do início dos enfrentamentos. Nesse
momento, o EZLN decidiu, após consulta às suas bases e fundamentado na
percepção da vontade da maioria do povo mexicano, manter o cessar-fogo ofensivo
indefinidamente (mantendo seu poderio militar apenas para ações defensivas) e
começou a empreender uma luta não militar, com as mesmas bandeiras, mas com
outro método.5
Desde então, o movimento vive em constante luta, com maior
ou menor tensão com o Estado mexicano, de acordo com o governo em questão.
Houve uma tentativa de resolução dos conflitos por meio dos Acuerdos de San
Andrés, em 1996. Entretanto, o não cumprimento do acordo pelo governo fez que o
EZLN buscasse encaminhar as demandas de forma autônoma. Embora, nesse período,
não tenha havido ataques militares governamentais explícitos às comunidades
zapatistas, são relatados vários casos de conflitos com grupos paramilitares,
alguns apoiados pelo governo.6 Além disso, o Estado busca enfraquecer a luta
com tentativas de cooptação de comunidades e com simulações de acordos com
comunidades pretensamente zapatistas. É o que os indígenas chamam de guerra de
baja intensidad.
Como resposta a isso, esporadicamente o EZLN realiza grandes
marchas e atos, cujo objetivo principal é mostrar à população mexicana que sua
luta segue em frente. Podemos destacar: Marcha de la Dignidad Indígena, em
2001, retratada no documentário Marcos, aquí estamos; La Otra Campaña, iniciada
no contexto eleitoral de 2006, que se tornou um movimento pela transformação do
sistema político; e Marcha del Silencio, em dezembro de 2012, quando cerca de
40 mil zapatistas encapuzados atravessaram, silenciosamente, cinco cidades de
Chiapas.7
Na sexta e última de suas Declaraciones de la Selva
Lacandona, de 2005, o EZLN reforçou o caminho da luta política com iniciativas
pacíficas e destacou o objetivo de “defender, apoiar e acatar as comunidades
indígenas zapatistas que integram e são seu comando supremo, e, sem interferir
em seus processos democráticos internos e dentro de suas possibilidades,
contribuir para o fortalecimento de sua autonomia, bom governo e melhora de
suas condições de vida”.
A construção da autonomia zapatista
O abandono dos Acuerdos de San Andrés, que previam o direito
à livre determinação dos povos indígenas e sua autogestão política comunitária,
fez os zapatistas buscar sua autodeterminação unilateralmente. As comunidades
começaram a articular-se em Municipios Autónomos Rebeldes Zapatistas(Marez), organizados
em instâncias maiores, denominadas inicialmente Aguascalientes, em referência
ao estado onde, em 1914, foi realizada a Convenção Revolucionária que reuniu as
forças progressistas da Revolução Mexicana.
A partir de agosto de 2003, essa articulação de comunidades
indígenas zapatistas passou a chamar-se Caracol, coordenada por representantes
de cada município na Junta de Buen Gobierno.8 Atualmente, os zapatistas são
centenas de comunidades organizadas em 27 Marez, que se articulam em cinco
caracoles: La Realidad, Morelia, La Garrucha, Roberto Barrios e Oventic. Cada
comunidade tem seu Gobierno Local, que indica representantes para o Consejo
Autónomo de seu município, e estes definem os integrantes da Junta de Buen
Gobierno. A “remuneração” desses representantes é definida e fornecida por sua
comunidade e, em geral, é composta de alimentos oferecidos pelo resto da
comunidade ou de ajuda na colheita de suas terras para garantir a sobrevivência
de sua família. Ademais, esses representantes podem ser destituídos a qualquer
momento.
O território zapatista entrelaça-se com a divisão política
formal do território mexicano. Trafegando em uma estrada, você depara com o
aviso: “Você está entrando em território zapatista”. Podemos dizer que a
estrutura política que o movimento vem consolidando é um Estado dentro do
Estado, ou melhor, um não Estado dentro de um Estado. O mais interessante, e
surpreendente, é ver como o EZLN conseguiu conquistar um sólido respeito,
também por sua resistência militar, mas principalmente pela legitimidade que
conquistou com o povo mexicano, garantindo um pacto de não agressão nesse
cenário contraditório.
