sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Refugiados: quando a Europa renega a história

A crise econômica mundial e a brutal concorrência chinesa em torno das matérias-primas africanas incentivaram a desestabilização dos regimes na região

Francisco Carlos Teixeira Da Silva / www.cartamaior.com.br

Desde do século XVI, ou mesmo antes, em 1415 quando Portugal atacou Ceuta no Marrocos, as populações e os Estados europeus buscaram sua expansão demográfica e econômica na África, Oriente Médio e Ásia (sem falar da colonização de tipo “antigo” na América Latina e do Norte desde do século XVI). Durante este processo milhões de pessoas – e não é uma figura de linguagem nem retórica, foram milhões e milhões de pessoas de fato – foram deslocadas de seus lares por forças militares, mercadores, missionários e traficantes europeus. Somente o tráfico negreiro, a diáspora africana constituiu-se, por si só, num dos maiores genocídios da história:  no caso do Brasil, entre 1531 e 1855, cerca de quatro milhões de pessoas negras foram desenraizadas brutalmente da África, lançados em barcos precários (os “tumbeiros”) e desembarcados no Brasil para trabalhar sem qualquer expectativa de uma vida melhor (cf. Herbert Klein).
 


A “Pedra do Sal” local histórico, no porto do Rio de Janeiro, onde desembarcavam os “pretos novos” recém-chegados da África, grande parte moribundos. Aos poucos tornou-se em símbolo e local da cultura negra no Brasil (Foto: Chico Teixeira).
A História do Haiti, Cuba, Jamaica, Estados Unidos, e boa parte dos países sul-americanos, não foi diferente. Outros genocídios varreram a África. Outra vertente volumosa do tráfico humano foi levada para o Oriente, para reinados opulentos de sheiks árabes além do Mar Vermelho.
 
No rastro de tamanha destruição, as sociedades tradicionais, com os arranjos sociais, econômicos e humanitários, as longas e antigas linhagens africanas foram destruídas. Então, a partir do século XIX, o continente inteiro passou a ser ocupado militarmente pela Europa. O último país livre da África caiu em face de uma guerra desigual e cruel movida pelo fascismo de Mussolini em 1936: era o antigo reino da Abissínia.
 
Depois da Segunda Guerra Mundial (1945) até a queda do “ultracolonialismo” português em 1974, a “Descolonização” da África fez emergir cerca de 54 países, com 800 milhões de habitantes. A “herança” europeia foi, contudo, arrasadora: da Guerra na Argélia, com suas matanças em massa, até a pilhagem no Congo, passando pela formação de elites europeizadas vocacionadas para o exercício do poder em nome das minorias brancas, como no caso de Ruanda.
 
A maioria dos países africanos e médio-orientais foi brutalmente explorada: suas riquezas naturais, como petróleo, ouro, diamantes cobre, açambarcados por países e empresas europeias ( como no caso do Congo-Kinshasa, da Líbia, do Sudão, de Angola, etc... ); a agricultura africana foi inteiramente transformada, abandonando-se os cultivos tradicionais voltados para a alimentação e impondo os cultivos comerciais voltados para o comercio europeu ( tais como café, amendoim, oleaginosas, algodão, açúcar, etc... na África Ocidental e Oriental ), quando não, simplesmente se expropriava as terras tribais ocupadas há milhares de anos ( como na África do Sul, no Quênia, no Zimbábue ou em Uganda, entregues, então, para minorias brancas que passavam a viver como uma nova aristocracia ).
 
Em alguns momentos desta história, como no massacre da população de Madagáscar em 1895, pelos franceses, ou dos Hereros, na Namíbia, em 1911 pelos alemães ou a formação de campos de concentração na África do Sul pelos britânicos, davam-se ensaios do que seria o Holocausto e os Gulags europeus do século XX.

No Oriente Médio
 
No Oriente Médio a situação não foi diferente: depois do ataque brutal, sem razão e massivo, feito pelos cruzados entre os séculos XI e XIV, toda a região – onde até então muçulmanos, a maioria, conviviam com cristãos e judeus – sob a forma do Império Turco Otomano, foi ocupada e retalhada entre as potências vencedoras na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
 
Até hoje a expressão “cruzados”, usada pelos fundamentalismos muçulmanos, traduz o sentido de barbárie e massacre.
 
