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estapafúrdias aumentam, em vez de diminuir, o fosso que separa a polícia dos
outros cidadãos
por
Mauro Santayana / http://www.redebrasilatual.com.br/
Relatório
divulgado há alguns dias pelo Ministério da Justiça mostra que a população
prisional brasileira no primeiro semestre de 2015 chegou a 607.731 indivíduos,
o que representa um aumento de 575% com relação a 1990, ou seja, 6,75 vezes
maior, o que transforma o Brasil no quarto país do mundo em número de
prisioneiros, depois de EUA, China e Rússia. Para essa população, o país tem
376.669 vagas. Um déficit de mais de 231 mil vagas. Há prisões em que há 1.6
presos por vaga, e em 25% delas, há mais de dois presos por vaga –
considerando-se que há lugares em que o preso dispõe, para passar anos, de
apenas 70 centímetros quadrados – em um sistema massacrante de compactação,
comparável apenas às masmorras medievais e às câmaras de gás dos campos de
concentração nazistas.
Desses
presos, entre 60% e 40%, dependendo do estado, estão na prisão ilegalmente, sem
julgamento, ou sem culpa formada, por mais de 90 dias. Muitos são réus
primários, foram presos sem flagrante ou por contravenções como a posse de
substâncias como anfetamina misturada a pó de mármore automaticamente
classificada, no momento da prisão, como cocaína, ou de pequena quantidade de
maconha ou crack, sendo, por isso, quase que imediatamente indiciados como
traficantes.
A
imensa maioria não tem assistência jurídica e alguns podem passar anos presos,
nessa situação, arriscando-se a morrer sem culpa oficialmente formada, já que a
assistência médica é péssima ou inexistente nas instalações para presos
teoricamente provisórios, as condições são insalubres (detentos com doenças
contagiosas, como aids ou tuberculose, dividem as mesmas celas superlotadas com
outros presos saudáveis) e a violência grassa, com estados, como o Maranhão, em
que o número de mortes na prisão chega a quase 200 por 10 mil prisioneiros, um
dos mais altos do mundo.
Com
relação à população prisional por unidade da federação, São Paulo é o estado
com maior número de presos: são 219.053 pessoas privadas de liberdade, ou seja,
36% da população carcerária do país. O estado é seguido de Minas Gerais, com
mais de 61 mil presos, e Rio de janeiro, com mais de 39 mil.
Prende-se
muito no Brasil, prende-se mal no Brasil. E julga-se mal – no lugar da
recuperação do detento há uma cultura punitiva e vingativa em amplos setores da
magistratura, e o uso de penas alternativas é quase inexistente, o que evita
que se encontrem outros caminhos para a solução do problema, que não a
aplicação disseminada e arbitrária do encarceramento.
E
o pior: não resolve nada
O
número de crimes aumentou, nos últimos anos, na mesma proporção em que aumenta
o número de prisões, que cresce a uma das maiores taxas do mundo. Levados pelo
sentimento de injustiça e de total ausência de dignidade, decorrente do
abandono pelo sistema judicial e em última instância pelo próprio Estado que os
colocou atrás das grades, presos, que entram por crimes que poderiam ser
punidos sem a privação de liberdade, se transformam em feras.
Feras
alimentadas pelo ódio multiplicado durante meses, anos, por detenções
equivocadas que se transformam com o decorrer do tempo em prisões ilegais. Um
sentimento cristalizado e agravado pela cultura da retaliação, da marginalidade
e da violência aprendida com presos mais experientes, ou comprovadamente
condenados por crimes mais graves.
Este
é o Estado-Prisão.
Mas
em nosso país existe, também, o Estado-Coveiro.
O
Brasil não é apenas o quarto maior país do mundo em número de presos, boa parte
deles em situação irregular, mas também um dos que mais matam.