Vinte anos do Levante e a Escuelita
O movimento zapatista sempre se preocupou em dialogar com a
população mexicana e os movimentos sociais do resto do mundo. Além das marchas,
o EZLN promoveu seminários internacionais, a maioria em sua sede urbana, o
Centro Indígena de Capacitación Integral – Universidad de la Tierra
(Cideci-Unitierra), na periferia de San Cristóbal de las Casas. Em comemoração
aos dez anos de existência dos caracoles e à proximidade de seus vinte anos de
luta, os zapatistas criaram a Escuela Zapatista Global − Escuelita, para os
íntimos.
Pela ampla articulação que o movimento tem dentro e fora do
México, a oportunidade de conhecer sua experiência, o cotidiano de suas
comunidades e sua forma de organização atraiu um grande número de pessoas para
o curso “La libertad según l@szapatistas”. A primeira edição da
Escuelitaocorreu em agosto de 2013, com 1.281 alunos. Embaladas pelas
comemorações dos vinte anos, foram feitas mais duas edições, entre os dias 25 e
29 de dezembro de 2013, e entre os dias 3 e 7 de janeiro de 2014, com 2.250
vagas para cada uma. Desta última, eu participei.9
A programação inicia-se no Cideci com o registro dos alunos,
que são distribuídos entre os cinco caracoles (fui para La Garrucha, seis horas
de viagem). O primeiro e o último dia de curso são realizados nos caracóis, e
os três dias restantes servem para vivenciar o cotidiano das comunidades
zapatistas. Ao chegar, o aluno recebe quatro apostilas que devem ser lidas até
o último dia do curso.10
A origem dos estudantes é diversa. Diria que entre 60% e 70%
são mexicanos; de 15% a 20%, de outros países da América Latina; quantidades
significativas dos Estados Unidos e Europa; e pessoas isoladas de todo o mundo.
Para cada um dos alunos foi designado um guardião para acompanhá-lo e garantir
o bem-estar de seu protegido. Provavelmente, esse procedimento também tem a
função de ter controle para o caso de haver alunos infiltrados pelo Estado
mexicano.
No primeiro dia, na cabeceira do caracol, houve uma longa
exposição de mais de quarenta maestros indígenas, que se dividiram em pequenas
falas sobre seu contexto de luta e, particularmente, as diferentes vertentes de
conflito com los malos gobiernos: militar, cultural, política e econômica. Para
além da estrutura política formal, discorreram sobre os sete princípios que
regem a atuação dos representantes em relação às bases, fazendo claras
referências aos problemas e vícios antidemocráticos do sistema tradicional:
obeceder y no mandar; proponer y no imponer; representar y no suplantar;
convencer y no vencer (as políticas devem ser feitas em diálogo); bajar y no
subir (manter contato próximo com as bases); servir y no servirse; construir y
no destruir(aproveitar iniciativas e ideias de outrem, em lugar de
desqualificá-las).
Nos três dias de vivência, estive na comunidade Colombia, no
Municipio Autónomo Francisco Gómez, com cerca de cem moradores. Jogavam futebol
quase todo final de tarde e tinham missa aos domingos. Mostravam com muito
orgulho sua plantação (milho, feijão, café, abóbora, cana, entre outros
produtos) e o fato de terem toda a sua sobrevivência garantida pelos frutos
retirados daquelas terras. As comunidades zapatistas não têm nenhuma relação
com o Estado. Não pagam impostos, não recebem água encanada, luz ou qualquer
benefício. Os zapatistas têm suas próprias escolas, com uma metodologia própria
de ensino, e seus postos de saúde, nos quais convivem medicina indígena e
ocidental. Só utilizam hospitais nas cidades em caso de necessidades extremas.
À primeira vista, chega a ser incompreensível uma comunidade
querer tornar-se zapatista, já que essa escolha a impede de ter acesso a
diversas benesses. A água vem de poços ou pequenos rios, e alguns possuem uma
placa de energia solar para acender uma luz à noite ou ouvir rádio. Mas, quando
perguntados sobre o motivo de sua orientação zapatista, não pestanejam: la
tierra. A luta pela autonomia dos territórios zapatistas tem como questão-chave
a posse coletiva das terras, el ejido, que garante o acesso a todos os
moradores. Todo o excedente alimentar é vendido para as comunidades partidistas
(que têm relação com o governo), nas quais a terra está concentrada na mão dos
grandes fazendeiros e a principal renda das pessoas vem de políticas sociais do
Estado.
