http://www.marceloauler.com.br/
Eugênio José Guilherme de Aragão (*)
“Was nicht passt, wird passend gemacht”
(quando algo não cabe, dá-se um jeitinho de caber)
Sabedoria popular alemã
Estudioso da evolução das teorias, Paul Feyerabend (in: Contra o método; Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1977), qualificado por vezes de anarquista gnosiológico, sugere que cientistas não são santos. Estão longe de se equipararem a carmelitas de pés descalços. Padecem dos vícios muito encontradiços em outros seres humanos, dentre os quais a vaidade e a soberba. Longe de abrirem mão de suas teorias, quando suspeitam de seu falseamento, promovem puxadinhos de novas hipóteses por testar, sempre no esforço, não de desistir da teoria, mas de afastar suas inconsistências. Se necessário, até por meio de falácias ocultas. E isso torna todo castelo teórico muito frágil, prestes a ruir a toda hora e só mantido inteiro a custas de estacas de sustentação.
Ao que parece, não é muito diferente a forma de agir de investigadores criminais quando lidam com ilícitos de maior complexidade: como organizações criminosas e processos de lavagem de dinheiro. A polícia se serve muito de organogramas e fluxogramas, tentando estabelecer relações entre fatos e pessoas. O ministério público, sem deixar, também, de fazer uso desses instrumentos, vai além, porque tem que elaborar uma teoria que sustente a acusação.
Esse tipo de técnica foi ostensivamente usado na denúncia da Ação Penal (APn) 470-DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O conhecido “mensalão”. Os procuradores que elaboraram o libelo, partiram, a priori, da existência de uma organização criminosa, que carreava recursos para distribuí-los a partidos e parlamentares da base de sustentação de governo. Fosse para remunerar o apoio em votações de projetos de lei estratégicos para o governo, ou para amortecer dívidas de campanha.
Os recursos, no caso, eram definidos como públicos. Supostamente advinham de bonificações da Visanet ao Banco do Brasil e de sobrepreços em contratos de publicidade. Tudo supostamente disfarçado em contratos de financiamento entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Banco Rural, que, ao ver dos acusadores, seriam simulados. Para realizar todo esse complexo intento, os atores envolvidos, ligados a empresas, bancos, governo e partidos, se organizariam, na teoria posta, de forma complexa em núcleos com diferentes atribuições: um “núcleo operacional”, um “núcleo financeiro” e um “núcleo político”. Os três articulados entre si para permitir o funcionamento do esquema de desvio de ativos para a garantia da governabilidade.
A experiência do uso do modelo teórico foi tão bem recebida pela mídia tradicional, ávida por uma versão que comprometesse todo governo do PT, que virou uma coqueluche nas rodas de procuradores da república.
Logo se realizou, já na gestão de Rodrigo Janot como procurador-geral, curso de “mensalão” na Escola Superior do Ministério Público da União para os colegas aprenderem a montar seus castelos teóricos como rotina acusatória.
O problema central de teorias investigativas é que, se forem estáticas, elas incidem sobre grave violação do princípio da presunção de inocência.
O processo penal existe como uma sucessão de atos tendentes a criar uma sólida teoria sobre um acontecimento qualificado como crime. Nessa sucessão de atos, se dá às partes, acusação e defesa, a oportunidade de promoverem “provas”. Ou seja, demonstrações empíricas sobre a correção de suas hipóteses que são diametralmente opostas. Toda suposição prévia sobre o acontecimento (hipótese por demonstrar) é, assim, provisória e o ministério público não pode ter o compromisso inabalável com seu acerto definitivo. Se constatar que sua hipótese era falsa, deverá rejeitá-la, para defender a inocência do réu.
O ministério público é fiscal da lei e não ferrabrás implacável.
Afinal, teorias são por natureza transitórias, porque construídas sobre assunções que podem mudar com a construção de novas teorias que as falseiam. A falseabilidade é, segundo Karl Popper (in: A lógica da pesquisa científica; São Paulo: Cultrix, 1993), a característica essencial das teorias e, uma vez falseadas, elas seriam substituídas por novas teorias, assim provocando o avanço da ciência.
Mas, essa dinâmica pressupõe, é claro, cientistas honestos, que vistam as sandálias da humildade e se reconhecem falhos, abrindo mão, com modéstia, de suas hipóteses tão custosamente testadas
No entanto, como humanos que são, incide sobre os investigadores o problema apontado por Feyerabend. Longe de terem a disposição de rever suas hipóteses quando falseadas por contra-hipóteses ou de abandonarem aquelas com sua substituição por um novo paradigma teórico, eles insistem até o fim na sua tese inicial. Se necessário for, fazem um puxadinho cá, um puxadinho lá, para, mantendo a teoria em suas linhas mestras, esconderem eventuais inconsistências decorrentes de contradições constatadas ao longo da instrução criminal.
Assim, o construto mental inicial, mesmo que não plenamente provado, é apresentado como um fato definitivo. As provas que vão chegando ao processo são empurradas, piladas, socadas para dentro das categorias pré-concebidas, para que se adaptem ao todo previamente desenhado. Encaixa-se aí a sabedoria popular alemã: “was nicht passt, wird passend gemacht” (“quando algo não cabe, dá-se um jeitinho de caber”).
