Sociólogo brasileiro analisa a representação das sexualidades desde a era dos filmes mudos
Paris, 1933. Os franceses formam filas para assistir a Êxtase, filme protagonizado pela austríaca Hedwig Kiesler. O mundo a conhecerá, nos anos seguintes, por Hedy Lamarr, estrela de beleza vertiginosa, ademais inventora de um sistema de comunicações a servir de base para a telefonia celular. A atriz representa Eva, que, casada com um velho milionário, comete o primeiro adultério do cinema com Adão, um engenheiro viril.
Ela corre nua entre as árvores, acaricia um cavalo e, ao se banhar no rio, tem o corpo multiplicado nos reflexos da água. O encontro com o amante é simbolizado pela carícia a uma flor, e a plateia urra durante o defloramento. “Êxtase, êxtase!”, pede, enquanto o rosto da atriz simula um prazer que se oferece a todos. Logo o Vaticano protestará contra a exibição e os Estados Unidos proibirão o filme, que será queimado pelos serviços alfandegários.
Um estranho fim, porque o cinema havia muito se nutria da sexualidade. O primeiro beijo na boca fora dirigido por William Heise, em 1896, ano em que transcorrera o primeiro strip-tease, no filme Le Coucher de la Mariée. Em 1899, Thomas Edison filmara o segundo beijo, forjado numa situação a três. O sexo esteve presente, portanto, desde o inebriante início da arte, e parecia tão necessário a esta espetacularização do mundo quanto o trem ao chegar à estação. Um novo e excitante espaço público, o cinema repetia a literatura libertina forjada pelos iluministas.
Enquanto discutia o sexo, o artista encolerizava o poder. À moda do que mais tarde faria Pier Paolo Pasolini em Teorema ou Salò, Luis Buñuel transformaria a obscenidade em ideal, disposto a combater um sistema excludente. Em L’Âge d’Or, de 1930, encenara a paixão fustigada pela incompreensão da Igreja e da sociedade burguesa. No coração do capitalismo que rouba e mercantiliza o desejo, o filme foi vilipendiado pelas milícias fascistas, que levaram ao recuo das exibições. O que estava fora de cena, o obsceno, não teria mais lugar.
Não há, para o homem, outro inferno além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes. E, em 1934, todo o poder de encenar o corpo seria retirado dos artistas.Hollywood não mais aceitaria o atributo de “cidade do pecado” por determinação de Will Hays, um presbiteriano amigo do presidente Herbert Hoover. Seu Código de Produção, a vigorar a partir de 1934, estabeleceria a obrigatoriedade da ficção casta, de que estavam excluídos a perversão e o crime.
“A simpatia do público nunca tenderá para os vícios, o pecado e o mal”, lia-se em seus princípios gerais. Por 32 anos, até 1966, os Estados Unidos vetaram casais heterossexuais na mesma cama, mesmo vestidos, e os maridos que tiravam o pé do chão ao beijar as esposas. Os modos de burlar o Código Hays desaguaram em uma torrente de representações. O leite no ponto de fervura poderia simbolizar o amor em consumação. Os grandes musicais evocavam o ato sexual, os rodopios de um apaixonado sob a chuva. Tudo parecia ser o sexo extravasado da maneira possível.
Contudo, havia mais. “Desde a adolescência me sentia intrigado com a existência, na videolocadora, de um esconderijo no qual eu não podia entrar”, conta Rodrigo Gerace, de 35 anos, autor de Cinema Explícito – Representações cinematográficas do sexo. O pesquisador constatou que a encenação pornográfica, caricata, exercida de maneira súbita e sem contexto, teria começado massivamente nos anos 1960, enquanto avançava a contracultura. Três décadas depois, a Aids faria o sexo “voltar ao tabu do armário”, em filmes que pareciam patologizá-lo. O ato libidinoso ganhou então célebres estilizações. Em 1999, De Olhos Bem Fechados continha uma orgia explícita, mas o diretor Stanley Kubrick morreu antes de incluir a sequência na montagem final do filme.
