Derrota acachapante na Venezuela,
virada à direita na Argentina, crise econômica e política no Brasil,
manifestações de rua no Equador: a esquerda latino-americana entrou em pane. As
maquinações de Washington não bastam para explicar tal esgotamento.
por Renaud Lambert // http://www.diplomatique.org.br/
Na avenida que leva ao centro da
cidade, uma enorme pichação chama atenção: “Não vamos pagar pela crise dos
banqueiros”. Nos últimos anos, a frase se tornou banal na maioria das capitais
europeias, mas surpreende aqui. Estamos no Rio de Janeiro, onde, há dois anos,
se estava em plena festa.
Em março de 2013, no mesmo local,
a pista dupla parecia atravessar uma floresta de gruas. O clima geral inspirara
uma cobertura de destaque na publicação semanal britânica The Economist: no
meio da tormenta financeira, sob a bruma, a estátua do Cristo Redentor parecia
flutuar no alto do Corcovado. “Brasil decola”, proclamava a revista, que
dedicou catorze páginas ao “mais belo sucesso latino-americano” (14 nov. 2009).
Sem conseguir tirar proveito da
derrocada liberal, a esquerda europeia voltou seus olhos para o outro lado do
Atlântico, em busca de razões para ter esperança. Os sucessos do “laboratório
latino-americano” – celebrados no ritmo do samba brasileiro, da morenada
boliviana, do pasillo equatoriano, do joropo venezuelano – não davam motivos
para que ela também pudesse sonhar com a vitória?
No entanto, após uma
desaceleração econômica internacional que afetou particularmente as economias
do subcontinente (ver pág. 18), o quadro ficou obscuro.
Vamos recordar. Em 6 de novembro
de 2013, o presidente equatoriano, Rafael Correa, lançou uma acusação
intransigente contra o liberalismo, durante uma conferência na Sorbonne, em
Paris. Um ano depois, assinava um acordo de livre-comércio com a União Europeia
(ver boxe “Traição?”, na próxima pág.).
Apesar das dificuldades, a
“Revolução Bolivariana” foi sempre ilustrada por sua determinação em melhorar
as condições de vida dos venezuelanos. Em 26 de janeiro de 2015, um documento
da – bastante neutra – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(Cepal) anunciou que a taxa de pobreza no país aumentou de 25,4% para 32,1%
entre 2012 e 2013.1
Na campanha presidencial de
outubro de 2014, uma réplica de Dilma Rousseff, então candidata à reeleição,
durante um debate na TV, marcou os espíritos. Acusando seu oponente Aécio
Neves, do (PSDB, direita), por seu gosto pelo arrocho, ela exclamou: “A única
coisa que você sabe fazer é cortar, cortar, cortar!” (Bandeirantes, 14 out.
2014). Menos de um ano depois, ela advogava o “remédio amargo” da austeridade,
cortando justamente os programas sociais que prometera defender (O Estado de S.
Paulo, 9 set. 2015).
Enquanto Cuba, o símbolo regional
da luta contra o imperialismo, inaugura um “Conselho de Negócios” em parceria
com a Câmara de Comércio dos Estados Unidos, o peronismo de esquerda é
derrotado no segundo turno da eleição presidencial argentina de novembro de
2015. No Brasil, no Equador e na Venezuela, manifestações de rua exigem a
renúncia de governos eleitos graças a poderosos movimentos sociais.
O ônus de chegar ao poder
“Ontem, a América Latina era uma
fonte de inspiração para a esquerda europeia. Quando passam a aplicar aqui as
mesmas políticas de austeridade da Europa, ocorre o oposto”, observa Guilherme
Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Para depois
lançar: “Muita gente aqui fala da necessidade de criar um Podemos brasileiro”.
Nascido com o objetivo de
importar para a Europa o sucesso da esquerda latino-americana, estaria o
partido espanhol se transformando em um modelo para a região que o inspirou?