Pelo Acordo Secreto Sykes-Picot, de 1916, França e Inglaterra dividiam a região entre seus interesses, desde o comércio, passando pelo petróleo, até o controle do Canal de Suez. O sonho de um Estado árabe unificado, como fora o acordo costurado pelo Lawrence da Arábia, era destruído pela diplomacia europeia. Churchill, com seu tradicional humor e crueldade, criava países para famílias de aristocratas pró-ingleses. Assim, nasceu a Jordânia e o Iraque. Outros países, como a Síria tinham porções históricas do seu território, como o frontão libanês, arrancados e uma nação inteira, os curdos, eram deixados sem um Estado próprio. Para impor seu mapa, Churchill não hesitou em usar os bombardeios áreas no Iraque, Síria e Arábia Saudita.
 
O antigo e orgulhoso Egito era transformado numa semicolônia sob a tutela inglesa.
 
A oposição local, sob a forma de movimentos e partidos nacionalistas emergentes, de caráter pan-arabista, laicos, socialista e distantes de fanatismos religiosos, foram sistematicamente destruídos pela corrupção e a repressão imposta pelos europeus – depois de 1945, com a presença norte-americana -, pela derrubada de regimes representativos, substituídos por ditaduras familiares, cleptocráticos e antipopulares. Cada uma das grandes lideranças populares – e note bene, laicas, socialistas, longe de qualquer fanatismo religioso – foram combatidas pelas intervenções ocidentais. Talvez a derrubada do governo parlamentar do Dr. Mohamed Mossadegh, no Irã, em 1953 (uma conspiração da CIA com as companhias de petróleo britânicas) substituído pelo corrupto Xá da Pérsia e a Invasão pela Grã-Bretanha, França e Israel do Egito para controlar o canal de Suez, em 1956, sejam os exemplos mais gritantes, embora de forma alguma únicos, do (neo) imperialismo ocidental na África e no Oriente Médio.
 
Durante a Guerra Fria (1945-1991) as potências ocidentais combateram todos os regimes nacionalistas (a maioria de inclinação socialista, ou seja, queriam a utilização dos recursos naturais do continente para o bem-estar social, daí as nacionalizações das empresas estrangeiras) em ambas as regiões: Mossadegh, Nasser, Lumumba, Agostinho Netto e Nelson Mandela – os grandes líderes laicos locais - foram considerados, por isso mesmo, perigosos “comunistas”, perseguidos, presos e várias vezes alvo de tentativas de assassinato.
 
Ao final da Guerra Fria, 19991, os Estados Unidos e as potências da OTAN acharam por bem, que a ausência no cenário mundial da ex-URSS, era um importante, é única, oportunidade de “reorganizar” o mapa em um novo sentido (neo) colonial. Mas, algo deu errado quando as tropas de fanáticos – como a Al Qaeda - organizados e financiados pelos EUA, Grã-Bretanha e as monarquias do Golfo Pérsico voltaram-se contra o Ocidente.
 
Assim, o “turning point” dos fanatismos religiosos, antes contra os soviéticos, agora voltando-se contra os ocidentais – e seus efeitos espetaculares e brutais, como o 11 de setembro de 2001 -, abriu caminho para novas intervenções como no Afeganistão, em 2001, e Iraque, em 2003, ou imposição de tutelas via a presença militar, como na Arábia Saudita, Jordânia ou Marrocos.
 
Os europeus, entretanto, atingidos pela crise econômica e em face da concorrência chinesa, cansaram-se da maioria dos tiranetes locais, que eles mesmo apoiavam – tais como Gadaffi, Mubarack e outros nas suas fronteiras sul no Mediterrâneo – e partiram para uma falsamente otimística reorganização política da região.

As novas condições: a presença da China e a Crise Mundial
 
A crise econômica mundial, em especial depois de 2008 e 2010 na Europa, e a brutal concorrência chinesa em torno das matérias-primas africanas, commodities e o petróleo do Oriente Médio, incentivaram uma série de operações de desestabilização dos regimes na região, acusados (só agora!) de cruéis e autoritários, até então parceiros da Europa e dos Estados Unidos.
 