Sociólogo por formação, o pesquisador Gerace sentiu-se obsedado por esta entre tantas encenações que inseriam a obscenidade em um contexto sério. Especialmente, fora atraído por aquilo que o diretor dinamarquês Lars von Trier promovera em Os Idiotas. No filme de 1997, um grupo de jovens burgueses isola-se em uma ilha de modo a elogiar o preconceito e a anormalidade.
O que a produtora pornô Brasileirinhas jamais poderia exibir em circuito comercial circula ali com naturalidade. A pornografia torna-se uma obrigatoriedade de culto. Nos anos 2000, a estética vê-se naturalizada em Azul É a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche, ou em Love, de Gaspar Noé. Para entendê-la, Gerace recua até a era muda. Desde lá, constata, o modo de encarar o sexo não se transforma de maneira essencial. É invariavelmente um tabu, um pecado a ser confessado, como ocorrera em Ninfomaníaca, a obra em que Trier, a seu ver, atualiza Emanuelle, a série de suave pornografia encenada por Sylvia Kristel nos anos 1970.
Gerace encara com desconfiança o termo “erotismo”. Para ele, erótico muitas vezes é o sexo burguês, trancafiado em quatro culpadas paredes. Ele usa o termo “explícito” para a representação de toda a sexualidade, porque o entendimento do conceito (no início, apenas um beijo) modifica-se com o tempo.
“Para mim, o cinema deveria ser obsceno, ou seja, mostrar o que a sociedade esconde.” Seu livro endossa a importância da provocação dentro da história cinematográfica. “Tive de estabelecer, em primeiro lugar, o que entendo por sexo. O sexo, para mim, é sempre experimental, por expandir as limitações conhecidas de gênero. E ao mesmo tempo o sexo que a gente faz é sempre explícito, próximo da pornografia, embora julguemos praticar o ‘erótico’, distante do pornográfico. Embora assimilada, a pornografia está à margem. Quis mergulhar em seu esconderijo.”
Ele entende que, desde seu início, a produção explícita privilegiou o ponto de vista heterossexual. E estabelece como marco contrário o filme de Gerard Damiano Garganta Profunda, de 1972, no qual a busca pela realização era promovida por um personagem feminino. O primeiro pornô com história, contudo, “monstrifica” a mulher.
O personagem de Linda Lovelace erra por variados tipos de relações sexuais, incapaz de sentir orgasmo, até que um médico localiza seu clitóris na garganta. Mais libertadora parece-lhe a obra de Jim Sharman realizada três anos depois,The Rocky Horror Picture Show. “Tudo é muito alegre nesse filme fundado na performance, na androginia e na transexualidade.” O pesquisador vê celebrada ali uma “festa dos sentidos”, ao contrário de obras de representação aberta da sexualidade que encenam teses moralistas.
Muito se comentou o fato de a pornochanchada brasileira, exemplificada em clássicos como O Bem Dotado – O Homem de Itu (1978), de José Miziara, apresentar o homossexual como um hedonista, um desencanado. “Mas por que considerar pejorativo o que é efeminado?” O Brasil, ele crê, dá suas lições no sentido de descontaminar a sexualidade de uma normativa derrotada. Não somente os filmes de Karim Aïnouz ou Hilton Lacerda abordam livremente a temática sexual.
Coletivos cinematográficos nacionais como Surto e Deslumbramento agem “sem preconceito contra a bicha-louquice”, desinteressados de pedir licença para existir, à moda daqueles feministas, como o Xplastic. “Em um plano utópico, todos são corpos falantes com muitas sexualidades internas e desejos expandidos”, entende o pesquisador. “Tomara que tão logo seja absurdo perguntar se alguém é gay ou heterossexual, assim como separar o pornográfico do erótico. A quem interessa essa distinção?”
*Reportagem publicada originalmente na edição 908 de CartaCapital, com o título "A festa dos sentidos"
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