quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Igreja e sua influência internacional

Carlos Silva / Presidencia de la República
A Encíclica Laudato Si' promove uma ecopolítica internacional baseada em novas formas de se relacionar com os outros e com o mundo/natureza

Carlos Enrique Ruiz Ferreira - Brasil no Mundo / www.cartamaior.com.br

A Igreja Católica teve uma influência significativa no sistema internacional medieval e moderno e não deixou de tê-la no sistema internacional contemporâneo. Do Sacro Império, à Paz de Westefália, às Revoluções republicanas do XVII, tudo girou, em certa medida, a favor ou contra a hegemonia da Igreja.

Hoje, do ponto de vista numérico, os cristãos totalizam 31,5% da população pertencente aos grupos religiosos. Isso faz com que sejam o maior o grupo religioso, seguido pelos muçulmanos, com 23,2% (Global Religious Landscape, 2012, Pew Research Center). Por detrás dos números, a cultura. Por detrás dos números, a genética social. Fait accompli, muitos dos países-potência que determinam em grande medida os ordenamentos e o modus operandi da cena internacional possuem estruturas histórico-culturais católicas. Grande parte de seus líderes assume o catolicismo-cristão (como parte de sua fé e de suas campanhas públicas). Para o Ocidente, como diz uma música, “o papa é pop”, e em todos os sentidos.

Laudato Si’, uma ecopolítica da cosmointegração

Não seria demasiado dizer que o Papa Francisco com sua Encíclica Laudato Si’ promove uma ecopolítica que não só tem profundas raízes cristãs como também profundas raízes ameríndias (embora ele não escreva especificamente sobre isso). Mas qual é esta ecopolítica cosmointegradora? É algo em construção, que estamos a edificar a partir de Francisco, dos Franciscos e com os Franciscos. Aqui, seria atilado trazer algumas referências que o Papa não considerou, mas que com ele dialogam e importam para uma construção coletiva desde uma perspectiva de esquerda.

Em primeiro lugar, como disse o Bispo de Roma esta é uma ética da “casa comum”, como reza o subtítulo da Encíclica. Ele nos traz, além do Genesis, Levíticos, Deuteronômios, Mateus, os papas João Paulo II, João XII, dentre outras referências. Para nós, todavia, podemos lembrar do cínico Diogénes que à pergunta “De onde éres?” respondeu “kosmopolités” ou seja “sou cidadão do mundo”. Diogénes, dito o Cão, repudiava a condição de ser ateniense, espartano, ou qualquer identidade ligada a uma fronteira territorial política. Lembrava-nos que somos parte de uma mesma coletividade, de uma mesma casa, de uma mesma humanidade. Cosmo-integrava-nos.

Podemos remontar a Hesíodo que caracterizou Gaia, Terra, como “de todos sede irresvalável sempre” (verso 120) ou ainda retomar os ensinamentos Yanomami de que a natureza como exterioridade não existe nem faz sentido (Davi Kopenawa e Bruce Albert, The Falling Sky: Words of a Yanomami Shaman). Indoamericanizando o debate, a base ética para o que vem a ser uma política internacional cosmointegradora fazem eco às muitas vozes das comunidades indígenas hoje sobreviventes face à violência sociopolítica. Disse o Papa, como diriam muitos xamãs: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”

Tanto a compreensão religiosa do cristianismo defendida pelo Bispo quanto a compreensão religiosa de inúmeras tribos indígenas leva-nos à concepção de uma ecopolítica internacional cosmointegradora, cujos alguns pressupostos fundamentais são: temos uma casa comum, nós habitamos uma mesma morada; partilhamos de uma irmandade com nossos semelhantes, participamos de uma família humana, e; somos parte de um Todo, da Natureza, ela não é alheia a nós, nosso corpo e espírito.

A tradução para uma política internacional

Desta base ético-filosófica decorrem compreensões que podem se traduzir em políticas públicas e política internacional. Para mencionar alguns exemplos, o Papa chama a atenção – legitimando a política externa brasileira e tantas outras do Sul Global – para a dívida ecológica, moral e econômica dos países desenvolvidos com relação aos subdesenvolvidos e ao mundo. A questão é polêmica, mas o Brasil a assume de forma inequívoca. Raciocina-se que os países desenvolvidos deveriam ter maiores responsabilidades ambientais devido à espoliação das riquezas da América e da África e a quase total depredação de seu próprio patrimônio florestal. Exemplo concreto seria uma diferenciação com relação às taxas de emissão de gases poluentes.

