segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A Segunda Queda de Constantinopla

A perda da Turquia tem o potencial de transformar em colapso o atual declínio do Capitalismo Ocidental.

          Antonio Gelis-Filho // www.cartamaior.com.br

Enquanto as Olimpíadas cumprem seu papel de agradável fantasia midiática, o edifício da hegemonia ocidental sofre o mais forte golpe desde a queda do Muro de Berlim, quando o atual período histórico teve início. Trata-se da redefinição geopolítica da Turquia, desencadeada pela tentativa fracassada de golpe militar que o governo de Ankara enfrentou com sucesso no mês de julho. Passadas algumas semanas, torna-se claro que um dos mais importantes dentre os “países indecisos” da geopolítica mundial está abandonando o barco do sistema de poder centrado no ocidente. Por um lado, a Turquia tem sido um dos mais confiáveis aliados do Ocidente desde a Segunda Guerra Mundial. Suas tropas lutaram e morreram ao lado das tropas norte-americanas na Guerra da Coreia. Os governos turcos têm tolerado a presença de ogivas nucleares ocidentais em seu território, algo que condena o país ao aniquilamento imediato no caso de um conflito atômico. A Turquia possui um dos mais poderosos exércitos da OTAN. Abriga milhões de refugiados ansiosos por prosseguirem para a Europa, algo que apenas não fazem por conta da ação do governo turco. Vinha sendo um aliado importante na “paz quente” que agora caracteriza a relação do Ocidente com a Rússia, a ponto de a força aérea turca ter derrubado um avião militar russo no ano passado na região fronteiriça com a Síria. Por outro lado, a assombrosa velocidade da mudança de posicionamento do país enterra as já frágeis esperanças de uma recuperação da hegemonia ocidental.
De certa forma, estrategistas em Washington podiam dormir um sono tranquilo a despeito de todos os reveses geopolíticos sofridos pelo Ocidente no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Crimeia, no Mar do Sul da China e em outros locais, pois a eles bastava pensar na Turquia: a imensa importância geopolítica do país, um aliado até então confiável do Ocidente compensava tais insucessos. Mas isso mudou. Um pouco antes da confusa tentativa de golpe, o presidente Erdogan havia enviado uma carta ao Kremlin, lamentando a derrubada do avião militar russo no ano anterior e expressando o desejo de normalização das relações entre os dois países, abaladas desde então.

Olhando em retrospecto, esse talvez já fosse um sinal de que o governo turco percebia a incapacidade do Ocidente em transformar apoio verbal em apoio concreto. A tão anunciada queda de Bashar al-Assad do governo sírio, um sine qua non da política ocidental na Síria, nunca foi realizada, em grande parte pela intervenção ousada da Rússia naquilo que os americanos, de forma irrealista, pareciam considerar seu “território”. 

Mas acima de tudo, o Ocidente já não consegue oferecer a seus assustados apoiadores espalhados pelo mundo um modelo econômico minimamente sustentável. O modelo econômico ocidental de hoje, caracterizado pela financeirização das economias, sempre associada ao consumismo sustentado por endividamento, gera apenas perda de competitividade nacional, a desindustrialização e o aumento da desigualdade econômica. Alguns poucos segmentos da população beneficiam-se, o que gera ressentimento na maioria que se sente injustiçada. Isso ocorreu na Turquia. A expressão de tal ressentimento foi o Islamismo moderado do partido do presidente Erdogan. A vulnerabilidade desse modelo ocidental suicida, associada à arrogância desesperada dos líderes ocidentais que não aceitam a ideia de viver em um mundo com diferentes modelos de sociedade, encontrou nas ruas lotadas de manifestantes contrários ao golpe então em curso em Istanbul um revés talvez fatal.



