O
conteúdo democrático do Estado burguês torna-se um canteiro para a luta de
classes. Só defendendo a democracia a esquerda pode transcender o sistema.
Prabhat Patnaik
/ www.cartamaior.com.br
A
atitude maoísta para com o Estado indiano é clara. Empenhado numa luta armada
para a sua derrubada, os maoístas vêem este Estado como o seu inimigo. O que
dizer acerca, contudo, daquele segmento da esquerda que não está empenhado na
luta armada mas participa em eleições parlamentares, que por vezes constitui
governos ao nível de estado e que atua de acordo com a Constituição? Será que
ele considera aceitável o Estado indiano? E uma vez que de acordo com a sua
análise, este Estado é um Estado burguês (ou um Estado
"burguês-latifundiário"), comprometido com a defesa da propriedade
capitalista, será que a "esquerda parlamentar" reconciliou-se então à
preservação do sistema capitalista na Índia?
Se
bem que muitos responderiam a esta pergunta pela afirmativa, a própria esquerda
negaria veementemente esta acusação. Ela argumentaria que permanece tão
comprometida como sempre com a derrubada do capitalismo e do Estado burguês e
que aceitar o Estado indiano burguês (e ocasionalmente mesmo a ser parte dele,
uma vez que governos estaduais não estão fora do âmbito do Estado), é apenas um
meio de operar a partir de dentro da ordem, para obter o requisito do apoio
popular a fim de derrubar a própria ordem. E para obter este apoio, ela opera
não só na arena parlamentar como também em outras esferas onde procura
fortalecer movimentos populares.
Este
era o argumento que o não dividido Partido Comunista havia avançado quando
cancelou a Luta Armada em Telangana e em 1952 disputou as primeiras eleições
gerais no país sob a nova Constituição. Contudo, este argumento provoca uma
imagem bizarra, de um Partido pacientemente "à espera", ou a
trabalhar diligentemente em direção ao desenlace, onde receberá como prêmio
apoio público adequado, um tanto como o "virtuoso" que recebe um
prêmio no "dia do julgamento". Uma tal imagem é obviamente
inaceitável para a esquerda, o que significa que este argumento não pode ser
tão simples; ele tem de ser complementado por um argumento mais amplo. Este
argumento mais amplo pode, na minha opinião, ser esboçado como se segue.
O
Estado burguês não é uma coisa imobilizada. Ele pode assumir perfis e
aparências diversas. Uma ditadura fascista é um Estado muito mais burguês (onde
monopólios estão directamente envolvidos com o exercício do poder do Estado),
tal como um "Estado Previdência" social-democrata, uma vez que ambos
estão comprometidos com a defesa e promoção da propriedade capitalista. Por
outras palavras, a forma e o conteúdo do Estado burguês muda ao longo do tempo
e esta mudança é conduzida por dois factores: um são as mudanças
"espontâneas" que ocorrem na natureza do capitalismo, as quais a
esquerda acredita estarem a ascender a partir das tendências imanentes do
capital, a partir da lógica interna do seu funcionamento, tal como o capitalismo
da "livre competição" do tempo de Adam Smith deu lugar ao capitalismo
monopolista. E o outro fator é o grau de resistência e pressão popular que é
aplicado sobre o Estado.
O
capitalismo tipicamente quer que a intervenção do Estado seja para promover e
fomentar a lógica interna do seu funcionamento ao invés de transgredi-la. Ele
está continuamente a tentar assegurar que a pressão popular sobre o Estado seja
mantida sob controle, que a necessidade para o Estado de adoptar medidas em
resposta aos desejos do povo e contra as exigências do capital seja anulada. Em
suma, ele está sempre a tentar atenuar a democracia.
Este
facto por vezes é articulado abertamente. Em 2006, por exemplo, quando o
governo Vajpayee na Índia venceu as eleições, The Wall Street Journal lamentou
este desenvolvimento e, candidamente, observou que não se deveria permitir que
só o eleitorado escolhesse o governo. Ao invés, todos os
"participantes" ("stakeholders"), incluindo
"investidores", deveriam ter uma palavra na matéria! Mais
recentemente, na Europa, na esteira do referendo na Grécia, o eleitorado foi
descrito como um "aborrecimento" pelos porta-vozes da finança.
Naturalmente,
mudanças tais como a de 2006, não afectam necessariamente os
"investidores". O governo seguinte, desde que não afaste o país do
turbilhão dos fluxos financeiros globais (que a globalização, o resultado da
lógica de funcionamento do capital, necessariamente implica), é constrangido a
prosseguir as mesmas políticas depois de vencer a eleição, por medo de que
qualquer desvio das mesmas ofenda o capital financeiro e, com isso, provoque
saídas de capital e uma crise financeira. Mas isto apenas sublinha o facto de
que os caprichos do capital financeiro suprimem as exigências do povo numa
economia exposta aos fluxos financeiros globais, isto é, que tal exposição
atenua a democracia. Não importa quem o povo eleja, não importa que
compromissos foram assumidos junto ao povo antes das eleições, o governo
recém-eleito necessariamente trai estes compromissos desde que retenha as
mesmas ligações externas do anterior (como o Syriza na Grécia acabou de
demonstrar).
