segunda-feira, 4 de abril de 2016

O "efeito Heisenberg" na irrealidade midiática cotidiana

Wilson Roberto Vieira Ferreira // http://cinegnose.blogspot.com.br/

A transmissão televisiva da final do Novo Basquete Brasil parece confirmar aquilo que Neal Gabler chama de “efeito Heisenberg”, paradoxo quântico onde a mídia, na verdade, está cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida: ao mobilizar uma serie de signos que forçavam uma analogia com o show business esportivo norte-americano, a transmissão celebrou muito mais o sucesso da parceria da TV Globo com a nova liga oficial de basquete do que a transmissão de uma “jornada esportiva”. E para ficar mais evidente isso, o barulho ensurdecedor da torcida nas arquibancadas era menos pelos lances na quadra, do que pelo vai-e-vem das câmeras que comandavam as reações dos torcedores.

Neste último final de semana assisti pela TV a final do NBB (Novo Basquete Brasil, a liga oficial de Basquete brasileiro) entre Flamengo e Uberlândia na Arena da Barra no Rio de Janeiro.  Para além dos aspectos técnicos do jogo, começou a me chamar a atenção a forma como a partida se promovia para os espectadores e, além, disso, o próprio comportamento dos torcedores nas arquibancadas.

As belas imagens da arena e da quadra pareciam forçar uma semelhança com os imensos ginásios esportivos da Liga de Basquete norte-americana: o placar eletrônico onipresente suspenso sobre o centro da quadra, mascotes saltitando a cada parada técnica, notas musicais em som de órgão entoadas a cada anúncio de troca de jogadores, shows musicais com cantores nos intervalos etc. Uma atmosfera de show business, muito mais do que esporte: entretenimento.

Somado a isso o tom do comportamento da plateia parecia ser dados pelas câmeras que deslizavam por sobre as arquibancadas. Percebia-se que uma área da plateia, antes formada por torcedores sentados e concentrados no jogo, ao verem a proximidade da câmera se levantavam, pulavam e torciam de forma mais enérgica. Alguns homens mais empolgados beijavam suas companheiras ao serem surpreendidos pela proximidade da câmera...


Para Neal Gabler a sociedade
transformou-se em um
gigantesco
"Efeito Heisenberg"
Tudo isso fazia vir à minha mente a expressão “efeito Heisenberg” criada pelo jornalista e crítico cultural Neal Gabler no seu livro Vida, O Filme – Como o entretenimento conquistou a realidade. Gabler atribui esse fenômeno a um efeito secundário produzido pela mídia: se o principal efeito da onipresença midiática foi transformar quase tudo que era noticiado em entretenimento, o efeito secundário foi forçar quase tudo a se transformar em entretenimento para atrair a atenção da mídia.

O termo “efeito Heisenberg” é uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.

Para Gabler o resultado da onipresença das mídias teria sido transformar a sociedade em um gigantesco efeito Heisenberg. Nas palavras dele 
“as mídias não estavam de fato relatando o que as pessoas faziam; estavam relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, O Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).
Durante a transmissão pela TV Globo da final da liga nacional de basquete, parecia que não estávamos apenas assistindo a uma competição técnica entre poderosos times. Havia uma outra “cena”: a emissora transmitia o próprio impacto midiático da parceria da emissora com o NBB, desde a presença massiva dos signos para forçar uma analogia ao show business esportivo norte-americano às reações do público comandadas pelos vai-e-vem das câmeras.

Em muitos momentos ocorria um fenômeno paradoxal: o barulho das arquibancadas que ouvíamos na transmissão não era motivado por algum lance que ocorria no jogo, mas pela movimentação das câmeras voltadas para a plateia que acabava criando uma espécie de “ola”.

Tal como o paradoxo quântico descrito por Heisenberg, a transmissão midiática altera a própria natureza, trajetória e espontaneidade do objeto observado. Não se trata mais de uma transmissão de um fato esportivo, mas agora e cada vez mais, a transmissão de um evento (no sentido mercadológico) esportivo, onde a emissora é um dos próprios promotores que produzem o evento e que ela mesmo transmite. Um fenômeno de recursão e circularidade vertiginosa: a TV Globo observa, altera o fenômeno e transmite a própria alteração, o que retroalimenta o sistema em loop.

