quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Botequim como instrumento da dialética jurídica, por Bruno Magalhães

Do JOTA // http://jornalggn.com.br/
Enquanto a ciência classifica, a realidade vivifica. É essa a conclusão a que chegou Goethe ao dizer que “toda teoria é cinza, mas verde é a árvore dourada da vida”. Lembro-me bem, é verdade, da retórica dos professores da faculdade de Direito em busca de convencer os alunos de que estávamos diante de uma ciência. O Direito, sob certo ponto de vista, é uma ciência. Do mesmo modo, sob certo ponto de vista, a cosmética e a sexologia também são. Isso já deveria ser suficiente para tirar qualquer dúvida sobre a legitimidade e a evidente necessidade dos juristas de botequim, contra quem o Dr. Edilson Vitorelli se voltou em seu artigo publicado no Jota. Porém, diremos mais sobre esse fenômeno tão complexo.

É dos bares que chega à justiça boa parte dos processos criminais da Justiça Estadual; é de lá, além disso, que é gerada parte considerável dos processos das varas de família. Um local em que a vida pulsa com tanta evidência não pode prescindir do apostolado dos filósofos e dos juristas. Por isso, esse subespécie do gênero “juristas” jamais me incomodou. Mas me incomodam, deveras, os cientistas que a pretexto de reforçarem sua imagem de imparcialidade buscam instituir uma reserva de mercado em favor de sua ciência. A ciência se ocupa de um recorte tão ínfimo da realidade que a pretensão de regular os debates públicos por um critério de cientificidade já é descabida por definição. Meus dados estatísticos não mentem: 97% do que dizem os cientistas do Direito não passa de doxa adornada de um vocabulário acadêmico.
A ciência de hoje tem usurpado o prestígio que nos últimos tempos a tecnologia angariou pelo mérito inegável de ter facilitado um pouco nossa vida prática. A ciência do direito, não tendo propriamente uma tecnologia exitosa em que se escorar, deve justificar-se a si própria ou, quando menos, tomar emprestada a boa fama que o ordenamento jurídico – cuja produção já foi comparada a uma complexa fábrica de salsichas – possa eventualmente ter em uma determinada sociedade.
Voltemos brevemente à Grécia Antiga. Em seu diálogo “As Leis”, Platão trouxe à cena personagens que discutem qual seria a melhor legislação para a Ilha de Creta. A discussão é complexa e abrange diversos aspectos da vida humana em sociedade. O curioso é que entre os elementos fundamentais para o bom funcionamento da sociedade os legisladores platônicos não colocaram propriamente o conhecimento, mas precisamente o vinho. É no vinho que está a verdade – assim pode ser resumida a lição platônica –, pois ele, que é um caso do elemento fogo, dissolve nossa carcaça e nos abre à expressão de nossa própria personalidade e também, portanto, à compreensão do outro.
Como bom discípulo de Sócrates, Platão não perdeu a lição do mestre: a verdade não é algo pronto e acabado que possa ser exibido em um pedestal. Eles diriam: a verdade não é aquele negócio pelo qual você paga os sofistas para lhe ensinar. A verdade, para Sócrates, só podia ser encontrada através do diálogo. De degrau em degrau, através uma atividade sincera, atenta e meditada, os interlocutores chegam (nós, em geral, chegamos) a um ponto de certeza que antes não se havia alcançado. Na sua Metafísica, Aristóteles atribui a Sócrates a primeira busca pelo conceito universal e a utilização, ainda embrionária, do método indutivo. Ora, é evidente, então, que Sócrates, tido como o pai da filosofia, fez de seu discípulo Platão o primeiro filósofo de botequim. E vejam que para o matemático Alfred North Whitehead toda a filosofia ocidental não passa de um conjunto de notas de rodapé a Platão. Logo, com todo o rigor científico é possível sustentar a hipótese de que a filosofia começou nas ruas e nos banquetes de Atenas e que continua existindo, em seus melhores momentos, justamente onde a vida se movimenta. Foi em seus piores momentos que a filosofia buscou refugiar-se dentro dos palácios e dentro dos muros das universidades; buscando afastar-se do coração das pessoas, acaba por ficar, ela mesma, sem coração.
Se a discussão acadêmica pura é praticada algures, perdoem-me os cientistas do Direito, mas ela é um assunto para anjos – puros espíritos que de Deus nunca se afastaram. O ser humano de carne e osso, que gosta de se reunir e de conversar com os amigos, pode e deve buscar uma melhor apuração conceitual, mas pode também errar e pisar fora da linha – sóbrio ou depois de duas cervejas. O direito que se discute nas mesas de bar é, como o futebol, mais arte que ciência. E não será arte o que se faz em cada uma das varas judiciais, das promotorias de justiça e dos escritórios de advocacia?
Não é possível negar, entretanto, que há uma Ciência do Direito viva hoje em dia, que ela tenta, aqui e ali, compreender o fenômeno jurídico com maior ou menor sucesso e que, eventualmente, contribui para o estabelecimento de focos de paz social. Porém, se há ciência e se há cientistas, a eles faço um apelo: não queiram regulamentar as conversas de botequim! Deixe-as a salvo de um sistema rígido de normas (“isso pode, aquilo não pode”). Façam o uso que melhor lhes parecer dessas conversas – ou as ignore, se assim recomendar o seu método de pesquisa. Mas não mexam nos botequins – um dos poucos espaços verdadeiramente democráticos (e, portanto, culturalmente interessantes) do país.

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