Entre
2005 e 2009, por exemplo, apenas a Polícia Militar do Estado de São Paulo, com
uma população oito vezes menor que a dos Estados Unidos, matou quase 7% pessoas
a mais do que todos os agentes de segurança federais, estaduais e municipais
norte-americanos somados, em casos classificados como de resistência seguida de
morte.
Isso,
embora a proporção de policiais mortos por bandidos em situação de confronto
seja, no Brasil, historicamente bem menor que a dos EUA, diante do número de
cidadãos mortos pela polícia, muitos deles sem ter alguma vez na vida passado
por uma delegacia.
Ainda
tomando como parâmetro o Estado de São Paulo, o mais populoso do país e o que
dispõe, devido a uma lei de 1995, de estatísticas mais confiáveis, o número de
civis mortos em decorrência de ação policial só não foi maior do que a de civis
feridos, em toda a década passada, no ano de 2005, o que quer dizer que ao
contrário de outras polícias do mundo, o policial brasileiro não atira para
parar, imobilizar ou ferir quem deveria prender, mas quase sempre para matar,
mesmo que, em muitos casos, o suspeito não esteja armado, e apenas em fuga –
não porque tenha cometido algum crime – mas porque teme a possibilidade de ser
espancado ou morto pela polícia, principalmente quando mora na periferia.
No
mesmo período pôde ser observada, como já dissemos, uma enorme desproporção
entre o número de policiais mortos e de supostos “bandidos” mortos em eventual
situação de confronto.
Mesmo
considerando-se o uso de equipamento como coletes à prova de balas, e o
treinamento profissional recebido, agride a lógica e o senso comum o fato de
que, ao enfrentar, supostamente, bandidos armados, policiais matem mais de 15
cidadãos para cada policial caído.
Em
qualquer força policial do mundo, quando esse número passa de dez, ou os
policiais são super-homens, desses de cinema, que abatem 15 “inimigos” cada um
por filme, ou estão, certamente, executando civis desarmados, e simulando, para
justificar essas mortes, situações de enfrentamento.
Além
disso, há que considerar-se que boa parte dos policiais mortos não o são
durante o serviço, mas quando estão de folga, e se envolvem em situações de
conflito em bares, churrascos, acidentes de trânsito, incidentes com vizinhos,
valendo-se de sua condição de policiais, e de estarem armados, e o fazem muitas
vezes em confronto com outros policiais em situação parecida, que podem ou não
pertencer à sua mesma corporação ou organização, principalmente quando um e
outro não se identificam.
Em
caso recente, ocorrido em Minas Gerais, em novembro do ano passado, um policial
corrupto que dava escolta a traficantes e estava, no ato, recebendo R$ 20.000
em propina, matou um colega da Polícia Civil que estava seguindo os
traficantes. Em outra situação, em abril deste ano, também na Grande Belo
Horizonte, uma policial civil, escrivã, foi com o marido verificar a origem de
tiros ouvidos perto de sua casa, e deparou com um grupo de policiais militares
à paisana fazendo tiro ao alvo em uma mata. Segundo ela, eles teriam “mexido”
com a escrivã, que pediu que se identificassem ao ver que estavam armados. No
tiroteio que se seguiu, a policial foi baleada na barriga e o marido morreu,
atingido por oito tiros.
Em
São Paulo, em Ibiúna, um policial militar foi morto pelo irmão de uma
adolescente vizinha, depois de convidá-la para um churrasco em sua casa e
levá-la para a sua cama.
E
ficou famosa a cena de um policial goiano que, em pleno trânsito, filmado por
câmeras de segurança, desceu do carro, espancou e algemou a namorada, matando-a
a tiros, e depois atirou em si mesmo, tentando o suicídio.
Banalização
da morte
Como
vimos, as consequências da violência policial vão muito além da lógica
maniqueísta dos filmes de mocinho e bandido.
