'Talvez, respeitando as garantias, algum corrupto
possa fugir ou ficar impune. Mas, quebrando as garantias, suja-se todo o
procedimento'.
Marcelo Galli – Conjur // www.cartamaior.com.br
Citado constantemente na jurisprudência penal
brasileira, o ministro aposentado da Suprema Corte da Argentina Eugenio Raúl
Zaffaroni não economiza frases de efeito. Não apenas pela fala simples e
direta, mas pelo pensamento bem organizado. Com opiniões fortes, o jurista
argentino falou com exclusividade à revista eletrônica Consultor Jurídico sobre
questões atualíssimas na Justiça brasileira, como a delação premiada, a figura
do juiz de instrução, a escalada do punitivismo e o combate à corrupção.
Na Argentina, a delação premiada é traduzida pela
figura do “arrependido”, segundo o Código Penal do país. Para o ministro aposentado
da Suprema Corte do país, quem resolve colaborar com a Justiça em troca de
benefícios como redução de pena é, sem meias palavras, um psicopata, porque
“não respeita sequer as regras da ética mafiosa para negociar a sua
impunidade”.
Ainda assim, todas as garantias desse réu precisam
ser respeitadas, pois a quebra das garantias em um processo pode coloca em
risco todo procedimento. “Talvez, respeitando as garantias, algum corrupto
possa fugir ou ficar impune. Mas, quebrando as garantias, suja-se todo o
procedimento”.
Ele conta que, na Argentina, órgãos de direitos
humanos exigiram procedimentos extraordinários e lei especial para julgar quem
cometeu crimes durante a ditadura militar argentina, nos anos 1970 e 1980,
chamados por ele de “genocidas”. Zaffaroni explica que os juízes resistiram à
pressão para os julgamentos não serem questionados depois pelos réus. “Eles
foram condenados segundo o Código Penal, o Processo Penal, por juízes naturais
e com garantia de defesa. O genocida preso não pode falar hoje que foi
condenado por processo político.”
Na opinião do criminalista, que esteve recentemente
no Brasil para participar de um evento sobre garantia do direito de defesa
organizado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em Brasília,
para se combater a corrupção seriamente é preciso melhorar o sistema
institucional de controle, porque o Direito Penal entra em cena quando o crime
já foi cometido. Para Zaffaroni, é mentira dizer que a corrupção vai ser
derrotada com o Direito Penal, porque a punição do corrupto não vai acabar com
a prática do crime.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais são os riscos das quebras das
garantias constitucionais dos acusados?
Raul Zaffaroni — Isso cria e reforça a suspeita de
que houve manobra política. O criminoso, seja um genocida ou corrupto, deve ser
condenado, respeitando-se as garantias para que não surjam dúvidas. Hoje,
ninguém consegue desviar milhões e milhões em dinheiro, transferir grandes
quantias em dólares sem deixar marcas, é impossível. Não é preciso meios
extraordinários nem de quebra de garantias para punir quem cometeu crimes.
ConJur — Como o senhor vê o que está acontecendo no
Brasil atualmente em relação à operação “lava jato”? Aponta-se que algumas
garantias processuais não estão sendo respeitadas.
Raul Zaffaroni — É um erro, porque vai ficar a
dúvida sobre a clareza do julgamento. Talvez, respeitando as garantias, algum
corrupto possa fugir ou ficar impune. Mas, quebrando as garantias, suja-se todo
o procedimento, esse é o grande problema.
ConJur — A pressão é grande para que elas sejam
quebradas, não?
Raul Zaffaroni — Na Argentina, alguns órgãos de
direitos humanos exigiam procedimentos extraordinários e lei especial para
julgar os genocidas da ditadura militar. Defendemos que não poderíamos fazer
isso. Eles foram condenados segundo o Código Penal, o Processo Penal, por
juízes naturais e com garantia de defesa. O genocida preso não pode falar hoje
que foi condenado por processo político.
ConJur — Reduções ou até esquecimento dos direitos
individuais são justificáveis para combater a corrupção?
Raul Zaffaroni — Para combater a corrupção
seriamente é preciso antes melhorar o sistema institucional de controle porque
o Direito Penal sempre chega tarde, quando o dano já está feito. É como dizer
que punindo o genocida, evita-se o genocídio. É justo punir o genocida e o
corrupto, mas não vai prevenir a corrupção nem evitar o genocídio. É mentira
dizer que a corrupção vai ser derrotada com o Direito Penal.
ConJur — Qual é a opinião do senhor sobre a delação
premiada? A figura do arrependido, como é chamada na Argentina.
Raul Zaffaroni — Não é só um arrependido, é um
criminoso relevante, porque quem faz a delação está no núcleo do esquema
criminoso, não é um marginal que assinou alguma coisa ou que levou uma malinha.
É também psicopata, porque não respeita sequer as regras da ética mafiosa para
negociar a sua impunidade em troca de informações que não são confiáveis.
ConJur — Existe atualmente uma escalada de
punitivismo?
Raul Zaffaroni — A escalada tem um pouco de
terrorismo midiático e corresponde a um modelo de sociedade. Se quisermos ter
uma sociedade 30% incluída e 70% excluída, precisamos punir mais, para conter
os 70% que ficam de fora. Se nós pensarmos em uma sociedade mais ou menos
inclusiva, com Estado de bem estar social, outro grau de punitivismo é
aplicado.
ConJur — O Processo Penal perdeu legitimidade?
