Publicado na BBC Brasil. http://www.diariodocentrodomundo.com.br/
Um relatório da organização de
direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em
inglês) acusa a cidade da Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, de confiscar
milhões de dólares de pessoas que nunca foram condenadas ou, muitas vezes, nem
mesmo acusadas de qualquer crime.
Segundo o documento, a quantia
que policiais e promotores confiscam de moradores inocentes ultrapassa US$ 1
milhão por ano. Esse cálculo leva em conta somente dinheiro vivo, não inclui
imóveis ou outros bens apreendidos.
As ações na Filadélfia, assim
como no resto dos Estados Unidos, têm como base leis de combate ao tráfico de
drogas que permitem a policiais e promotores confiscar e manter bens e
propriedades que suspeitem ter relação com algum crime. Essas leis foram
criadas a partir dos anos 1980 para atingir grandes traficantes.
Mas segundo a ACLU e outras
organizações de defesa de direitos civis, elas muitas vezes são usadas contra
cidadãos inocentes e como fonte de renda para as agências do governo
responsáveis por colocá-las em prática.
Diversos casos recentes de
confiscos promovidos por órgãos locais, estaduais ou federais ganharam
manchetes nos Estados Unidos.
Em Michigan, duas fornecedoras de
maconha medicinal (legal naquele Estado) disseram em testemunho diante de
deputados que suas casas foram invadidas por policiais mascarados e armados,
que levaram todos os seus bens, incluindo cortador de grama, bicicleta e US$ 90
que a filha de uma delas havia recebido de presente de aniversário.
Na Carolina do Norte, o dono de
uma loja de conveniências em uma área rural teve todo o dinheiro em sua conta
bancária – US$ 107,7 mil – confiscado porque o governo federal desconfiou dos
depósitos em dinheiro vivo que ele fazia, mesmo sem qualquer indicação de ação
criminal.
Um passageiro de um trem com
destino a Los Angeles teve todas as suas economias (US$ 16 mil) apreendidas por
um policial que desconfiou da quantia – que seria usada para abrir uma empresa
de vídeos.
Segundo reportagem do jornal The
Washington Post com dados federais, desde 2001 a polícia confiscou US$ 2,5
bilhões em dinheiro de pessoas nunca condenadas por qualquer crime.
Filadélfia
O relatório da ACLU, divulgado
neste mês, analisa com base em documentos e entrevistas uma amostra aleatória
de 350 casos de confisco de dinheiro vivo na Filadélfia entre 2011 e 2013.
Ele estima que, nesse período,
metade de todos os casos de confisco de dinheiro vivo envolveu somas menores de
US$ 192, valor muito aquém do movimentado por líderes do tráfico ou do comum
nesse tipo de ação.
O Departamento de Justiça, por
exemplo, estabelece que, em ações levadas adiante pelo governo federal, a
quantia mínima em dinheiro vivo sujeita a confisco é de US$ 5 mil, ou US$ 1 mil
caso haja acusação criminal.
Segundo o relatório, 8% dos casos
de confisco na Filadélfia não envolveram acusação criminal e 23% envolveram
acusações que não resultaram em condenação.
“Longe de perseguir os ganhos
ilícitos de traficantes condenados, o gabinete do procurador da Filadélfia
(órgão equivalente ao Ministério Público Estadual) confisca mais de US$ 1
milhão em dinheiro vivo por ano de cerca de 1,5 mil pessoas que não foram condenadas
por nenhum crime”, diz a ACLU.
A ACLU critica ainda o fato de a
maior parte do dinheiro confiscado ir direto para os cofres desse mesmo órgão,
ele próprio responsável pelo processo de confiscos. Segundo o documento, “são
cerca de US$ 2,2 milhões, ou 7% de seu orçamento.”
“Como resultado, essas agências
têm um forte incentivo financeiro para conseguirem o maior número de confiscos
possível”, diz o relatório. “Evidências preocupantes sugerem que os ganhos e os
amplos poderes oferecidos pelas leis de confisco distorceram uma ferramenta
originalmente destinada a carteis e traficantes.”
O relatório também sugere que a
população negra é penalizada desproporcionalmente. Apesar de representarem 44%
dos moradores da cidade, os negros responderam por 63% dos casos de confisco no
período analisado, e 71% dos casos em que não houve condenação.
Ação civil
O procurador da Filadélfia, Seth
Williams, disse em um comunicado que a ACLU agiu “cínica e falsamente” e
rejeitou as alegações contidas no relatório.
“Confisco não é um processo
criminal. É uma ação civil, como qualquer caso em que alguém é processado por
causar danos a uma pessoa ou propriedade. Se o autor do dano perde a ação, ele
é tão ‘inocente’ quanto o motorista imprudente que bate no seu carro”, diz Williams.
“Se o autor é trazido diante de
um tribunal em uma ação civil e não convence o juiz, concorda que estava errado
ou simplesmente não comparece, ele é responsável, e haverá uma penalidade
civil”, afirma.
Williams diz ainda que seu
gabinete está constantemente preocupado em aumentar as garantias para
proprietários de bens.
“Mas, ao contrário da ACLU, nós
não estamos dispostos a ignorar a parte verdadeiramente inocente aqui: os
residentes desfavorecidos de vizinhanças tomadas pelas drogas. Eles merecem a
mesma proteção da lei e têm o direito de esperar que o sistema de Justiça feche
pontos de drogas e tire armas e dinheiro das mãos de criminosos.”
Processo difícil
Especialistas afirmam que é muito
difícil reaver dinheiro ou bens confiscados, mesmo quando a pessoa é inocente.
Como as leis de confisco são civis, não é necessária condenação nem acusação
criminal.
“Pelas leis de confisco civil, é
dos proprietários o ônus de ir à Justiça e gastar um ano ou mais tentando
provar sua inocência e ganhar seu dinheiro de volta”, diz o advogado Larry
Salzmann, do grupo de direitos civis Institute for Justice, que publicou
recentemente um relatório sobre confiscos feitos pelo Internal Revenue Service
(órgão equivalente à Receita Federal).
Para a ACLU, “a lei é enraizada
em uma contradição básica: que o governo pode confiscar propriedade relacionada
a um crime sem provar que o proprietário é culpado”.
“Como são tecnicamente
procedimentos contra propriedade, não pessoas, os proprietários não têm as
mesmas proteções constitucionais que receberiam se fossem réus acusados de um
crime”, diz a organização.
No caso em que as quantias
confiscadas são baixas, como os revelados no relatório da ACLU, a chance de
reaver o dinheiro é ainda menor, já que os custos com advogados, procedimentos
judiciais e horas perdidas de trabalho superam em muito o valor apreendido.
Diante das crescentes críticas, o
governo federal e vários Estados estão analisando reformas em suas leis de
confisco. Na Pensilvânia, um projeto em discussão estabelece que só é possível
confiscar propriedades permanentemente em casos em que há condenação por algum
crime.
Segundo a ACLU, uma reforma
importante seria garantir que dinheiro e bens confiscados sejam encaminhados
para um fundo estadual ou local e então distribuídos pelo processo normal de
orçamento, “em vez de cair diretamente nos cofres das agências responsáveis por
executar os confiscos”.
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