A Encíclica Laudato Si' promove uma ecopolítica
internacional baseada em novas formas de se relacionar com os outros e com o
mundo/natureza
Carlos Enrique Ruiz Ferreira - Brasil no Mundo / www.cartamaior.com.br
A Igreja Católica teve uma influência significativa
no sistema internacional medieval e moderno e não deixou de tê-la no sistema
internacional contemporâneo. Do Sacro Império, à Paz de Westefália, às
Revoluções republicanas do XVII, tudo girou, em certa medida, a favor ou contra
a hegemonia da Igreja.
Hoje, do ponto de vista numérico, os cristãos
totalizam 31,5% da população pertencente aos grupos religiosos. Isso faz com
que sejam o maior o grupo religioso, seguido pelos muçulmanos, com 23,2%
(Global Religious Landscape, 2012, Pew Research Center). Por detrás dos
números, a cultura. Por detrás dos números, a genética social. Fait accompli,
muitos dos países-potência que determinam em grande medida os ordenamentos e o
modus operandi da cena internacional possuem estruturas histórico-culturais
católicas. Grande parte de seus líderes assume o catolicismo-cristão (como
parte de sua fé e de suas campanhas públicas). Para o Ocidente, como diz uma
música, “o papa é pop”, e em todos os sentidos.
Laudato Si’, uma ecopolítica da cosmointegração
Não seria demasiado dizer que o Papa Francisco com
sua Encíclica Laudato Si’ promove uma ecopolítica que não só tem profundas
raízes cristãs como também profundas raízes ameríndias (embora ele não escreva
especificamente sobre isso). Mas qual é esta ecopolítica cosmointegradora? É
algo em construção, que estamos a edificar a partir de Francisco, dos
Franciscos e com os Franciscos. Aqui, seria atilado trazer algumas referências
que o Papa não considerou, mas que com ele dialogam e importam para uma
construção coletiva desde uma perspectiva de esquerda.
Em primeiro lugar, como disse o Bispo de Roma esta
é uma ética da “casa comum”, como reza o subtítulo da Encíclica. Ele nos traz,
além do Genesis, Levíticos, Deuteronômios, Mateus, os papas João Paulo II, João
XII, dentre outras referências. Para nós, todavia, podemos lembrar do cínico
Diogénes que à pergunta “De onde éres?” respondeu “kosmopolités” ou seja “sou
cidadão do mundo”. Diogénes, dito o Cão, repudiava a condição de ser ateniense,
espartano, ou qualquer identidade ligada a uma fronteira territorial política.
Lembrava-nos que somos parte de uma mesma coletividade, de uma mesma casa, de
uma mesma humanidade. Cosmo-integrava-nos.
Podemos remontar a Hesíodo que caracterizou Gaia,
Terra, como “de todos sede irresvalável sempre” (verso 120) ou ainda retomar os
ensinamentos Yanomami de que a natureza como exterioridade não existe nem faz
sentido (Davi Kopenawa e Bruce Albert, The Falling Sky: Words of a Yanomami
Shaman). Indoamericanizando o debate, a base ética para o que vem a ser uma
política internacional cosmointegradora fazem eco às muitas vozes das
comunidades indígenas hoje sobreviventes face à violência sociopolítica. Disse
o Papa, como diriam muitos xamãs: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra
(cf. Gn 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar
permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”
Tanto a compreensão religiosa do cristianismo
defendida pelo Bispo quanto a compreensão religiosa de inúmeras tribos indígenas
leva-nos à concepção de uma ecopolítica internacional cosmointegradora, cujos
alguns pressupostos fundamentais são: temos uma casa comum, nós habitamos uma
mesma morada; partilhamos de uma irmandade com nossos semelhantes, participamos
de uma família humana, e; somos parte de um Todo, da Natureza, ela não é alheia
a nós, nosso corpo e espírito.
A tradução para uma política internacional
Desta base ético-filosófica decorrem compreensões
que podem se traduzir em políticas públicas e política internacional. Para
mencionar alguns exemplos, o Papa chama a atenção – legitimando a política
externa brasileira e tantas outras do Sul Global – para a dívida ecológica,
moral e econômica dos países desenvolvidos com relação aos subdesenvolvidos e
ao mundo. A questão é polêmica, mas o Brasil a assume de forma inequívoca.