Mas
com êxito ou não, a resistência do povo actua como um contrapeso contra esta
tendência "espontânea" do capital para atenuar a democracia e, em
certas conjunturas específicas, ela demonstra-se mais poderosa. O período do
pós guerra na Europa – quando a resistência interna na classe trabalhadora
(Winston Churchill, recordem-se, perdeu as eleições britânicas efectuadas
imediatamente após a guerra devido ao horror da classe trabalhadora em relação
às suas políticas sócio-económicas), e o temor do Comunismo, forçou o capital a
fazer concessões – é um exemplo óbvio de uma tal conjuntura. A "gestão da
procura" keynesiana e o "Estado Previdência" foram seus produtos.
Por
outras palavras, naquele período o Estado burguês, sem deixar de ser um Estado
burguês, foi empurrado a uma direcção previdenciária (welfarist) sob a pressão
popular e contra os desejos da própria burguesia. Numa data posterior, com o
capital tornando-se globalizado em consequência das suas próprias tendências
imanentes, nem o poder do Estado-nação nem o do movimento da classe
trabalhadora (o qual continua a ser organizado em bases nacionais) foi
suficientemente poderoso para impedir a imposição da sua agenda. A
"espontaneidade" do sistema reafirmou-se livrando-se da interferência
do Estado contra a sua lógica interna, a qual dirige-se para o enfraquecimento
da resistência e dos direitos dos trabalhadores, para a criação de um exército
de reserva de trabalho, para repelir medidas de Estado previdência e para uma
atenuação da democracia.
Uma
vez que as tendências espontâneas do capital são sempre para pressionar o
Estado burguês em direcção ao autoritarismo, a defesa e aprofundamento do seu
conteúdo democrático, através da mobilização da resistência popular, torna-se
uma tarefa da esquerda. A esquerda, portanto, não está preocupada apenas em
calmamente reunir suas forças dentro do corpo de alguma entidade imobilizada
(fixed) chamada Estado burguês, até que estas forças se tornem suficientemente
fortes para derrubar aquele Estado. Ela está preocupada em defender a todo
momento o conteúdo democrático do Estado burguês contra a tentativa da própria
burguesia de corroer esse conteúdo.
Dito
de modo diferente, dentro do objectivo estratégico global de substituir o
Estado burguês existente, defender o conteúdo democrático do sistema
constitucional-político contra a tentativa da burguesia para empurrá-lo numa
direcção mais autoritária, torna-se uma táctica essencial na luta para a
ultrapassagem do Estado burguês. Isto acontece porque tal luta em defesa do
conteúdo democrático do Estado burguês também se torna uma luta contra os
escalões dominantes da burguesia que estão por trás do ímpeto autoritário.
Na
verdade, paradoxalmente, defender o que quer que exista de conteúdo democrático
no Estado burguês é uma intervenção poderosa e eficaz no combate global contra
o Estado burguês. Isto acontece porque este modo de superar o Estado burguês
atua como uma restrição contra a imposição numa data posterior de qualquer nova
espécie de autoritarismo, de qualquer ditadura totalitária. E isto envolve em
todas as etapas mobilizar grandes massas de povo, junto com outras formações
políticas que também se oponham ao autoritarismo, o que lhe dá uma potência
muito maior.
Tudo
isto é ilustrado vivamente na actual situação indiana. Para executar
"reformas" neoliberais tais como tomar terras de camponeses sem o seu
consentimento (um exemplo do que Marx chamou "acumulação primitiva de
capital") e introduzir "flexibilidade no mercado trabalho" (o
que significa reduzir os direitos e a resistência dos trabalhadores), que estão
de acordo com as tendências imanentes do capital, a Índia corporativa apoiou
nas últimas eleições uma formação política suportada por uma organização
comunal-fascista cujo objectivo confessado continua a ser a criação de uma
"Nação Hindu" (" Hindu Rashtra "). Esta aliança
corporativa-comunal que adquiriu poder já está a desviar o país bastante
significativamente numa direcção autoritária. É importante nesta conjuntura que
ao invés de menosprezar qualquer conteúdo democrático que exista dentro do
Estado, tratando-o como "impostura", a esquerda defenda este conteúdo
democrático do Estado burguês. O conteúdo democrático do Estado burguês, por
outras palavras, torna-se um canteiro para a luta de classe. Só defendendo a
democracia a esquerda pode esperar transcender o sistema.
Créditos
da foto: reprodução
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