Victor Neiva
Sempre gostei de Kafka. Todos citam mais “O Processo”, mas o
que mais me instigou, talvez por ler na adolescência, foi “A Metamorfose”. A
ideia de, não mais que de repente, acordar um inseto e ter que lidar com todas
as agruras dessa situação é realmente algo inusitado e profundo.
Embora pareça absurda, acabei dando um significado a esta
história em minha vida particular. Quando estudante, em uma resenha, utilizei
essa situação para refutar a diferença entre direito e moral que nos ensinavam
no curso de Direito, de que a moral era uma sanção íntima do indivíduo e o
Direito uma sanção social. De fato, ao ter virado inseto não se pode dizer que
a personagem havia infringido qualquer norma jurídica, mas o estado de
execração pública o submeteu a viver no esconderijo.
Tenho para mim que esse é o caso de Joaquim Barbosa. Não
creio que saia para ser político ou para desempenhar algum outro papel em nossa
sociedade. Sai para não ser visto ou só sê-lo em Miami no apartamento que
comprou praticando elisão fiscal ao indicar o imóvel funcional como sede de
empresa.
Realmente impressiona a repugnância gerada por sua passagem
no Supremo no meio jurídico. Não são apenas seus pares ou o medo de uma derrota
acachapante que exponha a arbitrariedade da não concessão do regime semiaberto
para réus da AP 470. Advogados, membros do Ministério Público e mesmo as
associações de magistrados são unânimes em criticar de forma contundente a
conduta do eminente ministro. Além disso, a boçalidade demonstrada a partir dos
holofotes tornou impossível a sua defesa até para aqueles a quem ele se
demonstrou útil.
Ocorre que, ao contrário de Gregor – a personagem principal
de A Metamorfose, Joaquim Barbosa fez por onde ser tratado como barata pela
história e pela comunidade jurídica. A empáfia e o desprezo pelos mais
basilares princípios da ordem jurídica, a agressividade e o desrespeito aos
demais operadores do Direito, sejam magistrados ou magistrados. Também ao
contrário de Gregor, que não descumpriu qualquer norma, pode-se afirmar
categoricamente que, a pretexto de uma interpretação independente, o nosso
inseto em jubilamento cometeu graves ilegalidades. Entretanto, dada a sua
posição, de ministro da Suprema Corte, sua situação se equivale a de quem
apenas descumpriu norma moral, eis que, estando acima da lei, não lhe será
aplicada nenhuma das sanções previstas na legislação para o tipo de abuso
praticado.
E é aí que está o ponto. Se houve uma vantagem na figura de
Joaquim Barbosa como ministro do STF foi colocar sob holofotes o nosso
Judiciário e como ele pode ser independente e até acima da lei. A sua pessoa na
verdade consubstancia, em vários aspectos, a imagem caricata de um Poder
fechado à cidadania e contra os quais, na grande maioria das vezes, não há
alternativa ao abuso.
A melhor crítica favorável a respeito do julgamento do
mensalão não foi com relação aos seus aspectos jurídicos, mas ao fato de, pela
primeira vez, se aplicar a membros da elite política o julgamento cotidiano dos
reles mortais. Ou seja, apesar de ser flagrantemente ilegal, ao menos foi
isonômico em relação à maior parte da população brasileira.
Isonômico é benevolência. Ainda hoje, no Brasil, quase
metade dos presos ainda não tiveram sequer julgamento. Enquanto isso, pessoas
da “nata” continuam se vendo livres porque a ineficiência do Judiciário deixou
que prescrevesses os crimes. Só a título de exemplo, cite-se Paulo Maluf, Jader
Barbalho e, recentemente, José Sarney em relação ao recebimento de informações
privilegiadas para salvar sua poupança da liquidação do Banco Santos. Além
disso, com relação a temas de visceral importância para a nação, como a
proibição de financiamento de campanhas por empresas, estão parados em virtude
de pedidos de vista sem a menor previsão de julgamento, como se a consolidação
de nossa democracia pudesse esperar.
Assim, com a saída de nosso Gregor tupiniquim, é esperada
uma fase de maior recato e discrição no Judiciário, mas, definitivamente, não
perspectivas de democratização do poder, que deveria, como todos, submeter-se à
Lei e à Constituição, prestando contas à sociedade. De fato, que sua execração
não sirva para afirmar que os problemas da Justiça brasileira estão resolvidos
ou sequer melhorados. Nos livraremos sim de um autoritário e inflexível
magistrado, mas não da ineficiência e obscurantismo de um poder que se recusa
terminantemente em tratar a todos igualmente perante a lei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12