Uma presença constante nas refeições e nos momentos de
descanso é a Radio Insurgente, provavelmente seu principal meio de difusão de
informações e formação política. Todas as músicas têm conotação política e
trazem o contexto da luta política no México. Nos intervalos, são lidas
mensajes destinadas à formação política dos ouvintes, com títulos como: Qué es
el capitalismo; Qué es el neoliberalismo.
Infelizmente, por questão de segurança, não estava no
programa a discussão sobre o funcionamento do espaço político local. Embora os
alunos que estavam na comunidade tenham solicitado, o receio que
identificássemos as lideranças locais, sem seus pasamontañas (capuzes), impediu
o encontro. Mas pude presenciar alguns momentos de tomada de decisão coletiva,
embora em tzeltal (língua principal em La Garrucha), sobre questões
relacionadas à comunidade.
No último dia, voltamos ao caracol, onde houve uma atividade
para tirar dúvidas e mensagens finais, além de uma confraternização, sem bebida
alcoólica, proibida em território zapatista por uma reivindicação das mulheres,
que têm em sua Ley Revolucionaria de las Mujeres um importante instrumento de
luta pela igualdade de gênero, ainda mais em se considerando o contexto rural
indígena. Após uma noite maldormida, às 4h da manhã partimos de volta a San
Cristóbal de las Casas.
Certamente, os cinco dias de vivência no mundo zapatista não
foram suficientes para ter uma compreensão plena da complexidade de seu
funcionamento, da relação entre as instituições armadas e políticas e da
dinâmica de liderança. Entretanto, pude ver a profundidade e o comprometimento
da luta dos indígenas chiapanecos, o desejo de transformação que possuem e sua
capacidade de organização, que vem desde as bases. Fico, junto aos outros
alunos, no aguardo de uma prometida continuidade da Escuelitapara vivenciar
novamente a bela luta de um aguerrido povo latino-americano, que mostra que é
possível mudar o mundo sem tomar o poder.
Felipe Addor
é doutor em Planejamento Urbano e Regional e coordenador do
Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/UFRJ)
Ilustração: Adriana Moreno
1 Emilio Gennari,
EZLN: passos de uma rebeldia, Expressão Popular, São Paulo, 2005.
2 “Durante todo o ano
de 1915, os camponeses de Morelos viveram uma experiência única na história do
México: estabeleceram seu próprio poder, ditaram suas leis por meio de um
governo que se apoiava em suas armas, as aplicaram mediante seus órgãos de
autogoverno – os pueblos –, designaram seus dirigentes locais, expropriaram
terras e engenhos”. Adolfo Gilly apud Carlos Alberto Sampaio Barbosa, A
Revolução Mexicana, Unesp, São Paulo, 2010.
3 “Las
transformaciones del cardenismo”, Secretaría de Desarrollo Agrícola,
Territorial y Urbano.
4 Para legitimar sua
luta, citam uma parte da Constituição mexicana: “A soberania nacional reside
essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se
institui em benefício deste. O povo tem, a qualquer momento, o direito
inalienável de alterar ou modificar sua forma de governo”.
5 O subcomandante
Marcos destacou a necessidade de mudança de estratégia nesse momento: “Nosotros
pensábamos que el pueblo o no nos iba a hacer caso o se iba a sumar a nosotros
para pelear. Pero no reacciona de ninguna de las dos maneras. Resulta que toda
esa gente, que eran miles [...], no quería alzarse con nosotros, pero tampoco
querían que peleáramos, y tampoco querían que nos aniquilaran. Querían que
dialogáramos. Eso rompe todo nuestro esquema y acaba por definir al zapatismo”.
Informe EZLN, 18 jan. 1994.
6 Um dos conflitos
mais destacados é a Matanza de Acteal (1997), quando um grupo paramilitar matou
45 indígenas da etnia tzotzil que estavam em uma capela, celebrando uma missa.
7 Após a marcha, os
zapatistas publicaram a seguinte nota: “A quién corresponda: ¿ESCUCHARON?/ Es
el sonido de su mundo derrumbándose./ Es el del nuestro resurgiendo./ El día
que fue el día, era noche./ Y noche será el día que será el día. ¡DEMOCRACIA!
¡LIBERTAD! ¡JUSTICIA!”.
8 Os zapatistas fazem
referência aos diferentes níveis do governo oficial como los malos gobiernos.
9 Um relato mais
detalhado da vivência na Escuelita está no site .
10 Os
títulos dessas apostilas são: Gobierno autónomo I, Gobierno autónomo II,
Resistencia autónoma e Participación de las mujeres en el gobierno autónomo.
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