Outra urgência política seria “um consenso mundial que leve (…) a programar uma agricultura sustentável e diversificada”, tendo em vista que sistemas de produção de pequena escala são via de regra mais ecológicos e “continuam a alimentar a maior parte da população mundial” e que as economias de larga escala no setor agrícola forçam os “pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar suas culturas tradicionais. O Papa sugere: “As autoridades têm o direito e a responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à diversificação da produção”.

De igual forma, ainda que não dito com estas palavras, o Papa legitima e defende dos direitos humanos de segunda e terceira geração, como reza o jargão da área. Ao interpretar que a crise é sócio-ambiental, ecológica-social, ele aduz que a pobreza e a desigualdade fazem parte do paradigma-problema, e defende políticas e ações “solidárias”, de “trabalho para todos”, “erradicação da miséria”, entre outros. Neste âmago, salta os olhos o descumprimento de muitos governos com respeito aos seus mandatos constitucionais e, à luz da crise financeira internacional, promovam políticas que prejudicam os menos favorecidos e seus direitos.

Crise de paradigma

Mas aquilo que talvez seja o mais essencial na Encíclica e que está longe da agenda dos países e mesmo da esquerda-institucional, infelizmente, é a discussão de uma ética pautada em novas formas de se relacionar com os outros e com o mundo/natureza. Nisto, a riqueza latino-americana é fonte inesgotável. Existe certa urgência de abrir nossos horizontes por demasiado ocidentais-capitalistas-estadocêntricos para novas formas políticas civilizacionais. Afinal, como disse Viveiros de Castro “quem ainda não se deu conta de que ‘nossa civilização’, com toda a certeza, e nossa espécie, com forte probabilidade, entraram em crise de dimensões absolutamente inauditas? E que essa crise está destruindo boa parte da vida não humana no planeta?”

Para ficar no Brasil, muitas comunidades indígenas e comunidades afrodescendentes (ligadas à religião) constituem um patrimônio de envergadura significativa, material e imaterial. Mas o pulo do gato seria tratar este patrimônio não apenas como “Cultura” desvinculada de Educação, de Ética, de Política, de Economia, mas de forma integral. A questão da obsessão pelo consumo, da desigualdade da repartição da renda, da concentração da terra, do convívio e respeito aos mais velhos (anciãos), além das questões da “casa comum”, relação com a natureza, entre muitas outras, seriam colapsadas com muitas das filosofias-mundo dos ameríndios e dos terreiros, por assim dizer.

Não estamos aqui defendendo a volta do homem ao seu “estado natural” nem sustentando que estas comunidades são perfeitas. Não. Estamos apenas refletindo e argumentando que temos em nosso solo conhecimentos e filosofias que estão na mesma sintonia-ética dos ensinamentos e propostas contidas na Encíclica. Da compreensão inter e multi civilizacional… emerge a possibilidade de uma nova política.

Ao fim e ao cabo, a política cosmointegradora é por si só uma política internacional e supranacional. Ao passo em que reconhece a multiplicidade e diversidade cultural (inter-nacional) ela retoma uma semelhança fundamental da humanidade, de nosso pertencimento e relação com esta casa comum/natureza (neste sentido, supranacional, planetária). Por outro lado, resgata o sentido da solidariedade, justiça e dignidade. Destarte, a política cosmointegradora antevê uma ética que reúne a um só tempo, como parte de um todo, o homem, a sociedade, a natureza e o planeta, por um lado e, por outro, e alguns valores e direitos humanos essenciais. Este é o convite proposto pela Encíclica, escrita por aquele que hoje podemos chamar de o Papa-Indígena.

Carlos Enrique Ruiz Ferreira é professor da Universidade Estadual da Paraíba e pós doutorando do Departamento de Filosofia da USP. Membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI. cruiz@usp.br

Artigo originalmente publicado no Brasil no Mundo


Créditos da foto: Carlos Silva / Presidencia de la República

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