Apesar das evidências dos custos
do extrativismo, ele continua sendo a aposta dos governos latino-americanos
para fomentar o crescimento econômico. A mineração vence credos religiosos e
ideologias políticas. Esquerda e direita acabam cooptadas, ou, dito, de outra
forma, subordinam-se igualmente às ordens do império
por Carlos Pérez Guartambel / http://www.diplomatique.org.br/
"Tenho sede”, dizia Nazareno
em seu calvário, presságio de conflitos que estavam por acontecer quase 2 mil
anos depois. Atualmente, no Equador, a luta pela defesa da água suscita
inúmeros conflitos: ontem resistindo contra sua privatização (2004), hoje enfrentando
o extrativismo. Em ambos os casos, é o poder do dinheiro que embriaga e submete
o bem natural mais precioso e indispensável. E o problema nos vem pelo lado dos
grandes projetos extrativistas de iniciativa das megamineradoras.
A mineração artesanal no Equador
data de muitos séculos atrás. Tem longa tradição. Aliás, as sociedades andinas
pré-colombianas especializaram-se, bem antes da “civilização” europeia, na arte
de amalgamar e trabalhar ouro e prata. O cenário de agora, porém, é
radicalmente distinto daquilo que constituía um savoir-fairesingular e milenar.
De fato, a partir da década de 2000, com a hemorragia de concessões em favor
das grandes mineradoras, quase 20% do território equatoriano foi tomado por
projetos de grandes mineradoras chinesas, canadenses, suecas, entre outras.
Mas essa expansão não se faz sem
reação. Essas megaempresas de mineração têm deparado com a resistência contumaz
das comunidades indígenas e camponesas, que passaram a organizar sua luta em
torno a grandes marchas “pela água e contra o extrativismo”, como as que
ocorreram em 2012 e novamente em 2014, e em torno a consultas públicas sobre os
rumos a tomar.
As tensões vêm das quantidades
colossais de água usadas pelas megamineradoras. Para produzir 1 grama de ouro
usam-se 8 mil litros de água e removem-se 250 toneladas de rocha. A infame mina
Marlin, na Guatemala, originalmente financiada pelo Banco Mundial e hoje
propriedade da Goldcorp, do Canadá, consome em uma hora a mesma quantidade de
água que uma família camponesa local gasta em 22 anos.
Constatar o legado de destruição
deixado nos países vizinhos ensinou às comunidades indígenas do Equador por que
defender a água e resistir contra o extrativismo. As marcas indeléveis da ação
da indústria mineradora em Cajamarca, Peru, estão visíveis nas lagoas de
Yanacocha, Pato e Corazón, que secaram. Também no Peru, na cidade de Oroya,
identificou-se que 80% das crianças registram presença de chumbo no sangue. Sem
contar os 41 camponeses assassinados por protestar contra a mineração durante o
governo do presidente Ollanta Humala.
Já na Bolívia, a magnitude da
extração de prata das minas de Orusi e Potosí foi tal que permitiria construir
uma ponte entre a Europa e nossa Abya Yala (termo usado pelos povos indígenas
para se referir ao continente americano). O resultado para a população local,
indígena e camponesa, foi tão somente produzir pobreza.
A febre extrativista ganha todo o
continente americano. No Canadá, país que serve de modelo à indústria da
mineração internacional, mais de 23% dos pântanos foram destruídos em uma
década e não há dinheiro suficiente para recuperar mais de 10 mil minas
abandonadas em todo o país, as quais até hoje continuam a contaminar e destruir
o meio ambiente. Não por acaso, a maior preocupação do governo canadense na
atualidade é a chuva ácida.
Apesar das evidências desastrosas
dos custos elevadíssimos e crescentes do extrativismo, ele continua sendo a
aposta dos governos latino-americanos para fomentar o crescimento econômico. A
mineração vence credos religiosos e ideologias políticas. Esquerda e direita
acabam cooptadas, ou, dito de outra forma, subordinam-se igualmente às ordens
do império extrativista. Abundam exemplos, seja pelo lado das forças da direita
mais ostensiva à frente dos governos do México, Colômbia e Peru, seja pelo lado
da esquerda hoje no poder no Brasil, Venezuela, Bolívia e Equador. Todos, de um
lado e outro do espectro político, valorizam o extrativismo como fonte rápida
de geração de receita para financiar notadamente programas sociais que,
espera-se, possam conter a revolta social.
