Segundo o editor Carlos Andreazza, que lançou a campanha
pela 'maioridade intelectual', vivemos o 'triunfo total da não-leitura'.
Marcelo Gruman / http://cartamaior.com.br/
Numa cena de um de meus comediantes favoritos, Jerry
Seinfeld, seu amigo neurótico George se vê às voltas com a necessidade de
resgatar alguns livros deixados na casa de uma moça com quem acabou de terminar
um relacionamento. Jerry não vê problema algum, mas George não gosta da ideia.
Jerry, então, diz para o amigo esquecer os livros, perguntando-lhe se realmente
precisa deles. George diz que sim, que precisa dos livros, e Jerry pergunta por
que. George responde que os livros são seus e que, por isso, precisa deles. E
por que precisa deles?, insiste Seinfeld. George exclama simplesmente “são livros!”.
Seinfeld indaga, então: “Que obsessão é essa com os livros? As pessoas os
colocam em suas casas como se fossem troféus. Para que você precisa deles
depois de serem lidos?”. E ironiza, finalmente, “Sabe, o legal de ler Moby Dick
pela segunda vez é que Ahab e a baleia ficam amigos”.
Quando abro a porta de meu apartamento dou de cara com uma
estante cheia de livros, meus troféus. Ali estão meus favoritos da literatura
brasileira, João Ubaldo, Veríssimo, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Cony, e
também os estrangeiros, Saramago, Roth, Dostoievski, Tchekhov e muitos outros.
Também me orgulha uma pequena biblioteca de livros com a temática judaica e
outra com obras que fizeram e fazem parte de minha formação antropológica. A
reação de quem se depara com as prateleiras cheias de livros é variada, há quem
exclame maravilhado com os títulos ali dispostos, há quem pergunte, à la
Seinfeld, para que tanto livro, para que acumular poeira e traças. No quarto de
meu filho a galeria de troféus aumenta um pouco a cada mês, somando-se ao
folclore brasileiro e gibis da Turma da Mônica e Batman estórias da porquinha
Olivia em português e espanhol e clássicos da literatura estrangeira, como The
cat in the hat. A escola faz a sua parte, o troca-troca de livros entre os colegas
e a ida semanal à biblioteca garante que, pelo menos, dois livros sejam lidos
fora do horário de estudos formal, geralmente à hora de deitar para dormir.
Damos importância ao livro e, sobretudo, à leitura. Claro,
para ler um livro é preciso, primeiro, saber ler. Cultivamos o hábito da
leitura, cultivamos o intelecto, a leitura como instrumento para a autonomia,
para a construção da própria trajetória de vida, para a compreensão e
interpretação do mundo que nos cerca a partir do nosso ponto de vista, e não de
terceiros, uma empobrecida leitura mastigada, enviesada e, muitas vezes,
coalhada de preconceitos e estereótipos. A capacidade de ler permite o acesso a
mundos até então desconhecidos, do Saci Pererê, do Lobo Mau, da Chapeuzinho
Vermelho, da Mula Sem Cabeça. Permite a construção de nossa identidade, daquilo
que somos, ou melhor, que estamos, porque aquilo que somos pode mudar sempre, é
só querermos. Nada mais emocionante do que ver seu filho, de repente, ler o
letreiro de uma loja, pela primeira vez. Um novo mundo se abre, um mundo de
possibilidades infinitas, mundos infinitos.
Para mim, o livro tem que ter cheiro, às favas com minha
alergia à poeira. Eu preciso manuseá-lo, tocá-lo, virar suas páginas. O livro é
parte constituinte de quem sou, de minha identidade, é extensão de meu corpo,
está impregnado de memória, da minha memória, da minha história. Livro não é
produto biodegradável, descartável, pós-moderno, do tipo “lavou, está novo”. O
livro estabelece ligações afetivas. Lembro-me de um colega de faculdade
comentando, certa vez, com certa excitação, que havia encontrado, num sebo,
determinado livro que a namorada procurava fazia não sei quanto tempo. O
tesouro seria dado como presente de aniversário. Poderia ser o Harry Potter ou
Cinquenta tons de cinza, boa literatura, má literatura, o importante é ler...
As livrarias no Rio de Janeiro estão desaparecendo,
sobretudo os sebos, que teimam em comercializar objetos sujos de história.
Joaquim Ferreira dos Santos, em sua coluna n’O Globo do dia 1º de junho,
intitulada “Minhas livrarias: O Rio de Janeiro é uma cidade cerca de livrarias
mortas por todos os lados”, diz que a cidade é habitada hoje por um “cemitério
de livros que jamais serão lidos, de palavras que para sempre assim jazerão,
algumas estranhas, outras peremptoriamente compridas, mas lindas, todas agora
esquecidas sem qualquer olho que lhes bata em cima, sem qualquer língua que as
jogue de novo no meio da rua”. É a tal “civilização digital”. Se não digital,
do kindle e do IPhone, do ambiente asséptico, inodoro, impessoal de cadeias
livreiras como Cultura, Travessa ou Saraiva, padronizadas. Chegamos à era da
“mcdonaldização” do hábito de ler. Sem passado, sem futuro, um presente
contínuo.
Não bastasse o desprestígio do livro físico, vivemos o
“triunfo total da não-leitura”, conforme o editor de não-ficção e literatura
brasileira da Editora Record, Carlos Andreazza, que resolveu lançar a campanha
pela “maioridade intelectual”, que considera uma provocação à onda dos livros
de colorir. Para ele, o editor também é um educador e tem a obrigação de atrair
o leitor jovem-adulto, ampliando o público leitor como uma resposta saudável a
esta atração cultural que é “o livro de unir os pontinhos”, como ironicamente o
define Joaquim Ferreira dos Santos. Andreazza diz que, hoje, somos obrigados a
falar redundâncias bárbaras como “livro para ler”. Uma piada de mau gosto porque
livro pressupõe leitura.
No passado, tivemos um presidente que batia no peito,
orgulhosamente, bradando a quem quisesse ouvi-lo que nunca havia lido um livro
de cabo a rabo. No presente, temos um governo cujo lema é “Brasil: pátria
educadora”, embora as universidades públicas federais estejam à míngua, com
falta de material de consumo básico como giz e papel higiênico e lixo
acumulando-se pelos cantos por falta de pagamento dos profissionais da limpeza
dos campi. Sem falarmos no corte monumental que o Ministério da Educação sofreu
em seu orçamento para o ano de 2015 com o ajuste fiscal. Uma pátria já não se
faz com homens e livros.
Há não muito tempo, perguntávamos a quem não entendia o que
falávamos se gostaria que desenhássemos a explicação. Era uma brincadeira, uma
forma de infantilizar o interlocutor. Chegou o dia em que a piada perdeu a
graça, porque deixou de ser piada.
Créditos da foto: reprodução
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