Raul Zaffaroni — Ele tem alguns problemas. Na
Argentina, o Processo Penal permite detenções preventivas longas e
possibilitando uma pena antecipada. A maioria dos presos está nessa situação.
Não são condenados. Nesse sentido, acho que perdeu legitimidade. Um novo Código
de Processo Penal argentino começará a valer no começo do próximo ano, talvez
esses problemas sejam resolvidos. Existe hoje o juiz instrutor, que é uma
figura fascista, napoleônica.
ConJur — Por quê?
Raul Zaffaroni — Alonga a instrução por cinco, seis
anos. É incrível, mas acontece. Mesmo que o sujeito não esteja preso, estar sob
processo durante muito tempo é um castigo. Ele não pode sair do país, cada vez
que quiser, tem que pedir permissão. É um absurdo.
ConJur — O juiz que participa da instrução pode
participar do próprio julgamento do caso ?
Raul Zaffaroni — Não, porque está apaixonado pelo
seu trabalho. Ele fez a investigação, juntou as provas, tem a convicção de que
o sujeito é um assassino, não pode julgá-lo de forma neutra. A instrução é um
trabalho de paciência, é natural apaixonar-se pelo trabalho feito, pela obra
realizada.
ConJur — Por que surgem juízes justiceiros e
midiáticos?
Raul Zaffaroni — Pode ser uma patologia. Não são
loucos, mas neuróticos. São atraídos pela possibilidade de fama, de entrar para
a política, fazer discursos.
ConJur — É bom para a democracia o Judiciário ser
protagonista?
Raul Zaffaroni — O Judiciário sempre é protagonista
porque é um ramo do Estado. Cada julgamento, cada sentença é um ato de governo.
O Judiciário é político nesse sentido. Outra coisa é partidarização, quando
também assume uma atitude opositora ao governo ou até golpista. E tem também o
problema do juiz que quer virar estrela. O Judiciário é como o bandeirinha e
juiz em uma partida de futebol. Não é jogador, mas necessário, porque sem eles
não há jogo.
ConJur — O Direito Penal do Inimigo tem ganhado
espaço nos tribunais?
Raul Zaffaroni — Sempre temos aplicado. O inimigo é
encontrado quando se vai à cadeia. A seletividade do sistema penal atinge as
classes sociais mais vulneráveis, geralmente os presos são os mais pobres, que
têm menos tempo de estudo e, portanto, praticam os crimes mais grosseiros, que
são mais fáceis de ser descobertos. O sistema penal é seletivo sempre, é
estrutural, no Brasil, Argentina ou China, no mundo todo. Fala-se muito em
responsabilidade penal das pessoas jurídicas. É um risco, porque vai acabar
castigando apenas a pequena e média empresa, o pequeno e médio empreendimento,
que é mais vulnerável.
ConJur — Porque as grandes empresas vão ter
condições de se defender...
Raul Zaffaroni — Os maiores são invulneráveis.
Podemos estar criando um filtro que vai destruir os pequenos e médios
empreendimentos, que são os maiores empregadores.
ConJur — A sociedade contemporânea tem vontade de
vingança?
Raul Zaffaroni — O poder punitivo e o sistema penal
canalizam a vingança, que faz parte da condição humana. A mídia, porém,
exacerba a vingança, alimenta esse desejo. Os meios de comunicação
monopolizados fazem parte de um modelo de sociedade excludente. Não estou
falando de jornal, porque a cada dia lê-se menos. Falo da televisão, o grande
monopólio televisivo, seja Rede Globo, Clarín, Azteca ou Televisa, que faz
parte do capital transnacional pelo volume dos seus negócios. Esse modelo
precisa ter um sistema punitivo forte como forma de contenção dos excluídos. Os
meios de comunicação não têm culpa, o culpado é o Estado, que permite a
formação dos monopólios.
ConJur — O senhor poderia fazer uma comparação em
relação a criminalidade na Argentina e no Brasil?
Raul Zaffaroni — A realidade argentina de
criminalidade violenta é menor, com um índice de homicídios de 7,5 por 100 mil.
Mas há pequenas semelhanças, como a concentração de homicídios nas favelas,
“villas misérias” como são chamadas lá, embora haja menos favelados do que no
Brasil.
ConJur — O discurso hermético de juízes e advogados
esconde a falta de conhecimento técnico ou é intencional para não se comunicar
com a sociedade?
Raul Zaffaroni — É um dialeto cheio de eufemismos,
as coisas mudam de nome. Algumas pessoas não falam assim por má vontade,
aprenderam a falar esse dialeto e não sabem se comunicar de modo diferente.
Outras aproveitam o dialeto para ocultar coisas. No tempo da inquisição,
registrava-se nas atas que a declaração havia sido espontânea, mas ocultavam
que tinha sido feita depois de tortura. Eu já invalidei declarações policiais
que diziam “num espontâneo afã por confessar”. Era uma fórmula usada pela
polícia na época da ditadura. A pessoa fez a declaração porque foi violentada.
ConJur — O que o senhor acha da redução da
maioridade penal?
Raul Zaffaroni — Na Argentina querem reduzir de 16
anos para 14. Brinco que deve valer também para fetos, porque alguns são
agressivos. Em Buenos Aires, há uma incidência baixa de homicídios cometidos
por menores de 16 anos. É absolutamente irrelevante, mas existe a campanha pela
redução. O regime militar reduziu a maioridade penal para 14 anos em 1976 e em
1980 teve que voltar atrás.
Créditos da foto: Agência Pará de Notícias
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