O tamanho da degradação
socioambiental, porém, não justifica o baixo rendimento econômico da
megamineração. Para a mina de Condor Mirador, por exemplo, a mineradora Chinesa
ECSA vai abrir uma cratera de 250 metros de profundidade e mais de 1 quilômetro
de diâmetro numa região amazônica dotada de dezesseis tipos de ecossistema. O
Estado equatoriano fica só com 8% do lucro, estimado em US$ 25 milhões por ano,
ao longo dos dezessete anos de duração do projeto. Essa cifra representa menos
de 1% do orçamento fiscal.
Antes mesmo de ter início tal
projeto, já se sentem seus impactos devastadores: povos indígenas despojados de
seus territórios, comunidades deslocadas de forma compulsória e contra sua
vontade, corrupção de autoridades públicas e compra da consciência de certas
lideranças políticas mediante doações de campanha. Aos que resistem a essa
dinâmica avassaladora, resta a prisão.
De início, o presidente Rafael
Correa declarou-se a favor das causas ecológicas e afirmou: “Minha mão não há
de tremer se tiver de retirar o acesso das mineradoras às nascentes de água!”.
A ilusão, no entanto, não tardou a se dissipar. Assim começou a criminalização
dos defensores da natureza.
Correa apagou com a mão direita o
que havia firmado com a esquerda ao consagrar a primeira Constituição do mundo
que reconhece os direitos da Pachamama (mãe natureza) e recupera o Sumak Kawsay
(bom viver), paradigma milenar dos indígenas que representa a vida simples e
coletiva dos povos e a reciprocidade com a natureza. Foi justamente essa
guinada que provocou, em 2008, a ruptura entre o governo Correa e os povos
indígenas articulados na Confederação dos Povos Quíchuas do Equador
(Ecuarunari) e na Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie).
Correa deflagrou então uma
campanha feroz de difamação das lideranças indígenas. Acusou-nos de receber
financiamento da CIA e de grandes ONGs internacionais, elas mesmas financiadas
por megamineradoras (!), clamando que “não podemos viver como mendigos sentados
sobre um saco de ouro. Confiem em nós, vamos desenvolver uma indústria
mineradora responsável, usando tecnologia de ponta, cujos retornos hão de
servir para construir escolas, hospitais, canais de irrigação”. Não satisfeito,
apelou ao discurso racista colonial para desqualificar o movimento indígena,
tratando-nos de atrasados, terroristas, sabotadores, loucos, incompetentes,
ecologistas infantis, entre outros insultos. Em meu caso pessoal, enquanto
líder da Ecuarunari, da qual sou hoje presidente, fui deslegitimado, sendo
contestada minha identidade indígena, como nos tempos da conquista, quando quem
determinava quem era ou não indígena era o governo colonial.
A perseguição contra os
dirigentes que defendem a água é a expressão de um conflito latente que se
agudiza a cada dia. Desde 2010, mais de duzentos dirigentes indígenas foram
criminalizados no Equador. Uns foram levados a julgamento, outros preferiram a clandestinidade
para escapar da repressão, e há ainda os que foram presos. Três líderes foram
assassinados: Bosco Simuma, Fredy Taisha e José Tendenza.
Eu mesmo já fui preso por três
vezes na gestão Correa (2010, 2012, 2014). No último processo penal, fui acusado
de prática de sabotagem e terrorismo. Sem provas para levar adiante acusação
tão grave, o delito reconhecido foi “bloquear estradas” (!). Diante das
manifestações das comunidades indígenas denunciando o controle do Judiciário
pelo Executivo, a pena foi atenuada: “o réu não constitui perigo para a
sociedade e a defesa da água é, ao final, um ato altruísta”. Terroristas
altruístas?
Na presente data, nós, dirigentes
do movimento indígena, estamos sendo investigados por suposto delito de
“tentativa de golpe de Estado”, ato que nos é totalmente estranho. Os fatos
falsamente aludidos pela corte referem-se a um ato de desobediência civil da
polícia, que teve lugar em 30 de setembro de 2010, ao protestar contra a perda
de direitos trabalhistas. Claramente, tal iniciativa nada tem a ver com nosso
movimento em defesa da água.
Nem por isso a resistência cede.
Perdemos o medo e recuperamos a esperança ao trilhar, juntos, um caminho que há
de nos libertar da recolonização extrativista. Estamos conscientes de que somos
água (del agua venimos, al agua devenimos).
Carlos Pérez Guartambel é
presidente da Confederação dos Povos Quíchuas do Equador (Ecuarunari)
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