O
policial que é violento com um suspeito desarmado, tem uma chance maior de ser
violento também com a mulher ou a namorada, com os filhos, com a família, com
os vizinhos, com outros colegas policiais que ele não sabe,
circunstancialmente, que são policiais, e, de modo geral, com a própria
comunidade em que vive.
Finalmente,
há outro parâmetro que diz respeito ao grau de letalidade da polícia
brasileira, segundo estudo de Luiz Flávio Gomes e Adriana Loche: o número de
mortos por policiais, com relação ao total de homicídios dolosos. No ano de
2010, esse número foi de 11,48% no estado de São Paulo, ou seja, de cada 100
pessoas que morreram assassinadas, praticamente 12 foram mandadas para o
cemitério por ação da polícia.
Mesmo
com esse número brutal, boa parte da população ainda acha normal, no Brasil,
que a polícia mate. Como se de cada 100 pessoas assassinadas, 12 fossem
marginais que pudessem automaticamente morrer sem sequer ser julgadas.
E
que mate principalmente jovens.
No
país em que se discute a redução da maioridade penal, dados do Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef) revelam que, desde a 1990, quando foi aprovado
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o número de assassinatos de brasileiros
com menos de 18 anos passou de 6 mil para 10,5 mil por ano, ou 28 por dia.
Entre
esses pouco mais de 10 mil jovens, como revelou esta semana a Comissão
Parlamentar de Inquérito da Violência contra Jovens Negros e Pobres, 2.200, ou
mais de 20%, morreram em suposta situação de confronto com a polícia.
Dos
adolescentes que não morrem por causas naturais, 36% são assassinados, sete
vezes mais que a população em geral, em um índice que só é superado pela
Nigéria.
Ser
homem aumenta em 12 vezes a possibilidade de morrer dessa forma nessa faixa
etária, e os negros morrem mais três – quase quatro – vezes mais que do que os
brancos.
A
televisão contribui diretamente para isso, com a disputa cotidiana, de
programas ditos “policiais”, por audiência, em que jornalistas competem também
em seu empenho de justificar e defender a violência da polícia.
Nesses
programas não existem suspeitos, nem a presunção de inocência, mas, a priori
“bandidos”.
Neles,
também, os policiais quase nunca "erram" ou se equivocam. A maior
parte de suas ações é elogiada, enaltecida, mesmo quando o policial agiu de
forma flagrantemente irregular, como no caso recente em que um policial militar
atirou, diante das câmeras, em dois adolescentes já deitados no chão e
dominados, que, antes, em fuga em uma moto, haviam jogado em sua direção um
capacete.
A
apologia da violência do Estado, no Brasil, está profundamente arraigada em
nossa sociedade, e leva, a cada nova eleição, mais representantes da corporação
para as câmaras municipais, para os legislativos estaduais e o Congresso
Nacional, já que os governos, apesar do aumento permanente da criminalidade,
parecem não ter outra resposta do que a contratação constante de mais policiais
e equipamentos, em um processo perene e ininterrupto que já ameaça o orçamento
de muitas unidades da federação.
A
sociedade – e o próprio governo – parecem não entender que para cada dois
presos sem julgamento, um deles sairá da cadeia transformado em bandido, e que
para cada “bandido” morto em duvidosa situação de conflito, muitos de seus
filhos se levantarão, quando crescerem, para combater o sistema e a polícia, em
um círculo vicioso que só pode levar à morte de cada vez mais civis, e de cada
vez mais policiais.
É
preciso entender que a saída dessa pandemia de violência só pode estar na
reformulação de uma legislação penal, infelizmente, cada vez mais conservadora
e anacrônica, com a aplicação real de leis como a que impede a prisão de
usuários de drogas “ilícitas”, e, no limite, a legalização de certas algumas
delas, passando seu controle para o Estado, no lugar de deixar o dinheiro nas
mãos do tráfico e de corruptos de todos os tipos que por ele são alimentados.