Estratégias indiretas


Gabler, citando o historiador Daniel Boorstin, fala das chamadas “estratégias indiretas” que dominam a sociedade, à qual Boorstin cunhou como “pseudo-eventos”: tudo deve se transformar em entretenimento para chamar a atenção da mídia. Disso decorre que todo e qualquer problema real poderia ser solucionado por uma estratégia indireta – não para resolver problemas reais e sim para parecer que está resolvendo.

Boorstin dava o exemplo de um hotel que tinha vivido épocas douradas e que estava, agora, decadente: tapeçaria e estofados surrados, serviço de hotelaria defasado e quartos sem clientes.  Qual a solução? Em tempos menos sofisticados a solução seria encontrar um novo chefe de cozinha, melhorar o encanamento... Mas a técnica dos relações públicas é mais indireta: eles propõem a celebração do aniversário do hotel, com a presença de celebridades e políticos para mostrar que “os bons tempos voltaram”. O evento é realizado e o objetivo alcançado: ganhar visibilidade midiática para o “novo hotel” que surgiu.

Os 16 anos do basquete nacional afastado dos Jogos Olímpicos, um esporte onde o Brasil já tinha sido bicampeão mundial (1959 e 1963), foi uma evidente mostra da sua decadência técnica. De segundo esporte mais popular, o basquete perdeu o posto para o vôlei. O interessante é que a avaliação dos dirigentes para essa questão foi antes mercadológica do que técnica: o problema era de “visibilidade”.

Em 2008 cria-se a Liga Nacional de Basquete (LNB) e a marca “Novo Basquete Brasil” com a parceria da TV Globo. A marca NBB passa a ser licenciada em parceria com a Globo Marcas e o Jogo das Estrelas, nos moldes do show business norte-americano.

Mais barulhento, mais rápido e maior


Regras do tênis alteradas para dar
mais fluidez televisiva
A questão levantada por Gabler sobre o “efeito Heisenberg” e os “pseudo-eventos” de Boorstin não quer discutir se, de fato, essas estratégias indiretas repercutem no “real”: será que o hotel vai realmente voltar aos seus anos dourados e melhorar seus encanamentos e a qualidade da cozinha? Será que o basquete brasileiro melhorará tecnicamente? A questão aqui não é essa, mas no efeito secundário dessas estratégias indiretas: ao observarmos uma transmissão televisiva que se traveste de “jornada esportiva”, não estamos mais testemunhando um fato, mas antes vendo como a mídia cobre a si mesma e o seu impacto sobre a vida.

É curioso como, por exemplo, o tênis (um esporte cujas origens são pastorais e contemplativas) tem suas regras alteradas para se adequar à sintaxe televisiva: a adoção do tie braker para diminuição do tempo dos games, punição para jogador que excede o tempo limite entre os pontos etc. visam dar mais “fluidez” ao jogo – na verdade forçar as partidas à grade televisiva, já que as mídias não são meras transmissoras, mas agora parceiras na produção dos eventos.

Se em 1924 durante a cerimônia da abertura da World Series de beisebol nos EUA a simples entrada de coristas em campo foi bombardeada por cascas de laranja e garrafas de refrigerante jogadas pela indignada torcida que via na atração uma intrusão em um evento esportivo, hoje o torcedor médio não consegue (e nem se importa) estabelecer a diferença entre esporte e entretenimento, entre uma avaliação técnica de um evento real e um evento ficcional onde os jogadores interpretam muito mais personagens (o “xerife”, o “cai-cai”, o “baladeiro”, o “malandro” etc.) do que atletas em competição.

O efeito Heisenberg é o efeito secundário que reforça o fenômeno midiático de autoreferência e tautismo que já descrevemos em postagem anterior (veja links abaixo). A primeira consequência desse efeito é afetar a nossa percepção da realidade: passarmos a privilegiar e dar importância moral a tudo aquilo que represente ser mais barulhento, mais rápido e maior – ou seja, a própria natureza da linguagem midiática que exige do evento que se encaixe a essas premissas.

E a própria circularidade e autorefrência que representa o efeito Heisenberg apenas reforça o monopólio político e econômico da mídia (e, no caso do Brasil, da TV Globo) como um quarto poder da sociedade, não tanto porque ela só mostra o que quer, mas principalmente porque um fato só existe se a mídia o criou e transmitiu.

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