por Silvio Caccia Bava/ http://www.diplomatique.org.br/
Para muitos, a divisão política entre direita e esquerda soa
hoje como um anacronismo. Essa divisão não é uma coisa do passado que está
superada? Falar de direita e esquerda no século XXI, com a revolução nas
tecnologias, as profundas transformações nas classes trabalhadoras e nas
relações de poder, com a internet convocando mobilizações, não é saudosismo? A
resposta é não. Enquanto o capitalismo produzir e aumentar em nossas sociedades
a desigualdade social, ampliar o fosso entre ricos e pobres, colocar na miséria
um contingente crescente de trabalhadores, é preciso enfrentar esse modelo de
produção e organização social que assume, em sua última forma, o nome de
neoliberal. É o que defendem, por exemplo, os movimentos Occupy, nos Estados
Unidos, quando contrapõem os interesses dos 99% da população aos do 1% mais
rico.
A diferença básica é o que se faz com a riqueza produzida. O
neoliberalismo mobiliza a sociedade e seus recursos para aumentar o lucro das
empresas, especialmente das transnacionais, não importa o custo social. A
esquerda quer que essa riqueza se transforme em bem-estar para toda a sociedade
e busca justiça social.
Segundo a pesquisa Datafolha, de dezembro de 2013, sobre o
perfil ideológico dos brasileiros, 41% se identificam como sendo de esquerda ou
centro-esquerda e 39% se identificam como sendo de direita ou centro-direita.
Tanto as perguntas quanto as respostas tornam claro que essa é uma questão
viva. Evidentemente, os 39% de direita não são, em sua grande maioria,
capitalistas, mas pessoas que se convenceram do discurso da direita e assumem
seus valores e expectativas. Sua maior concentração é nas camadas mais pobres e
menos escolarizadas da sociedade.
Para não ficarmos nos estereótipos, criados pela ideologia
conservadora para desqualificar qualquer possibilidade de transformação social
e oposição ao capitalismo, precisamos aprofundar nosso entendimento sobre os
significados dessa divisão entre direita e esquerda.
O ponto de partida é histórico. Assim como em outros
momentos, a esquerda já foi contra o fascismo, já defendeu o Estado de
bem-estar social e o nacionalismo; na atualidade, a esquerda se opõe às
políticas neoliberais. Essas políticas querem a eliminação de direitos e
benefícios sociais e trabalhistas conquistados e a destruição de políticas
públicas garantidoras desses direitos. Sem esses gastos, os capitalistas
aumentam sua margem de lucro.
A esquerda, em seus vários matizes, está de acordo sobre
questões essenciais: defender direitos, benefícios e garantias sociais e
trabalhistas que foram conquistas com muita luta e sacrifício e se veem
ameaçadas pelas políticas neoliberais. A esquerda vai muito além disso,
propondo políticas públicas universais e de qualidade, lutando para que elas se
transformem em bens públicos comuns, isto é, bens disponíveis para todos,
gratuitos, custeados pelos impostos de todos, e não pagos pelos usuários.
Moradia, luz, gás, água, transportes públicos, educação, saúde, coleta do lixo,
equipamentos de esportes são serviços de responsabilidade do Estado que podem
se converter em bens públicos comuns.
Ser de esquerda é propor a sustentabilidade ambiental, a
diversidade cultural, a igualdade entre raças e gêneros, a segurança alimentar,
uma nova política para drogas e aborto. É ser um cidadão ativo pela paz, com
liberdade e justiça.
Ser de esquerda é desvendar os mecanismos de exploração e
opressão e debatê-los publicamente, enfrentar as políticas geradoras da
desigualdade social, como a política tributária ou a fixação da taxa Selic, e
propor a inclusão social e política dos mais pobres, garantindo concretamente
direitos para todos.
Desde os anos 1970, a esquerda no Brasil vive uma
transformação profunda e substitui a ideia de revolução pela defesa de uma
democracia com igualdade e a justiça social. A descentralização e o controle
social das políticas públicas e a participação cidadã na gestão pública são
elementos centrais do novo projeto.
E por que a democracia é essencial? Porque são as pressões e
mobilizações sociais que estendem os direitos sociais e políticos para quem não
os tinha e ampliam sua cobertura a todos. A democracia serve para tornar
universais direitos que antes eram restritos a poucos.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
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