A degradação do capital natural é
um risco muito maior. Esta é a verdadeira dívida. A 'dívida pública' com que
nos enchem os ouvidos é uma piada!
Hervé Kempf, para o Reporterre / www.cartamaior.com.br
Enquanto o desemprego atinge
recordes em alguns países europeus, evidenciando o fracasso da política
neoliberal, o economista Thomas Piketty lembra que a desigualdade tem um papel
central na situação atual. Ele critica vigorosamente os pregadores do crescimento
infinito e conclama a uma refundação do pensamento econômico que leve em conta
o "capital natural".
Qual a principal inspiração do
seu livro O Capital no século XXI?
Meu trabalho desconstrói a visão
ideológica de que o crescimento levaria automaticamente à diminuição da
desigualdade. O ponto de partida da pesquisa foi a coleta, numa escala até
então inédita, de dados históricos de rendas e patrimônios. No século 19, os
economistas davam muito mais ênfase à distribuição de renda do que seus congêneres
viriam a fazer a partir do meio do século 20. Mas, no século 19, havia poucos
dados disponíveis. E até recentemente, este trabalho não tinha sido realizado
de forma sistemática como fizemos, cobrindo dezenas de países, e mais de um
século. Isso muda muito a perspectiva.
Nas décadas de 1950 e 1960, a
visão dominante, e muito otimista, expressa sobretudo pelo economista Kuznets,
era que uma redução espontânea da desigualdade ocorreria nos estágios avançados
de desenvolvimento industrial. Kuznets tinha, de fato, constatado, em 1950, uma
redução da desigualdade em comparação com 1910. Estava relacionada com a
Primeira Guerra Mundial e a crise da década de 1930. E Kuznets sabia disso.
Mas, na atmosfera da Guerra Fria, havia a necessidade de encontrar explicações
otimistas – dirigidas especialmente aos países em desenvolvimento: "Não se
tornem comunistas! O crescimento e a redução da desigualdade andam de mãos
dadas, é só esperar".
Mas vejamos: nos Estados Unidos e
nos países desenvolvidos, a desigualdade encontra-se hoje em níveis muito
elevados, equivalentes àqueles que Kuznets havia medido em 1910. Meu trabalho
destrincha estas mudanças, a partir do fato de que não há uma lei econômica
inexorável que conduz nem à redução da desigualdade nem ao seu aumento. Há um
século, os países europeus eram mais desiguais do que os Estados Unidos. Hoje é
o oposto. Não há determinismo econômico.
Você enfatiza a importância da
classe média. É ela que permite a aceitação do aumento na desigualdade?
O desenvolvimento desta
"classe média patrimonial" é provavelmente a maior transformação
ocorrida em um século. Os 50% mais pobres da população nunca possuíram
patrimônio e não possuem quase nada hoje. Os 10% mais ricos que, há um século,
tinham tudo, ou seja, 90% ou mais do patrimônio, possuem hoje 60%, na Europa, e
70% nos EUA. O que continua a ser um nível muito alto de concentração.
A diferença é que, hoje, 40% da
população, que há um século eram tão pobres quanto os pobres, viram sua
situação se transformar em um século: este grupo central possuía, na década de
1970, até 30% do patrimônio total. Mas isso tende a diminuir, e hoje estamos
mais próximos de 25%. Enquanto os 10% mais ricos continuam a ver sua riqueza
aumentar.
O fato de este bloco central ver
sua situação piorar explicaria o aumento das tensões sociais?
Sim. Pode surgir um
questionamento generalizado de nosso pacto social quando muitos membros da
classe média patrimonial sentem estar perdendo direitos, enquanto os mais ricos
conseguem obter mecanismos de solidariedade. O risco é que grupos cada vez
maiores acabem optando por soluções mais egoístas, de cunho nacional, incapazes
de taxar os mais ricos. Um dos reflexos mais preocupantes é esta necessidade
das sociedades modernas de dar sentido às desigualdades de força irracional
para tentar...
