'A França pretende destruir o Estado Islâmico?
Jogando bombas, ela multiplica os jihadistas. Seus aviões matam civis tão
inocentes quanto os do Bataclan.'
Leneide Duarte-Plon, de Paris // www.cartamaior.com.br
« Por que a guerra ? »
A pergunta deu nome ao encontro realizado em Paris,
em 2003, com os filósofos Jacques Derrida e Jean Baudrillard para discutir o
projeto de invasão do Iraque por Bush, ao qual a França se opôs na ONU. O país
foi invadido pela coalizão ocidental, sem a participação da França que votou
negativamente no Conselho de Segurança da ONU. Segundo o jornalista Jean-Pierre
Séréni (Le Monde Diplomatique), o voto no Conselho de Segurança foi negociado
em troca de futuros contratos no Iraque para as companhias petrolíferas
ocidentais.
« A quem serve a guerra deles » ? Essa pergunta era
o título do texto publicado depois dos atentados de 13 de novembro no jornal
Libération e assinado por intelectuais. Quebrando uma quase unanimidade no
apoio à nova guerra, eles listaram as guerras recentes nas quais a França -
segundo exportador mundial de armas - se engajou e constataram o saldo
totalmente negativo seja no Afeganistão, na Líbia ou no Mali.
Na Síria e no Iraque faz-se uma nova guerra por
jazidas petrolíferas e pelo controle de uma região estratégica? « Os oleodutos do Oriente Médio, o urânio
explorado na África em condições monstruosas por Areva, os interesses da Total
(empresa de petróleo francesa), não teriam nada a ver com essas guerras
seletivas que semeiam a devastação ? » perguntam os sociólogos, historiadores,
filósofos e editores que assinam o texto.
Eles acrescentam : « Na Líbia, na África Central,
no Mali, a França não iniciou nenhum processo para ajudar as populações a sair
do caos... A França pretende destruir Daech ? Jogando bombas, ela multiplica os
djiadistas. Os aviões Rafale matam civis tão inocentes quanto os do Bataclan.
No Iraque, alguns desses civis acabarão por ser solidários com os djiadistas :
esses bombardeios são verdadeiras bombas-relógio ».
O texto assegura que é difícil a França evitar que
jovens filhos de imigrantes sejam tentados pelo extremismo. Na sociedade
francesa, eles são discriminados na escola, na busca de trabalho, no acesso à
moradia e até mesmo na prática religiosa com as leis que proibiram o véu
islâmico total no espaço público. Num momento fugaz de lucidez política o
primeiro-ministro Manuel Valls havia reconhecido dia 20 de janeiro o « aparheid
territorial, social, étnico » vivido pelos jovens franceses originários da
imigração. Depois do 13 de novembro, ele não falou mais no apartheid e defendeu
a intensificação dos bombardeios ao Estado Islâmico.
Em 2003, em várias capitais europeias o povo foi à
rua dizer que não queria a guerra. Mesmo assim, o Iraque foi invadido por Bush,
Blair e companhia. Eles fizeram a guerra com falsas provas de armas de
destruição em massa. O que sobrou da invasão e da ocupação americana foi o caos
e a atual realidade do autoproclamado Estado Islâmico.
Os intelectuais que pedem o fim das bombas pedem
também o fim das leis de exceção, liberticidas, que «contornam e negam as
causas do terrorismo ». « A guerra não será feita em nosso nome », termina o
texto.
Homens-bombas
Ao intensificar os bombardeios na Síria e no
Iraque, François Hollande pensa evitar novos ataques. Mas será possível
declarar guerra ao terrorismo? Como vencer uma nebulosa que se infiltra em
Estados-nação com homens-bomba que escapam aos controles mais sofisticados?
Em artigo no Le Monde, Gilbert Achcar ressaltou que
a prática de execuções extrajudiciais através dos drones faz do Pentágono o
campeão dos « serial killers ». Ora, na falta de drones ou mesmo de aviões para
bombardear seus inimigos designados, o Estado Islâmico-Daech dispõe de homens e
mulheres dispostos a morrer pelo auto-proclamado califado, que ocupa um
território do tamanho da Grã-Bretanha e apaga as fronteiras traçadas pelas
grandes potências.
O filósofo alemão Jürgen Habermas disse em
entrevista à imprensa francesa que em seu país a retórica guerreira de Hollande
é vista como um jogo que tem motivações na política interna.
« A intervenção de tropas americanas e europeias no
solo não somente é irrealista como seria de grande imprudência. Não adianta
nada tentar se sobrepor aos poderes locais ».
Petróleo nacionalizado
Desde 1972, as companhias estrangeiras estavam
excluídas do setor petrolífero iraquiano, nacionalizado e controlado pelo
Estado baassista (ancorado no partido Baas) criado por Saddam Hussein.
Quando se sabe que as grandes companhias
petrolíferas do Ocidente voltaram a explorar desde 2003 os poços do norte do
Iraque, conquistados depois pelo Estado Islâmico, se entende por que os
ocidentais bombardeiam maciçamente a região para aniquilar Daech e retomar o
tesouro perdido. Mas como nenhum país declara a guerra confessando que o faz
para retomar poços de petróleo, o discurso da propaganda guerreira fala de
valores, dos bárbaros contra a civilização, dos fanáticos contra a liberté,
égalité, fraternité.
Na França, a « Marseillaise » e a bandeira francesa
deixaram de ser considerados cafonas. Até o massacre de 13 de novembro, esses
símbolos nacionais eram monopolizados pelo partido xenófobo ultranacionalista
Frente Nacional-FN, de Marine Le Pen. Os atentados terroristas permitiram ao governo
Hollande se reapropriar dos símbolos nacionais, considerados pela esquerda
conotados demais ao passado vichysta do país.
O Iraque vive hoje as consequências do caos de uma
guerra civil entre o regime xiita fantoche que os EUA deixaram ao retirar suas
tropas e os antigos baassistas que governaram o país com Saddam Hussein. A
minoria xiita imposta depois da invasão americana esmagou a maioria sunita, fez
prisões arbitrárias, torturou, matou. Os membros do banido partido Baas,
(Partido da Ressurreição Árabe e Socialista) partiram para a luta armada e
deram origem ao Estado Islâmico-Daech, com a pretensão de recriar o califado.
Em magnífico artigo intitulado « Fracasso de uma
guerra pelo petróleo » Jean-Pierre Séréni traçou a história do fracasso da guerra
de Bush no Iraque. Os interesses por baixo do pano são contados em detalhes.
Essa guerra gerou contratos fabulosos para as companhias petrolíferas mas é
preciso não esquecer que de 2003 a 2013 ela fez seiscentos mil mortos, um
milhão e oitocentos mil exilados e produziu deslocamentos internos de população
jamais vistos no país.
Alan Greenspan, que dirigiu o Federal Reserve, o
banco central americano de 1987 a 2006, escreveu em seu livro Le Temps des
turbulences, publicado em Paris em 2007 : « Lamento que não seja politicamente
bem visto admitir o que todo mundo sabe : uma das fortes motivações da guerra
do Iraque foi o petróleo da região. »
As consequências das invasões ocidentais estão hoje
se espalhando como uma metástase.
Créditos da foto: reprodução
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