Raciocina-se que os países desenvolvidos deveriam ter maiores responsabilidades
ambientais devido à espoliação das riquezas da América e da África e a quase
total depredação de seu próprio patrimônio florestal. Exemplo concreto seria
uma diferenciação com relação às taxas de emissão de gases poluentes.
Outra urgência política seria “um consenso mundial
que leve (…) a programar uma agricultura sustentável e diversificada”, tendo em
vista que sistemas de produção de pequena escala são via de regra mais
ecológicos e “continuam a alimentar a maior parte da população mundial” e que
as economias de larga escala no setor agrícola forçam os “pequenos agricultores
a vender as suas terras ou a abandonar suas culturas tradicionais. O Papa
sugere: “As autoridades têm o direito e a responsabilidade de adotar medidas de
apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção”.
De igual forma, ainda que não dito com estas
palavras, o Papa legitima e defende dos direitos humanos de segunda e terceira
geração, como reza o jargão da área. Ao interpretar que a crise é
sócio-ambiental, ecológica-social, ele aduz que a pobreza e a desigualdade
fazem parte do paradigma-problema, e defende políticas e ações “solidárias”, de
“trabalho para todos”, “erradicação da miséria”, entre outros. Neste âmago,
salta os olhos o descumprimento de muitos governos com respeito aos seus
mandatos constitucionais e, à luz da crise financeira internacional, promovam
políticas que prejudicam os menos favorecidos e seus direitos.
Crise de paradigma
Mas aquilo que talvez seja o mais essencial na
Encíclica e que está longe da agenda dos países e mesmo da
esquerda-institucional, infelizmente, é a discussão de uma ética pautada em
novas formas de se relacionar com os outros e com o mundo/natureza. Nisto, a
riqueza latino-americana é fonte inesgotável. Existe certa urgência de abrir
nossos horizontes por demasiado ocidentais-capitalistas-estadocêntricos para
novas formas políticas civilizacionais. Afinal, como disse Viveiros de Castro
“quem ainda não se deu conta de que ‘nossa civilização’, com toda a certeza, e
nossa espécie, com forte probabilidade, entraram em crise de dimensões
absolutamente inauditas? E que essa crise está destruindo boa parte da vida não
humana no planeta?”
Para ficar no Brasil, muitas comunidades indígenas
e comunidades afrodescendentes (ligadas à religião) constituem um patrimônio de
envergadura significativa, material e imaterial. Mas o pulo do gato seria
tratar este patrimônio não apenas como “Cultura” desvinculada de Educação, de
Ética, de Política, de Economia, mas de forma integral. A questão da obsessão
pelo consumo, da desigualdade da repartição da renda, da concentração da terra,
do convívio e respeito aos mais velhos (anciãos), além das questões da “casa
comum”, relação com a natureza, entre muitas outras, seriam colapsadas com
muitas das filosofias-mundo dos ameríndios e dos terreiros, por assim dizer.
Não estamos aqui defendendo a volta do homem ao seu
“estado natural” nem sustentando que estas comunidades são perfeitas. Não.
Estamos apenas refletindo e argumentando que temos em nosso solo conhecimentos
e filosofias que estão na mesma sintonia-ética dos ensinamentos e propostas
contidas na Encíclica. Da compreensão inter e multi civilizacional… emerge a
possibilidade de uma nova política.
Ao fim e ao cabo, a política cosmointegradora é por
si só uma política internacional e supranacional. Ao passo em que reconhece a
multiplicidade e diversidade cultural (inter-nacional) ela retoma uma
semelhança fundamental da humanidade, de nosso pertencimento e relação com esta
casa comum/natureza (neste sentido, supranacional, planetária). Por outro lado,
resgata o sentido da solidariedade, justiça e dignidade. Destarte, a política
cosmointegradora antevê uma ética que reúne a um só tempo, como parte de um
todo, o homem, a sociedade, a natureza e o planeta, por um lado e, por outro, e
alguns valores e direitos humanos essenciais. Este é o convite proposto pela
Encíclica, escrita por aquele que hoje podemos chamar de o Papa-Indígena.
Carlos Enrique Ruiz Ferreira é professor da
Universidade Estadual da Paraíba e pós doutorando do Departamento de Filosofia
da USP. Membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
cruiz@usp.br
Artigo originalmente publicado no Brasil no Mundo
Créditos da foto: Carlos Silva / Presidencia de la
República
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