Ocorre que tais tiranetes, além de brutais, controlavam imensos recursos naturais que financiavam um sistema de favores e de concessões que mantinha a região minimamente “pacificada” e as populações alinhadas com os favores distribuídos pelos estados. Assim, Gadaffi, com os recursos de petróleo líbio – cada vez mais voltado para China – não só mantinha uma aparência de bem-estar no país, mas ainda financiava regimes no Chade, no Mali e Níger, controlando a pobreza absoluta e assumindo o papel de “benemérito” de contos das “Mil e Uma Noites”.
 
Sob influência direta de ações de ONGs ocidentais, tais como a “Open Society” e diversos “institutos” norte-americanos como a “Freedom House” e  “International Republican Institute”, milhares de jovens se rebelaram contra as cleptocracia no poder. Do Marrocos ao Qatar, passando pela Tunísia – seu epicentro – e o Egito, desde 2010 e 2011, eclodiram as “primaveras árabes”. Em muitos países, com uma sociedade civil mais organizada, como na Tunísia e Egito, malgrado o banho de sangue, emergiram novos governos, que aos poucos traíram suas próprias origens. Em outros, dominados por famílias cleptocratas pró-ocidentais, como Bahrein, Qatar, Marrocos, o Ocidente interveio e manteve seus clientes no poder, massacrando os jovens nas ruas e praças.
 
Em outros países, como a Líbia e a Síria, não se deram “primaveras” e sim eclodiram guerras civis, mesclando as divisões étnicas e religiosas locais e os setores que apoiavam, ainda, os tiranos locais. Nestes casos, a OTAN – com a França, Inglaterra e Itália à frente lançaram verdadeiras operações de guerra, utilizando uma panóplia militar nunca vista desde 1945 no Mar Mediterrâneo para derrubar os regimes em Damasco e Tripoli.
 
Os “regimes-diques” que continham a pobreza e a miséria gerada pelo colonialismo e pelas guerras nestas as regiões foram destruídas. O financiamento de programas, possivelmente paliativos, mas que mantinham as populações locais no limite da sobrevivência desapareceram. Os chineses foram expulsos da Líbia e os russos deveriam sair da Síria, fechando assim o plano geopolítico da OTAN de caráter neocolonial no Mediterrâneo.

Contudo, algo deu errado, muito errado. Gadaffi foi morto, mas não emergiu qualquer força capaz de organizar e pacificar o país. A indústria petrolífera foi destruída e as fontes mínimas do bem-estar secaram. A desorganização, e a fome, além da emergência de algumas dezenas de “senhores da guerra” de cunho fundamentalista, tornaram a vida local quase impossível. Na Síria, cristãos e alauítas, uniram-se em torno da família Assad, certos de que serão massacrados pela maioria sunita caso o regime seja destruído. O Ocidente, junto com seus clientes dinásticos do Golfo Persico – Kuwait, Qatar, Bahrein – e com o apoio da Turquia, mandaram armas e equipamentos para os rebeldes, que se uniram rapidamente a Al-Qaeda. A luta fratricida tornou-se tão brutal, que esta mesma foi superada pelo Estado islâmico, ainda considerado até 2014 como um ator “relevante” contra os Assad. Os aprendizes de feiticeiros, com suas formulas magicas de “mudar regimes”, criaram vazios de terror por toda a região.
 
Assim, milhares de pessoas – mais de 380 mil pessoas, só este ano, abandonaram seus lares sob bombardeio e fugiram da guerra e da fome. São sírios, eritreus, somalis, líbios, malineses, chadianos, nigerianos, ciganos, entre outros que talvez cheguem a 1.8 milhões de pessoas até o fim do ano. Vejam bem: não são só sírios fugindo de Assad do Estado islâmico. Trata-se de milhões de pessoas fugindo da fome e da guerra, guerra acentuada nos últimos dias pela França, Inglaterra, Turquia, Austrália e EUA. Todos buscam refúgio na Europa, de onde saíram as expedições militares que desorganizaram o frágil equilíbrio anteriormente existente e que desorganizaram a região.
 
Francisco Carlos Teixeira Da Silva/Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ.


Créditos da foto: Gyula Bartos / Ministérios dos Recursos Humanos

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