Hezbollah, Estados Unidos, Rússia, Irã, França,
Síria e Turquia ficaram surpreendentemente do mesmo lado contra o inimigo
comum.
Leneide Duarte-Plon, de Paris* // www.cartamaior.com.br
A França declarou a guerra a um Estado (o Estado
Islâmico ou Daech nas iniciais em árabe) que não é reconhecido como tal nem
pela diplomacia francesa nem pela ONU. Os políticos franceses se referem sempre
a ele como o « autoproclamado Estado Islâmico » para sublinhar sua
ilegitimidade. Acentuando o ineditismo do momento, os atos de terrorismo
classificados por François Hollande como « atos de guerra » cometidos por um «
exército de terroristas » foram desencadeados por cidadãos franceses em sua
maioria, atuando em território francês e pela primeira vez em ataques
kamikazes.
Isso embaralha profundamente o quadro da declaração
de guerra, levando diversos analistas políticos e juristas a indagar se os
conflitos internacionais não mudaram profundamente de natureza. O
primeiro-ministro Manuel Valls disse que essa é uma nova forma de guerra e vai
durar por muitos anos. Segundo ele, um ataque com armas químicas ou
bacteriológicas não está excluído, pois o Estado Islâmico já utilizou-as na
Síria. Sabe-se que Daech tem enorme capacidade destrutiva e formou grupos
combatentes em outros continentes, principalmente em diversos países da África.
No plano interno, François Hollande confiscou o
discurso securitário da direita e do Front National, tomando a iniciativa de levar
à votação antigas propostas de Sarkozy e Marine Le Pen. Satisfez uma opinião
pública chocada com os atentados e tirou o tapete dos adversários.
Na quinta-feira, dia 19, a Assembleia Legislativa
prolongou por mais três meses o estado de emergência e as pesquisas de opinião
mostraram que 73% dos franceses pensam que o presidente esteve à altura dos
acontecimentos dramáticos.
Em pouco tempo de existência, o Estado Islâmico,
formado em sua origem por antigos militares e quadros próximos de Saddam Hussein
ligados ao salafismo, já reivindicou muitos atentados. Os últimos atingiram em
apenas 15 dias um avião russo, mataram dezenas de pessoas ligadas ao Hezbollah,
em Beirute, e semearam o terror em Paris.
Alguns jornalistas franceses se dedicaram a cotejar
o discurso de Bush após o 11 de setembro com o de Hollande depois dos
atentados. Encontraram a mesma retórica. Hollande disse solene : « Fomos
atacados por um exército jihadista que nos combate porque a França é um país de
liberdade, porque somos o país dos direitos humanos ». Bush garantira que o
terrorismo atacou os Estados Unidos « porque somos a casa e os defensores da
liberdade ».
Nas redes sociais, muitos franceses preferiram
repetir essa ideia de que são atacados por suas qualidades, não pelos efeitos
deletérios de guerras em que o país se engajou e de uma diplomacia em que a
venda de armas a países como o Egito e a Arábia Saudita é uma lógica que prima
sobre a defesa dos direitos humanos.
A França está em guerra?
Por enxergar na declaração de guerra uma situação
inédita e mesmo paradoxal, o jornal Libération deu espaço ao filósofo Etienne
Balibar e ao cientista político Bertrand Badie para responderem à pergunta « A França está em guerra ? ». O primeiro
responde que sim e o segundo que não.
Etienne Balibar
afirma « nós estamos na guerra ». A guerra atual é, segundo ele, o fruto
das invasões e intervenções feitas no Oriente Médio após o 11 de setembro, das
rivalidades regionais, das minorias oprimidas, das fronteiras traçadas
abitrariamente desde o fim do império otomano em 1924, dos recursos naturais
expropriados e dos contratos de armamentos.
O filósofo assinala a barbárie instalada pelo
Estado Islâmico mas não deixa de lembrar que outras barbáries « aparentemente
mais racionais proliferam também, como a guerra dos drones do presidente Obama
». Ele diz estar provado que para cada terrorista assassinado pelos drones,
nove civis são mortos.