Ocorre que os progressistas parecem ter perdido a bússola. Estaríamos condenados
a caçar a esperança pelo mundo afora, correndo o risco de andar em círculos? Se
acreditarmos que a denúncia ritual de traições e viradas de casaca esgota a
análise das dificuldades da esquerda no poder, talvez. Se não for esse o caso,
o interesse do “laboratório latino-americano” não desaparece, embora tenha
dificuldade de alcançar novas vitórias. Tentar entender as tensões que o
atravessam pode revelar-se muito instrutivo.
Impensável, poderiam retrucar.
Nem as histórias, nem os líderes, nem os projetos políticos dos países da
região são os mesmos. Como comparar o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva,
ansioso por satisfazer tanto os banqueiros quanto os pobres, com a Venezuela de
Hugo Chávez, determinado a construir o “socialismo do século XXI”? Essa não é uma
objeção falsa. Mas do altiplano boliviano à França de 1981, do Caribe
venezuelano aos Estados Unidos do New Deal, as forças de esquerda muitas vezes
enfrentam demônios parecidos...
“Cada vez que um partido de
esquerda chega ao poder, ele se fragiliza”,2 observou Lula recentemente. A via
das urnas tem vantagens valiosas em relação à das armas, a começar pela maior
probabilidade de não ser assassinado, preso ou torturado antes que a revolução
aconteça. Mas ela também impõe certas restrições.
Além de fornecer os quadros para
o governo e os ministérios cujas rédeas assumiu em 2003, o PT de Dilma Rousseff
e de Lula viu suas forças esvaídas em escala local. Em 2000, ele contava com
187 núcleos municipais; em 2008, com 559 – três vezes mais. Embora recrute novos
militantes, isso se dá em um contexto no qual a formação de quadros
“atrofiou-se gradualmente em torno de questões práticas: como gerenciar um
mandado? Como legislar? Como comunicar suas políticas públicas?”,3 lamenta
Valter Pomar, do PT. Consequentemente, nas palavras de Marco Aurélio Garcia,
assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência brasileira:
“Perdemos o contato com a sociedade, paramos de refletir e nos
burocratizamos”.4 Em suma, o PT não consegue mais mobilizar, especialmente no
que diz respeito a uma juventude reivindicativa que não conheceu as grandes
batalhas que o partido travou antes de chegar ao poder.
Assim como o vice-presidente
boliviano (ver artigo na pág. 14), o presidente equatoriano, Rafael Correa,
também se mostra consciente dessa dificuldade. Enquanto a direita organizava
sua contraofensiva, ele confiou a seu ministro das Relações Exteriores, Ricardo
Patiño – um de seus próximos –, a missão de “reforçar as bases” de seu
movimento, o Alianza País. O objetivo: “Que em duas horas estejamos em
condições de encher a Plaza Grande”, o principal ponto de encontro da capital
equatoriana (El Universo, 16 jul. 2015).
No entanto, militantes e
movimentos sociais aceitam mais facilmente o papel de correia de transmissão do
poder quando este tolera suas críticas – disposição nem sempre manifesta por
Correa. Um exemplo: em outubro de 2013, um grupo de deputados do Alianza País,
apoiado por muitos militantes, queria a legalização do aborto, em um novo
código penal. Contrário à ideia, o presidente logo declarou: “Se esse tipo de
traição e comportamento desleal continuar [...], eu renuncio”.5 Os deputados
recuaram.
Além de afastar os líderes
políticos de sua base, a institucionalização os divide. Em 2014, o cientista
político norte-americano Steve Ellner criticou o peso que os representantes
eleitos têm dentro do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV): “Os sete
vice-presidentes do partido, que representam as regiões do país, são
governadores ou membros do gabinete do presidente Nicolas Maduro”. Ao contrário
do que aconteceu no primeiro congresso, em 2009, os delegados de 2014 não foram
eleitos pelos militantes: eram governadores, prefeitos e deputados, além de
militantes “escolhidos ‘por consenso’”.6
Constatação semelhante um pouco
mais ao sul. “Antes de chegar ao poder, a vida interna do PT refletia o
contraste entre as diferentes correntes e análises estratégicas”, observa o
economista Reinaldo Gonçalves. “Depois, os eleitos tomaram o poder.”7 Artur
Henrique, ex-presidente da maior central sindical brasileira (CUT), confidencia
que os mandatos podem transformar os militantes: “Em nome da ‘governabilidade’
do país, eles agora nos dizem que não podemos fazer isso, não podemos fazer
aquilo...”. Quando a tática – encarar as eleições como uma etapa rumo à
transformação do mundo – se transforma em estratégia – adaptar suas convicções
ao objetivo eleitoral –, a ambição política se esgarça. Pode até desaparecer:
agora, “o PT é mais um obstáculo do que um trunfo”, dispara Jean Tible, militante
do partido.8 Teria ele chegado à mesma conclusão caso sua formação tivesse se
dedicado a transformar o sistema político brasileiro, a fim de “democratizar a
democracia” no país? O partido não pensou nisso. Assim, abriu mão de combater o
poder do dinheiro, a corrupção e os lobbies...