“O
proibicionismo é um modelo macabro, que produz mortes principalmente de pessoas
pobres, que não têm voz e morrem como baratas no Brasil inteiro”, afirmou, em
novembro do ano passado o coronel reformado Jorge da Silva, ex-comandante de
Batalhão e ex-chefe do Estado Maior Geral da PM do Rio de Janeiro, em um
seminário denominado “Drogas: Legalização + Controle” – conforme relato no
portal Ponte - Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos.
“Estou
muito cansado de ver policiais morrendo”, disse também, na mesma ocasião, o
detetive inspetor Francisco Chao, que atua há 19 anos na polícia do Rio, com
passagem por unidades como a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) e a
Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). “Eu gostaria muito, antes de me
aposentar na polícia, e faltam dez anos, de ver o fim da insanidade dessa
guerra, que não interessa à polícia e nem à sociedade.”
É
preciso “falar claramente sobre a necessidade da legalização e consequente
regulamentação da produção, do comércio e consumo de todas as drogas”, explicou
o delegado Orlando Zaccone, na abertura do mesmo evento, organizado pela
Associação dos Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap Brasil) e o Fórum
Permanente de Direitos Humanos da Escola de Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro.
A
Leap soma 236 membros, dos quais 167 são policiais, a maioria deles da ativa,
do Distrito Federal e mais 21 estados brasileiros, e conta com mais 1.250
apoiadores. “Nós defendemos a legalização de todas as drogas. E sabem por quê?
Porque nós somos ‘maus’”, ironizou Zaccone. “E somos ‘maus’ porque os ‘bons’
estão produzido um dos maiores genocídios da História”.
Não
há crime que possa ser executado por alguém que cheirou cocaína, fumou um
baseado ou uma pedra de crack, que não possa ser cometido por alguém sob o
efeito de uma garrafa de uísque ou de cachaça, e a publicidade de bebida
continua presente nos mesmos meios de comunicação que vociferam, todos os dias,
contra a violência, enquanto nossos jovens, de todas as classes, começam –
inspirados pelos comerciais de cerveja – a beber cada vez mais cedo, como
primeiro passo e porta de entrada para o consumo de todo o tipo de droga, a
começar pelo cigarro, a que mais mata. Legalmente.
A
polícia brasileira não é melhor nem pior do que qualquer outra polícia do
mundo, mas precisa investir mais em inteligência e menos na força bruta e na
violência desatada no combate ao crime. Mais no policiamento preventivo do que
no ostensivo, que acaba, infelizmente, transformando uma minoria de policiais
em desequilibrados impunes, que, no lugar de servir a população, ameaçam,
intimidam, matam e torturam.
Enquanto
isso, soluções estapafúrdias procuram aumentar, no lugar de diminuir, o fosso
que separa a polícia dos outros cidadãos, transformando o agente de segurança
em uma espécie de casta superior, diferente e intocável.
Acaba
de ser sancionada a lei que transforma em crime hediondo a lesão corporal e o
assassinato de policiais, ou de seus parentes até o terceiro grau.
Essa
é uma lei equivocada, que dificilmente diminuirá a morte de policiais.
Primeiro,
porque ela quebra o princípio da isonomia.
É
preciso que se entenda, que quando morre um policial, morre um pedaço de toda a
Humanidade, e o mesmo ocorre quando morre, em qualquer lugar do mundo, qualquer
outro ser humano.
Em
segundo lugar, porque se queremos que um policial, um soldado, um bombeiro, até
mesmo com seu próprio risco, salve uma vida, precisamos que ele aprenda que a
vida de qualquer ser humano que ele jurou defender vale, no mínimo – em face do
heroico sentido do dever – o mesmo que a sua.
E
finalmente porque, infelizmente, hoje, em muito lugares, a morte de policiais é
um troféu altamente cobiçado. E essa lei pode ter um efeito contrário. O de
aumentar o prêmio por suas cabeças.
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