« Nessa guerra nômade, indefinida, polimorfa,
dissimétrica, as populações das duas margens do Mediterrâneo são reféns. Tanto
as vítimas do atentados de Paris, quanto as dos atentados de Madri, Londres,
Moscou, Tunis, Ankara e Beirute são reféns. Os refugiados que procuram a Europa
em busca de asilo, morrendo muitas vezes no mar, também são reféns. Os kurdos
metralhados pelo exército turco são reféns. Todos os cidadãos dos países árabes
são reféns, presos entre o terror de Estado, o jihadismo fanático e os
bombardeios estrangeiros ».
Para Bertrand Badie, a França não deveria se
envolver numa história regional, fruto da desagregação de Estados do Oriente
Médio, Síria e Iraque. Deste último, invado por uma coalizão ocidental em 2003,
da qual a França se recusou a fazer parte, os Estados Unidos se retiraram
militarmente em 2011. Mas com a volta da França à Otan, em 2009, o país começou
a impor nova imagem também naquela região e, segundo Badie, hoje se tornou um
alvo mais simbólico que os EUA.
Paris alia-se a Putin
Depois de acusar claramente os russos de
bombardearem apenas o « Exército sírio livre » que combate Al Assad e não os
objetivos do Estado Islâmico, a diplomacia francesa encontrou esta semana um
terreno de entendimento com Putin. Essa aproximação se deu ao mesmo tempo em
que o presidente russo reconheceu que o avião que caiu no Sinai foi vítima de
uma bomba e anunciou que vai perseguir sem trégua os autores do atentado.
Até então russos e franceses estavam profundamente
divididos sobre o apoio a Assad, protegido de Moscou, visto por Paris como
carrasco de seu povo, sem condições de continuar à frente de um Estado que deve
ser totalmente reconstruído depois da vitória contra Daech.
Com a aproximação franco-russa, o Estado Islâmico
vê o cerco se fechar contra ele. Estados Unidos, Rússia, Irã, Hezbollah,
França, Síria e Turquia ficaram surpreendentemente do mesmo lado contra o
inimigo comum, que na véspera dos atentados de Paris atacou com kamikazes um
dos bairros de Beirute em que o Hezbollah tem mais influência, cerca de 40
mortos. Apesar da carnificina, o ataque ocupou pequeno espaço na mídia mundial.
« Por acaso uma vítima árabe vale menos que uma vítima francesa ? », perguntava
à TV francesa uma jornalista libanesa defensora dos direitos humanos.
Vai ser difícil para o Estado Islâmico vencer
aliados desse calibre, apontados pelo discurso djihadista como uma a nova
cruzada contra o Islã. Mas antes de ser derrotado, ele tem condições de
preparar atentados que sobem sempre uma escala na capacidade de destruição.
Herança colonial da França
Essa guerra assimétrica em que os franceses
combatem um inimigo estruturado de forma totalmente nova remete imediatamente à
herança colonial do país, como lembrou o poeta sírio Adonis. Ele pensa que
esses jovens que se entregam a esse ódio contra a França são parte da « memória
da colonização, das feridas argelinas ».
Basta conhecer um pouco a história da guerra da
Argélia para entender a alusão a um conflito em que a França perdeu um
território colonial mas também perdeu sua alma ao ceder à tentação da tortura e
das execuções sumárias a fim de vencer os independentistas argelinos. Depois
dos atentados de janeiro, o primeiro-ministro chegou a reconhecer uma forma de
apartheid vivida por algumas populações na sociedade francesa.
Esses jovens tentados hoje pelo djihad são fruto de
rancores identitários que se juntam a uma visão simplista e binária do mundo.
Aderem a uma ideologia que lhes promete existir, dando sentido a existências
fraturadas psicológica e socialmente.
Em entrevista ao jornal Le Monde, o psicanalista
Fehti Benslama, que utiliza a psicanálise para entender o mundo islâmico,
apontou o que sustenta o fenômeno do mártir do atentado suicida :
« Ele quer
sobreviver ao desaparecer. Para o candidato ao martírio, não é um suicídio mas
um autosacrifício, uma transferência pelo ideal absoluto para a imortalidade”.
* Leneide Duarte-Plon é jornalista, trabalha em
Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de
Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.
Créditos da foto: Ministère de La Défense
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