Legitimar...
... Justificar a herança ou a
captação de rendas – ou o poder, simplesmente. Quando os diretores de empresas
destinam a si mesmos dez milhões de euros por ano, dizem fazê-lo em nome da
produtividade. Os ganhadores explicam aos perdedores que as decisões são
tomadas visando ao interesse de todos. Só que é muito difícil encontrar
qualquer prova de que haja algum benefício comum em remunerar os diretores com
dez milhões em vez de um milhão por ano.
Hoje, o discurso de
estigmatização dos perdedores é muito mais violento do que há um século. Ao
menos antigamente ninguém tinha o mau gosto de explicar que as domésticas ou os
pobres em geral eram pobres por sua própria falta de mérito ou capacidade. Eram
pobres porque eram.
Era a ordem social.
Uma ordem social que se
justificava pela necessidade de haver uma classe que pudesse se concentrar em
algo além da sobrevivência, e se dedicar a atividades artísticas, militares
etc. Não digo que esta justificativa era correta, mas exercia menos pressão psicológica
sobre os perdedores.
Estes perdedores, essa classe
média central, pode escorregar para um ensimesmamento, nos moldes do discurso
da extrema direita?
Claro. Este é o principal risco,
e a Europa deve ficar atenta para o regresso aos egoísmos nacionalistas. Quando
não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é
colocar a culpa no outro: trabalhadores imigrantes, gregos preguiçosos etc.
Um aspecto importante de seu
trabalho é como trata o "crescimento" econômico, destacando que taxas
de crescimento elevadas, da ordem de 5% ao ano, são historicamente
excepcionais.
Nós devemos nos acostumar a um
crescimento estrutural lento. Até mesmo uma taxa de 1% ou 2% ao ano implica a
invenção de fontes de energia que, por enquanto, não existem.
Sem energia abundante, não há
possibilidade de crescimento de 1% ou 2%?
Haverá um momento em que não será
mais possível. Desde a Revolução Industrial, entre 1700 e 2015, o crescimento
mundial foi de 1,6% ao ano, metade disso em função do crescimento da população
(0,8%) e a outra metade (0,8%), do PIB per capita. Isto pode parecer
ridiculamente baixo para quem imagina que não é possível ser feliz sem uma
retomada do boom do pós-segunda guerra, quando o crescimento era de 5% ao ano.
Mas o crescimento de 1,6% ao ano durante três séculos multiplicou por dez a
população e o nível de vida médio porque, acumulado, é realmente um crescimento
enorme. E a população mundial passou de 600 milhões, em 1700, para sete bilhões
hoje.
Poderíamos ser mais de 70 bilhões
daqui a três séculos? Não se sabe se é desejável ou possível. Já a
possibilidade de o padrão de vida melhorar dez vezes é pura abstração.
A revolução industrial no século
19 fez a taxa de crescimento passar de próximo de 0%, nas sociedades agrárias
pré-industriais, para 1% ou 2% ao ano. Isto é um salto extremamente rápido. E
só em fases de reconstrução acelerada após guerras, ou de recuperação de um
país em relação a outros, alcança-se uma taxa igual ou maior que 5% ao ano.
Os políticos, a maioria de seus
colegas economistas e os jornalistas econômicos, todos ainda esperam a retomada
de um crescimento de 2% ou 3% ao ano, e alguns sonham até com 6% ou 7% na
China.
Diante da história de
crescimento, afirmar que não há felicidade possível sem retomar níveis de 4% ou
5% de crescimento ao ano é simplesmente um absurdo.
No entanto, você usou o termo
"forte crescimento" em um artigo assinado com economistas alemães e
ingleses.
Para mim, 1% ou 2% é um
crescimento alto! Em uma geração, é um crescimento muito, muito forte!
