A nação está ameaçada. Nada,
porém, que não possa ser enfrentado com coragem, vontade política, clareza,
opção e organização da sociedade
Paulo Rubem Santiago* / www.cartamaior.com.br/
Não, não é o título de um filme
de ficção saído das lentes de Steven Spielberg ou David Cronenberg. Também não
se trata de qualquer sanção das federações de futebol às torcidas, as
conhecidas “nações”, indisciplinadas, que transformam a paixão pelo futebol em
praça de guerra após cada derrota. Estou falando do projeto de nação do Brasil,
República Federativa que completará 126 anos no próximo dia 15 de novembro.
Embora haja indicadores que
revelam alterações significativas nas condições de vida do povo brasileiro nos
últimos anos, embora tenhamos acabado de assistir ao anúncio de um vigoroso
programa de transferências das operações de serviços na área de infraestrutura
para possíveis grupos privados nacionais e estrangeiros, ainda assim, é na
radiografia das relações entre o país, sua economia, instituições do setor e a
esfera internacional que podemos afirmar se o projeto de nação caminha para
consolidar sua soberania e seu desenvolvimento com igualdade ou se estamos
retrocedendo ao tempo em que nossa inserção no mundo era comandada por
dinamismos externos e pela exportação de bens de baixo valor agregado,
conhecimento e inovação.
É disso que pretendo falar com o
título desse artigo. Atualmente, não é certamente difícil atrairmos capitais
que circulam mundo afora em busca de melhores taxas de retorno sobre seus
ativos, aplicados em especial na administração de aeroportos, rodovias,
ferrovias, universidades privadas ou portos. Da mesma forma é cada dia mais
fácil entrarmos na rota desses investidores se lhes oferecermos altas taxas de
juros pagando a remuneração de títulos públicos a eles oferecidos.
No primeiro caso, do investimento
em infraestrutura, poderemos colher em breve melhores condições para atender às
empresas e às pessoas físicas que demandam esses serviços, em especial na
distribuição de bens e produtos, sobretudo aqueles que devem chegar aos portos
ganhando o mercado mundial. Mesmo assim, quanto mais internacionalizadas forem
essas operações, mais capitais serão remetidos aos seus controladores no
futuro, sob a forma de lucros, dívidas inter-companhias, com impactos nada
desprezíveis no balanço de transações correntes com o exterior e elevados
riscos cambiais, além da guerra pelo controle das tarifas desses serviços, com
clara pressão sobre os índices de inflação. Basta ver a reiterada elevação dos
preços administrados, cujos contratos são ainda indexados à inflação passada
desde a era do Plano Real e das privatizações dos governos de FHC.
No segundo caso, dos capitais
ávidos por juros, a situação é mais grave. Quanto mais dólares chegarem para
esse fim, maior o endividamento público, maior a valorização do Real frente ao
dólar e a necessidade de intervenção do Banco Central, através da venda de
títulos, captação de Reais e aquisição desses dólares. Isso estimula importações, encarece exportações,
forja o flerte de investidores com essa modalidade de ampliação de ativos e
aumenta a dívida pública. Óbvio, mais atraente será aplicar o capital a juros
que investir em produção, ainda que na infraestrutura com taxas de retorno
convidativas. Tais combinações, no mundo dos juros e do câmbio, poderão levar o
país, como já tem acontecido, a reduzir a taxa de investimento público, pois
arrastado pelo elevado peso de encargos da dívida pública no tesouro nacional,
e a contingenciar transferências para o custeio e os investimentos nas áreas
sociais, em função da proposta de ajuste fiscal (receita x despesas, numa ótica
primária de avaliação).
Ao mesmo tempo, pela atração
fatal da liquidez que os papéis públicos oferecem aos investidores,
assistiremos à progressiva redução do investimento industrial e à queda da
participação da indústria de transformação no produto interno bruto, enquanto
as importações crescerão em função da apreciação cambial puxada pela alta dos
juros. Então?
Bingo! Assim se desmonta o projeto
de nação. Passaremos a ser plataforma de destino das exportações dos países
industrializados centrais e porto seguro para a remuneração e ampliação dos
capitais internacionais, voláteis, remunerados a juros. Na primeira opção
desmonta-se a capacidade de planejamento do crescimento, do desenvolvimento
tecnológico e da ampliação do valor agregado do produto, na segunda,
sequestra-se o tesouro nacional e se transforma a política econômica e fiscal
em âncora da acumulação financeira.
Aos poucos o futuro nos traz de
volta ao passado, não tão recente, quanto exportávamos minérios, açúcar, café,
gerávamos fortunas com o comércio exterior, mas seguíamos subdesenvolvidos,
embora experts na exploração de recursos naturais. Nesse cenário, de que
valerão milhares de novas vagas nos Institutos Federais de Educação Tecnológica
e nas Universidades se a produção diminui, o investimento sai do produto e vai
para os papéis, a exportação se reprimariza e as remessas de lucros e
dividendos, do ganho fácil rentista às taxas de retorno dos negócios concedidos
na infraestrutura, quebram o balanço de transações com o exterior?
Pois é, a nação está ameaçada.
Nada, porém, que não possa ser enfrentado com coragem, vontade política,
clareza, opção e organização da sociedade, de seus intelectuais e
pesquisadores, ainda que estejamos num dos piores momentos da representação
política da recente história democrática de nosso país, sob hegemonia de fundos
privados, da corrupção e do obscurantismo das bancadas que querem legislar sobre
os costumes e as orientações de cada cidadão brasileiro. Creio, por isso,
movendo-me nessas direções, que o legado de Josué de Castro, Inácio Rangel,
Celso Furtado, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Rui Mauro
Maurini, Cesar Lattes, Antônio Barros de Castro e tantos outros não terá sido
em vão.
*Professor da UFPE e Presidente
da Fundação Joaquim Nabuco
Créditos da foto: Jonas
Pereira/Agência Senado
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