Pois imediatamente após o golpe, a Turquia iniciou um movimento de afastamento em relação ao Ocidente que não se via desde há muito. O primeiro país visitado por Erdogan após ter garantido sua posição foi a Rússia. Há sinais de que a construção de um oleoduto submarino ligando Rússia e Turquia seria retomada. Os Estados Unidos forma acusados por Ankara de oferecerem apoio à tentativa de golpe, por abrigarem o clérigo Fethullah Gülen, considerado um inimigo por Erdogan. A reação europeia ao fracasso do golpe foi de indisfarçável desapontamento. A base norte-americana de Incirlik, no sudoeste da Turquia, teve água e luz cortadas na reação do governo ao golpe; militares turcos ali baseados foram presos por tropas leais ao governo, inclusive seu comandante, e o local foi considerado por apoiadores de Erdogan como um dos centros da tentativa de golpe. Robert Fisk, o jornalista britânico do The Independent especializado em Oriente Médio afirmou que os serviços de inteligência de Irã e Rússia teriam avisado a Erdogan que uma tentativa de golpe se aproximava. Mais de sessenta mil pessoas foram presas na Turquia após o evento, em um claro sinal da força e talvez da irreversibilidade do novo posicionamento do governo turco.

Todos esses fatos apontam para uma nova realidade geopolítica mundial. Em se confirmando esse reposicionamento turco, a OTAN passa a ser mais uma fantasia institucional ocidental, sem lastros na realidade. Isso porque o novo exército turco, sem seus membros mais marcadamente favoráveis ao ocidente, torna-se um membro incômodo. Mas um incômodo sem o qual o próprio clube perde a razão de ser. Além disso, a União Europeia, essa casca institucional já esvaziada de qualquer conteúdo político e social real, deverá em breve enfrentar um acerto de contas longamente esperado: a decisão de cancelar ou não, definitivamente, as intermináveis tratativas sobre a eventual entrada da Turquia. Dividida entre os custos geopolíticos de admitir que não deseja um país islâmico em seu seio e a pressão que Erdogan astutamente deve exercer para que tal decisão seja tomada, Bruxelas provavelmente reagirá da única maneira que sabe agir há muito tempo: fazendo nada, decidindo nada, adiando mais uma consequência inevitável do declínio ocidental.

Essa análise considera mesmo a improvável possibilidade de que Erdogan enfrente problemas em se manter no poder. Pois nesse caso, tendo cruzado em julho o Rubicão da submissão geopolítica ao Ocidente, o presidente turco teria razões para agir mais claramente contra este. Apenas uma agora improvável guerra civil, também muito desfavorável ao projeto ocidental, tivesse talvez o poder de reverter no curto ou médio prazos o estado atual da política turca. A Turquia pró-ocidental, escora vital para o edifício ocidental, ruiu. As expressões de fragilidade da hegemonia ocidental, internas e externas, podem assistir seu ritmo já acelerado de surgimento aumentar, transformando o que é um declínio em colapso. Ainda mais pelo fato de que essa fragilidade agora se expressará em outras partes do mundo semiperiférico, em países que o Ocidente hoje considera totalmente sob seu controle, mas que a qualquer momento podem começar a exibir os fatídicos sinais de insatisfação da maioria empobrecida contra os privilégios da minoria que se beneficia de sua ligação ao modelo ocidental de capitalismo financeiro. Pois se a Turquia foi perdida, nenhum país do mundo está seguro para o Ocidente. O aumento local da repressão apenas acelerará tais processos. E as pragmáticas elites semiperiféricas, cujo casamento com o capitalismo financeiro ocidental é movido menos pela ideologia que pela conveniência, já devem estar fazendo seus cálculos, pensando em “fazer a revolução antiglobalista antes que o povo a faça”. 

O que assistimos na Turquia pode ser considerado, com a licença da hipérbole, como sendo a Segunda Queda de Constantinopla. A primeira foi em 1453, e embora traumática, fecharia as rotas comerciais do Ocidente com o Oriente, estimulando as grandes navegações e a descoberta das Américas, cujas riquezas seriam apropriadas pelo então incipiente capitalismo ocidental. Talvez, assim, essa primeira queda tenha salvado a Europa de sua absorção pelo Império Otomano, que a via como uma província adiada que inevitavelmente seria conquistada. Mas desta vez não há um continente gigantesco, rico e desconhecido para ser explorado. O Ocidente, exausto, apenas desvia o olhar do mundo das disputas geopolíticas reais para a realidade controlada, fantasiosa e mais favorável das disputas esportivas e comerciais de uma Olimpíada marcada pela simpatia resiliente do povo carioca, mas que do ponto de vista geopolítico possui um indisfarçável gosto de fim de festa.


Créditos da foto: Presidência da República da Turquia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12