Em 30 anos, um crescimento de 1%
ou 1,5% ao ano significa que a atividade econômica aumentará em um terço ou 50%
a cada geração. É uma taxa de renovação da sociedade extremamente rápida. Para
que todos possam ter um lugar em uma sociedade que se renova a este ritmo, é
preciso um sistema de educação, qualificação e acesso ao mercado de trabalho
extremamente bem adaptado. Nada a ver com uma sociedade pré-industrial onde, de
uma geração para a outra, a sociedade se reproduz de forma quase idêntica.
Por outro lado, a ideia de que
nenhum crescimento mais é possível também me parece perigosa. Se reproduzido ao
longo de gerações, é um processo bastante assustador, é o fim da humanidade.
Esta capacidade de crescimento
demográfico reduzida a zero ou a taxas negativas reforça a importância da
riqueza acumulada. Isso nos recoloca em uma sociedade de herdeiros, o que a
França conheceu de forma bem acentuada no século 19, com a estagnação da população.
Faz sentido continuar a falar de
crescimento do PIB quando a economia tem um enorme impacto sobre o meio
ambiente?
Melhorar a avaliação e
valorização do capital natural é uma questão central. A degradação do capital
natural é um risco muito maior do que qualquer outro. Esta é a verdadeira
dívida. A 'dívida pública' com que nos enchem os ouvidos é uma piada! É um mero
jogo de palavras em que parte da população paga impostos para pagar juros a
outra parte da população. O problema real é que não estamos em dívida com Marte,
mas com o planeta Terra.
Já tivemos dívidas públicas
igualmente importantes, no passado: equivalia a 200% do PIB em 1945, e a
inflação acabou com ela. Foi o que permitiu que a França e a Alemanha voltassem
a investir nos anos 50-60, e financiar a infraestrutura e a educação. Se
tivéssemos que pagar essa dívida com os superávits primários – como hoje
pedimos que a Grécia faça – estaríamos pagando aquela dívida até hoje.
Portanto, a dívida pública é um
falso problema, porque os patrimônios financeiros, imobiliários e as
mercadorias cresceram muito mais do que a dívida pública. Este aumento de
produtos no mercado é muito mais importante do que a dívida pública, que pode ser
eliminada com uma canetada.
No entanto, um aumento de 2° C na
temperatura do planeta em 50 anos não é apenas um jogo de palavras. E hoje não
dispomos de nada para resolver o problema do custo imposto ao capital natural.
Faz sentido um PIB que não
integra o capital natural?
O PIB nunca faz sentido. Sempre utilizo
o conceito de Renda Nacional: para passar do PIB à Renda Nacional, é preciso
tirar a depreciação do capital. Se um país foi destruído por uma catástrofe, e
todo o país estiver empenhado em reparar o que foi destruído, você terá um PIB
extraordinariamente alto, enquanto a Renda Nacional será muito baixa.
É preciso levar em conta o que
foi destruído, contabilizar o capital natural. Contabilizar o que é criado sem
deduzir o que foi destruído é estupidez.
Por que não há mais trabalhos
sendo feitos sobre esta contabilidade do capital natural?
Tentamos expandir a base de dados
de Capital Mundial (World capital data base) para incluir o carbono, com
pesquisadores do IDDRI (Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações
Internacionais), entre outros. Mas você tem razão: por enquanto, não é um
assunto suficientemente estudado. Nossas categorias de análise permanecem
profundamente marcadas pelo boom do pós-guerra e pelo ideal de crescimento
infinito.
O capital é muito poderoso: detém
enorme poder político e os meios de comunicação. Estamos em um impasse?
Tendências passadas sugerem que
as coisas podem mudar mais rápido do que imaginamos. A história da
desigualdade, da renda, da riqueza e dos impostos é cheia de surpresas. O que
vai acontecer ainda é totalmente incerto, e temos vários futuros possíveis.
Além disso, há diferentes maneiras de resolver estes problemas: de forma mais
ou menos rápida, mais ou menos justa e mais ou menos cara.
Tradução de Clarisse Meireles
Créditos da foto: Universitat
Pompeu Fabra
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