domingo, 5 de julho de 2015

Longa duração e incerteza

Foi em situações de alta polarização e incerteza social que surgiram forças políticas obscurantistas e fundamentalistas, sempre com apoio da elite financeira.


José Luís FioriA leitura atenta da história brasileira permite ver que suas grandes inflexões estruturais foram provocadas por decisões tomadas em momentos de grande crise e desafio nacional e internacional. Como aconteceu no caso da “independência” brasileira, por exemplo, que foi uma decisão “reativa” e pouco planejada, frente a um contexto de profunda transformação geopolítica e econômica do Velho Continente, que culmina com a Paz de Versalhes e a supremacia naval, financeira e industrial da Inglaterra, dentro e fora da Europa. E o mesmo também aconteceu no caso da “abolição da escravidão’ e da “proclamação da Republica”, duas decisões brasileiras inseparáveis da conjuntura internacional, que começa – na América do Sul - com a derrota politica do Brasil, na Guerra do Paraguai, onde perdeu a hegemonia do Prata, e começou a desintegração do estado imperial e de suas próprias forças armadas; e fora da América do Sul, onde entra em curso uma ampliação e reconfiguração do núcleo das grandes potências, com a ascensão econômica e política dos EUA, Alemanha, Japão e Rússia. Só que nesta conjuntura, ao contrário do que passou na independência, existiu um projeto e uma estratégia nacional que foi vitoriosa e que impôs ao país a Republica, junto com hegemonia do “cosmopolitismo agrário” das elites paulista e mineira. Da mesma maneira, já no século XX,  a “Revolução de 30” foi também uma resposta ao desafio provocado pela “era da catástrofe”, das grandes guerras, revoluções e crise econômica. Mas ao mesmo tempo, a Revolução de 30 e a própria instauração do “Estado Novo” foram momentos decisivos de um projeto nacional que foi concebido na década de 20, por uma parte da elite civil e militar brasileira - que conseguiu manter sua hegemonia até a década de 80 – que se propôs reconstruir e fortalecer o estado brasileiro, e suas forças armadas, incentivando e promovendo ativamente a industrialização e o crescimento econômico nacional, como forma de alcançar e superar a Argentina, na luta pela hegemonia do Prata, e pela liderança da América do Sul.

Cinquenta anos depois, a “redemocratização” da década de 80, marcou uma nova inflexão histórica indissociável da mudança geopolítica e econômica mundial,  que começou com a crise e redefinição da estratégia internacional dos EUA, que passou pela reafirmação do Dólar, pela desregulação das finanças internacionais, e pela escalada armamentista que levou à desintegração da URSS, ao fim da Guerra Fria, e à instauração da “uni-polaridade imperial” dos EUA, que durou até o 11 de setembro de 2001.  Assim mesmo, depois de três décadas aproximadamente, o Brasil segue sem conseguir definir e consolidar uma estratégia nacional e internacional hegemônica. Pelo contrário, ainda hoje se pode dizer que este é o verdadeiro “núcleo duro” da disputa cada vez mais violenta, entre as duas vertentes políticas – o PT e o PSDB - de um mesmo projeto bifronte que nasceu nos anos 80/90. Sua base social era diferente, mas sua matriz teórico-ideológica originária foi mais ou menos a mesma: paulista e democrática, mas ao mesmo tempo, anti-estatista, anti-nacionalista, anti-populista, e em última instância, também, anti-desenvolvimentista. Este projeto bifronte, entretanto, se dividiu de forma cada vez mais nítida e antagônica, a partir dos anos 90, quando o PSDB liderou uma política governamental de apoio, ajuste e integração do Brasil à nova estratégia econômica internacional dos EUA, de desregulação e globalização monetário-financeira, e de apoio ao projeto da ALCA. Da mesma forma que na década seguinte, o PT liderou um governo de coalisão que foi adernando cada vez mais na direção de um projeto de estado e de “capitalismo organizado” e de “bem-estar social”, ao lado de uma política externa cada vez mais autônoma e voltada para as “potências emergentes”, mesmo que nunca tenha conseguido alterar as regras e instituições monetário-financeiras criadas pelos governos do PSDB. O que passou nesta última década e meia foi que as mudanças de rumo e os próprios desdobramentos inovadores da estratégia petista foram provocando deserções e criando vetos cada vez mais radicais, de forças nacionais e internacionais, de dentro e de fora da própria coalisão governamental. E como consequência previsível, a coalisão governamental petista foi perdendo a unidade e a força que seriam necessárias para tomar as decisões capazes de enfrentar a crise econômica atual sem abandonar a estratégia econômica que foi sendo construída, a partir do segundo governo Lula. Este panorama de fragmentação e polarização nacional interna, entretanto, se agrava ainda mais quando ele é colocado na perspectiva de um conflito internacional cada vez mais aberto e violento, entre os EUA e a Rússia, e de uma competição política e militar cada vez mais explícita, entre os EUA e a China, sendo Rússia e China os dois principais aliados do Brasil, no projeto BRICS.

Assim mesmo, o que mais assusta e preocupa neste momento é que o receituário tradicional do PSDB parece agora cada vez mais simplista e esclerosado; enquanto o PT parece cada vez mais apoplético e paralisado; e o governo, cada vez mais dividido e fragilizado. É óbvio que o Brasil sairá desta situação e seguirá em frente, como já o fez no passado, mas não está claro qual será a estratégia e o caminho vencedor.


No entanto, é preciso ter atenção, porque foi nestas situações de alta polarização e incerteza social que surgiram e galvanizaram o poder em outras sociedades ocidentais, forças sociais e políticas fundamentalistas, obscurantistas e retrógradas, que sempre contaram com o apoio oportunista de amplos setores da elite financeira e iluminista, nacional e internacional. Os mesmos setores que depois derramam “lágrimas de crocodilo” na porta dos campos de concentração onde se tentou purificar e corrigir o mundo através da exclusão ou da morte dos impuros e dos hereges.

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