As dificuldades da via
democrática para o socialismo não se limitam, porém, aos efeitos perversos do
exercício do poder. Elas também envolvem definir com quais eleitores contar.
Nos países onde as ditaduras reprimiram as organizações comunistas, o
neoliberalismo pulverizou os raros bastiões de trabalhadores e a mídia
permanece nas mãos do setor privado, querer forjar uma base eleitoral
majoritária focando exclusivamente os segmentos radicalizados da população
equivale – por enquanto... – a perseguir uma quimera; renunciar a eles, a
entreabrir a porta ao pragmatismo, sem saber até que ponto ela vai se
escancarar.
Quando começamos a governar para
a direita?
As alianças são forjadas
principalmente no campo progressista. Nem Chávez nem Correa surgiram em
formações políticas já existentes. Nos contextos de crise política, eles foram
apresentados por movimentos heterogêneos, cuja coesão não se baseava em uma
compatibilidade real, mas em uma certeza: a de que o retorno de uma verdadeira
democracia era um pré-requisito indispensável para a realização das ambições de
cada componente da coalizão. As novas Constituições, redigidas após a chegada
ao poder da esquerda na Venezuela, Equador e Bolívia, às vezes refletem essa
indefinição. E anunciam, nas entrelinhas, algumas decepções futuras – como no
que concerne à questão da proteção da “Mãe Terra”.
Por fora do arco de forças que
compõem a esquerda, as concessões devem continuar sendo temporárias e limitadas
a “considerar uma parte das necessidades de seus adversários”,9 avalia o
vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera. Nada de aliança com a
direita, mas com alguns dos setores que ela tradicionalmente representa: a
classe média, certas franjas do patronato. Concordando em trabalhar dentro de
instituições mais restritivas para chegar ao Poder Executivo, o PT atravessou o
rubicão. Em 1980, quando foi criado, ele declarava-se “sem patrões”; em 2002,
aliou-se ao empresário evangélico José Alencar para ganhar a presidência e a vários
partidos conservadores para constituir seu governo.
Da pequena concessão ao amplo
comprometimento, não há fronteira clara, mas um dégradé cujas nuances são
percebidas de maneiras diversas, conforme se esteja do lado do governo ou do
lado dos movimentos sociais. Em que momento se deixa de governar com a direita
e passa-se a governar para ela? No Brasil, Dilma adotou o roteiro de seus
adversários políticos. As renúncias acumulam-se ainda mais rapidamente pelo
fato de que a pressão eleitoral não se dissipa após o término das eleições: os
brasileiros votam a cada dois anos, saindo de uma campanha apenas para cair no
turbilhão da próxima.
“Acusam-nos de não sermos
‘verdadeiros democratas’, porém, desde 2007, ganhamos dez eleições, mais de uma
por ano”, afirma um alto funcionário equatoriano. “Mas o calendário eleitoral
não é o da política, e eu devo admitir que às vezes seria preferível podermos
nos dedicar à aplicação de nossa política a ter de fazer campanha.” Uma das
virtudes da democracia também é seu principal desafio: o poder, sempre em jogo,
torna-se precário. Quando a oposição é suficientemente conservadora, ela pode
contar com o apoio dos meios de comunicação e do setor privado. Quando o
ambiente econômico impede que a esquerda sustente o discurso de esperança,
seria um equívoco a direita não se apropriar dele.
