sexta-feira, 25 de março de 2016

White God - A vingança dos oprimidos

Filme húngaro foi filmado com cerca de 200 cães treinados e conta a história de uma gangue de cachorros que saem às ruas para se vingar dos maus tratos.

Léa Maria Aarão Reis* - http://www.umacoisaeoutra.com.br/ www.cartamaior.com.br

Foi numa visita por acaso a um abrigo público de cães que o húngaro Kornel Mundruczó - uma das vozes mais originais do cinema húngaro contemporâneo – encontrou inspiração para fazer o contundente filme White God (Feher Isten ou seja, deus branco), em cartaz nas principais cidades brasileiras neste fim de verão. Filmado com cerca de 200 cães treinados por uma equipe de dez profissionais e com a americana Teresa Ann Miller, tida como uma das mais conhecidas adestradoras de animais do mundo, a produção deste jovem diretor é dedicada ao célebre colega, cineasta Miklós Janksó, morto aos 92 anos de idade.
A visita deixou-o em estado de choque. Ele descreve. “Eu me senti tão envergonhado vendo aqueles cães atrás das cercas apenas esperando pela sua morte que escrevi o roteiro sobre eles em apenas um mês; eu estava muito comovido.”

White God deixou o Festival de Cannes de 2014 de queixo caído pela sua força e originalidade. Arrebatou o prestigioso prêmio do certame paralelo Un Certain Regard e ganhou uma divertida “Palma Dog” para o melhor cão ator, naquele ano.

Misto de hiper realismo e de realidade, mas com traços de distopia, o filme de Mundruczó abre com uma cena impressionante que prenuncia a violência que virá. Nada que lembre filmes bem comportados e edulcorados sobre cães e suas relações afetivas com os humanos como Marley e eu, Beethoven, Hachiko ou 1001 Dalmatas. Sua narrativa é seca, objetiva e não concede a sentimetos e sentimentalismos mesmo bem intencionados.

Na abertura, uma menina, Lili, anda de bicicleta pelas ruas de uma cidade de Budapeste deserta, quando, de repente, mais de cem cães dobram uma esquina e começam a correr atrás dela. A partir dali a história é narrada em flashback. Hagen, o líder da matilha, meses atrás vivia com sua dona, a menina da bicicleta. Para não pagar a taxa cobrada pela prefeitura a quem é proprietário de cachorros vira-latas, o pai da garota, que detesta Hagen, o joga fora.

Inicia-se então a dolorosa jornada do cão. Ele vai parar nas mãos de um mendigo e é vendido para um treinador de cães de briga que o transforma em uma máquina de matar. Quando consegue escapar, Hagen monta uma gangue gigantesca de furiosos cachorros que saem às ruas para se vingar de todos os que o maltrataram e promovem um incrível arrastão pelas ruas de Buda e de Pest.

Lili, estudante de música, será a única que poderá deter os cães, com a melodia que toca no seu trompete. O último plano do final do filme, que permanece aberto, com ela deitada na rua na frente dos 200 cães também sentados, depois de acalmá-los com sua música, é uma das mais fortes imagens em tela de cinema, em tempos recentes. Arrebatador. 

Dois cachorros labradores gêmeos, Luke e Body, fazem o papel de Hagen. "Foi uma experiência terapêutica,” disse o autor do filme, em entrevista na época do lançamento na Europa. ”Os cães usados vieram da Sociedade Protetora dos Animais de Budapest, e no final dos trabalhos todos eles foram adotados,” garante. 


White God -- deus branco - remete a um clássico do americano Samuel Fuller, Cão Branco (White Dog, de 1982), que também narra a história de um cão treinado para matar e é uma alegoria das relações racistas e da luta de classes. Ao mesmo tempo homenageia o romance de ficção científica dos irmãos russos Arcady e Boris Strugatsky, É difícil ser um Deus.

A produção de Mundruczó não é uma simples diversão. Carrega forte crítica social, cultural e política a uma Europa que vergonhosamente fecha as portas aos imigrantes refugiados das guerras que ela própria estimula, no seu alinhamento subserviente aos interesses econômicos e geopolíticos americanos. É uma crítica em particular ao próprio governo atual do seu país, de direita radical, que a eles fecha suas fronteiras de modo criminoso. “Para ser um artista independente na Hungria não é fácil,” anota Mundruczó.

O diretor diz que a história de White God foi inspirada nas relações sociais cada vez mais hostis dos dias de hoje “quando o senso de superioridade parece ser um privilégio da civilização ocidental. Ao invés das minorias, escolhi os animais como símbolo para a ultra violência sofrida pelos mais frágeis e pelas minorias sem defesas,” ele explicou.

“Desviamos muitas vezes nossos olhos dos recantos mais sombrios da sociedade – é o caso do tráfico de pessoas - como se fossemos Deus que vê a sua criação à distância. Mas quando Hagen é abandonado porque sua raça misturada faz dele um animal de estimação indesejável, sua dramática jornada acaba incitando uma revolução.”

A poderosa metáfora política e cultural criada por Kornel, que descende, em parte, de romenos, foi co-produzida com dinheiro da Alemanha e da Suécia. E a sua principal inspiração, quando adolescente, veio do cinema de Rainer Werner Fassbinder, e, mais tarde, de Robert Bresson e de Akira Kurosawa, excelentes companhias, mas também dos brilhantes filmes de ficção científica pós apocalípticos criados pela Hollywood dos anos 90 - Terminator e Blade Runner.

Ainda vamos ouvir falar bastante – e bem - do autor de White God. E a leitura desse seu projeto cinematográfico radical e, por que não? pré-apocalíptico, vindo agora da distante Hungria vale para o nosso tempo e para o nosso momento de enorme tensão política, aqui, no Brasil: os oprimidos, injustiçados, os caluniados e humilhados, os perseguidos de todas as formas voltarão sempre, em multidão e organizados, para a sua revanche.



*Jornalista e autora de Novos Velhos, Maturidade e Cada um Envelhece como Quer (e como pode)




Créditos da foto: reprodução

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