Basta saber mensurar a
importância das questões sociais na população, e eis que a direita se traveste
de nova vanguarda. Há dois anos, Henrique Capriles, representante da direita
venezuelana, mais sutil que seus aliados golpistas, expôs suas novas convicções
ao jornal Le Monde. Dizendo-se “distante da direita”, o bom rapaz que
participou do golpe (fracassado) de 2002 contra Chávez declarou, com a mão no
peito: “A chave para a mudança está nos barrios [favelas]”; por isso, seria
necessário “voltar aos métodos tradicionais de militância: contato direto,
porta a porta, assembleias de bairro, trabalho de formiguinha” (3 abr. 2014).
Dificuldade adicional quando se
depende de eleitores: o “adversário cujas necessidades devem ser satisfeitas”,
retomando as palavras de García Linera, não se encontra apenas em círculos
conservadores. Ele também se cristaliza na relação mantida por todo mundo com a
sociedade de consumo, inclusive pela esquerda. Questionado sobre as razões
pelas quais não iria mais longe na transformação de seu país, o ex-presidente
uruguaio José “Pepe” Mujica respondeu: “Porque as pessoas querem iPhones!”.10
Ser pobre não significa ser revolucionário. E nem todos os revolucionários
sonham com assembleias gerais febris.
“Não sou mais pobre, voto na
direita”
Ocorre que o aumento do padrão de
vida, principal conquista da esquerda latino-americana, favorece certos
reacionarismos. Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais
argentinas, em outubro de 2015, as redes sociais progressistas exibiam um
gráfico intitulado “Os ciclos econômicos da Argentina”. O esquema apresentava
as diferentes etapas de um processo circular: 1) “A direita destrói a classe
média”; 2) “A classe média, pauperizada, vota em um governo popular”; 3)
“Eleito, esse governo melhora o nível de vida da classe média”; 4) “A classe
média acha que é parte da oligarquia e vota na direita”. De volta à estaca
zero.
E o fenômeno não se restringe às
camadas intermediárias da população. Quando questionamos o enfraquecimento da
capacidade de mobilização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
no Brasil, o professor universitário Armando Boito oferece uma explicação:
embora tímidas, as políticas do PT transformaram uma fração do movimento em
pequenos camponeses estabelecidos. Sua radicalidade foi atenuada quando eles
passaram a ter algo mais a perder além de suas correntes. O que mais impulsiona
o sonho conservador de uma “sociedade de proprietários”?
Não basta desejar o nascimento do
“homem novo”, caro a Ernesto “Che” Guevara, para que ele exista, nem mesmo em
Cuba. Mas algumas políticas talvez dificultem as coisas. Presidente do Banco
Central da Bolívia em diferentes governos conservadores, o atual ministro da
Economia, Luis Arce, comemora: “Agora todo mundo tem a oportunidade de ficar
rico na Bolívia”. Deveríamos ficar surpresos? Esse eco de François Guizot, um
dos pensadores conservadores e liberais da Restauração francesa, facilita a
emergência de uma nova burguesia nativa, não necessariamente mais progressista
que a anterior, sendo a “revolução” resumida nos seguintes termos por um de seus
membros: “Eu tenho dinheiro, posso fazer o que quiser”.11
Embora o “processo bolivariano”
seja ilustrado por sua capacidade de estimular a politização do povo (ver
artigo na pág. 17), parte de sua base também está tentada a virar-lhe as
costas. O embaixador da Venezuela em Paris, Héctor Michel Mujica Ricardo, conta
uma história. Às vésperas da eleição presidencial de 2013, ele conheceu uma
jovem de um bairro popular. Ela encarna, a seu ver, a categoria da população
que mais se beneficiou das políticas redistributivas ambiciosas do governo:
“Antes, eu vivia na miséria. Foi graças a Chávez que saí de lá”, ela confirma,
antes de acrescentar, como prova: “Agora que não sou mais pobre, voto na
oposição”.
Da Argentina à Venezuela, seria
necessário então concluir que a melhoria das condições de vida afasta
mecanicamente seus beneficiários da esquerda? “Há muitas maneiras de elevar o
nível de vida das pessoas”, objeta Pomar. “O que fizemos no Brasil foi aumentar
o consumo, o que aumentou a submissão às lógicas do mercado.” Assim, o PT
permitiu que os mais pobres colocassem seus filhos em escolas privadas,
tivessem acesso à medicina particular, planejassem sua aposentadoria por meio
de planos de capitalização. “Não é desse modo que se desenvolve consciência
política. Seria mais eficiente construir serviços públicos. Mas teria sido
necessário aumentar os impostos, portanto enfrentar a burguesia. Uma via
incompatível com a estratégia de conciliação adotada por Lula, e depois por
Dilma...”
Em um contexto de desaceleração
econômica, a via das concessões conduz ao impasse. Nenhum dos governos
progressistas latino-americanos conseguiu transformar sua estrutura produtiva:
dependentes de suas exportações de matérias-primas, eles se veem entregues à
turbulência internacional. As coisas não parecem ir melhor na área fiscal.
Quando a renda colapsa e a economia estagna (ou recua), o montante disponível
para a redistribuição derrete como neve sob o sol. Já não é possível aliviar os
mais fracos sem perturbar os poderosos. Mas, para confrontar os interesses
destes, é melhor contar com a mobilização daqueles. Após um período de
afastamento, conseguirão os líderes progressistas se reintegrar aos movimentos
sociais? E estes conseguirão reacender a esperança?
BOX: TRAIÇÃO
A lógica de que o livre-comércio
beneficia a todos é uma mentira, uma loucura, que parece mais religião do que
ciência.” Em 2006, Rafael Correa, então candidato à presidência do Equador, não
mediu palavras: ele jamais assinaria um acordo de livre-comércio. Oito anos
mais tarde, em 12 de dezembro de 2014, seu governo rubricava um com a União
Europeia. Virou a casaca? Certamente. Mas traição?
Na noite de 31 de dezembro de
2014, o acordo que autorizava o Equador a contar com o Sistema Geral de
Preferências (SPG+) da União Europeia expirou. Esse dispositivo de redução das
barreiras alfandegárias aplicava-se a quase 6,5 mil produtos, o equivalente a
60% do montante das exportações do país para a Europa (em um total de 2,5
bilhões de euros em 2013).
Entre esses produtos estava a
banana, que responde por 30% das vendas na Europa. Mas ela também está entre as
exportações da Colômbia e do Peru. Em 2012, estes últimos assinaram um acordo
com a Europa, atenuando de maneira ainda mais generosa que o SPG+ as barreiras
comerciais a que estão sujeitos. Um desastre para o Equador, cujas vendas de
banana no exterior caíram 25% em 2013. Apenas uma pequena amostra do que viria
acontecer, uma vez que o acordo previa a redução gradual dos direitos
aplicáveis às bananas colombianas e peruanas até um piso de 75 euros por
tonelada em 2020 (contra 114 euros para o Equador).
Entre suas convicções e a banana,
o presidente Correa tentou, primeiro, não escolher. Quando a Europa propôs
assinar o mesmo texto com a Colômbia e o Peru, ele tentou discutir os termos.
Esforço vão: a União Europeia mostrou-se tão pouco inclinada a negociar com ele
quanto com o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras. Era pegar ou largar.
Excluído do SPG+, o Equador “não teve outra escolha senão assinar o acordo de
livre-comércio”, explicou um dos líderes europeus a seus parceiros equatorianos
nas negociações. “A menos que desejasse optar pelo isolamento” (El Diario, 8
nov. 2014). (R.L.)
BAIXO2: Contra a originalidade
excessiva
Em janeiro de 2014, os zapatistas
de Chiapas, no México, convidaram centenas de intelectuais internacionais para
comemorar o vigésimo aniversário de sua revolta. Nenhuma pergunta ficaria sem
resposta, prometeram, desde que os convidados concordassem em compartilhar o
cotidiano da organização: sua resistência às agressões do Exército mexicano,
sua batalha pela subsistência alimentar, sua busca por não reproduzir as
estruturas autoritárias do passado. Durante a cerimônia de encerramento, após
uma semana de imersão, os visitantes puderam fazer as perguntas que lhes ardiam
nos lábios. Uma jovem norte-americana levantou a mão: “Tudo o que vi aqui me
deixou muito interessada, mas continuo um pouco desapontada a respeito de um
assunto: qual é a posição de vocês sobre a questão gay?”. Na tribuna, o
representante dos zapatistas permaneceu impassível...1
Um Sul excessivamente
despreocupado com a luta de certos militantes ocidentais? Ocorrem também
censuras em sentido inverso. Em um artigo criticando o interesse de seus
colegas latino-americanos pela obra do marxista britânico David Harvey, o
intelectual uruguaio Eduardo Gudynas denunciou uma forma de “colonialismo
amigável”. O sistema de pensamento “ocidental” de Harvey seria incompatível com
a realidade andina. A prova? As análises do britânico, consagradas à geografia
ou à exegese de O capital, de Karl Marx, não reservam “nenhum espaço ao sumak
kawsay equatoriano ou ao suma qamaña boliviano”– conceitos geralmente
traduzidos por “bem viver”.2
A emancipação, portanto, não
seria pensada da mesma maneira de um lado e de outro do Atlântico. O socialismo
latino-americano não seria “nem um decalque nem uma cópia”3 de sua versão
europeia, já alertava o marxista José Carlos Mariátegui em 1928. Desde então, o
autor e essa ideia ficaram tão associados um ao outro que digitar “Mariátegui”
no motor de busca Google produz imediatamente os termos “ni calco ni copia”, em
espanhol.
A obra do peruano não se limita,
porém, a essa meia dúzia de palavras. Outras, menos citadas, completam sua
análise: “Embora o socialismo tenha nascido na Europa, como o capitalismo, ele
não é [...] especificamente nem particularmente europeu. É um movimento global
do qual não se pode subtrair nenhum dos países que se movem na órbita da
civilização ocidental. [...] Na luta entre dois sistemas, entre duas ideias,
não nos vem à mente nos sentir expectadores nem inventar uma terceira via. A
originalidade excessiva é uma preocupação literária e anárquica”.4 (R.L.)
Renaud Lambert é jornalista.
Ilustração: Dhamer
1 Agradeço a Hélène Roux, que
relatou essa história de sua estadia em Chiapas.
2 “La necesidad de romper con un
‘colonialismo simpático’” [A necessidade de romper com um “colonialismo
simpático”], Rebelion.org, 30 set. 2015.
3 José Carlos Mariátegui, 7 essais
d’interprétation de la réalité péruvienne [Sete ensaios de interpretação da
realidade peruana], Maspero, Paris, 1968.
4 Citado em Michael Löwy, Le
Marxisme en Amérique latine. Anthologie [O marxismo na América Latina.
Antologia], Maspero, 1980.
1 Segundo a Venezuela, a pobreza
diminuiu no primeiro semestre de 2015.
2 Colóquio no Instituto Lula, em
São Paulo, 5 out. 2015.
3 Valter Pomar, “Pour ne plus
avoir peur de perdre” [Para não ter mais medo de perder], Manière de Voir,
n.131, out./nov. 2013.
4 Entrevista concedida à revista
Brasileiros, São Paulo, 9 jun. 2015.
5 “Rafael Correa amenaza con
renunciar si el Congreso despenaliza el aborto” [Rafael Correa ameaça renunciar
caso o Congresso descriminalize o aborto], 11 out. 2013. Disponível em:
Infobae.com.
6 Steve Ellner, “Venezuela:
Chavistas debate the pace of change” [Venezuela: chavistas debatem o ritmo da
mudança], Report on the Americas, v.47, n.1, 2014.
7 Entrevista concedida ao IHU
On-line, 27 ago. 2015.
8 Alana Moraes e Jean Tible,
“¿Fin de fiesta en Brasil?” [Acabou a festa no Brasil?], Nueva Sociedad, Buenos
Aires, set./out. 2015.
9 Álvaro García Linera, “Bolivie,
‘les quatre contradictions de notre révolution’” [Bolívia, “as quatro
contradições de nossa revolução”], Le Monde Diplomatique, set. 2011.
10 História contada por Amador
Fernández-Savater, a quem agradecemos.
11 As duas citações são do
Financial Times, Londres, 4 dez. 2014.
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