Não interessam as demonstrações de inocência provável do investigado/acusado, porque são antiestéticas. Sacrifica-se, com arrogância moralista, essa inocência pelo amor ao castelo teórico montado.
Foi assim que José Genoíno entrou na APn 470: contra ele existiam apenas duas assinaturas em contratos de financiamento com o Banco Rural, que, como dever estatutário de seu ofício de presidente do Partido dos Trabalhadores, foi obrigado a avalizá-los.
Ainda assim, foi socado no “núcleo político” para, ali, se desenhar uma quadrilha e chegar a José Dirceu. Todos sabiam da fragilidade da prova contra Genoíno, distante de ser “beyond any reasonable doubt“, (além de qualquer dúvida razoável) a ponto de certa magistrada tê-la expresso, mas votado pela condenação desse réu “porque a doutrina lhe permitia”.
Esses castelos teóricos são de uma perversão desumana. O destino daquele sacrificado, publicamente exposto e estigmatizado como “corrupto”, pouco interessa.
Pouco interessou que José Genoíno sempre morou na pequena casa geminada na divisa de São Paulo e Osasco, área de classe média baixa, com uma vizinhança composta de garçons e motoristas de táxi. Que ele nunca adotou hábitos extravagantes, andando na capital de metrô e, quando em Brasília, pedindo aos amigos para buscá-lo no aeroporto e levá-lo a um dos mais baratos hotéis da capital, onde era freguês cativo.
A ninguém interessou o tanto que Genoíno colaborara, na Constituinte de 1987-1988, com o lobby do ministério público para criar um órgão forte e eficiente. Ninguém se lembrou que era uma pessoa festejada por todos os procuradores-gerais, inclusive aquele que pediu sua prisão, sabendo-o inocente.
O trabalho de se manter o “esquema” do “mensalão” era mais importante. Afinal, a imprensa já o disseminara e o relator no STF, publicamente, destratara os colegas que colocassem em dúvida a teoria montada, os castelo teórico do ministério público.
Piores ainda são os castelos construídos em “task forces” (forças tarefas) criadas por polícia e ministério público. Elas surgem com estardalhaço e são defendidas com unhas e dentes pelo juiz, pelo Conselho Nacional do Ministério Público que a premia e, claro, pela mídia interessada no desgaste desse ou daquele ator político alvo das mesmas.
É que a montagem de uma força tarefa é feita com tanto rapapé que ela fica sob permanente pressão de apresentar resultados. Ninguém cria força tarefa para arquivar um inquérito.
Esse estardalhaço, por si só, fere mortalmente a presunção de inocência e vai consolidando na opinião pública, como um enredo de novela previsível, a certeza do acerto da teoria inicial sobre o envolvimento dos atores escolhidos nos fatos supostamente ocorridos.
O castelo teórico montado em Forças Tarefas, mui frequentemente fundamentou-se nas delações premiadas. E estas foram levadas a cabo com enorme pressão psicológica exercida sobre os potenciais delatores. Além de terem sido direcionadas a alvos previamente escolhidos pelos investigadores e pelo juiz para dar contornos de solidez à teoria concebida sobre os fatos em investigação.
Torna-se, pois, inexpugnável e a teoria, por mais simplória, passa a ser tratada como infalseável. Troca-se a ciência na investigação pela ideologia doutrinária, que vê em tudo corrupção como mal a ser extirpado, custe o que custar. Passam-se a adotar até doutrinas estrangeiras fora de seu contexto e completamente deturpadas de seu significado original, como o instituto do domínio do fato (“Tatherrschaft”), concebido por Claus Roxin.
Convém lembra que ela foi imaginada como um instrumento para medir o grau de culpabilidade de cada um num concurso eventual de agentes, em um sistema que, diferentemente do nosso, trata cada tipo de concurso (coautoria, participação, instigação) de forma diferenciada. Transmutaram-na em um instrumento de atribuir crime por responsabilidade objetiva. Mas não interessa. Isso é só mais um “legítimo” puxadinho para dar aparência de consistência ao construto mental a priori dos acusadores.
As forças tarefas revelam, no entanto, outro problema sério, afora a lambança dos castelos teóricos. Esse problema é tão grave, que definitivamente mostra a desumanidade de seu uso pela polícia e pelo ministério público. Elas são um instrumento que incorporam a própria falta de accountability(prestação de contas) de seus atores, extraordinariamente empoderados no sistema constitucional brasileiro.
Diferentemente de outros modelos organizacionais, encontradiços no direito comparado, no Brasil, a polícia, o ministério público e o juiz são personagens do processo penal que não sofrem maior supervisão sobre a substância de seu trabalho.
Na Europa continental, a polícia é supervisionada pelo Ministério do Interior, que exerce sobre ela um poder de mando. Elas são “weisungsgebunden” (sujeitas a instruções) vinculadas à determinação ministerial.
O mesmo ocorre com o ministério público, sujeito à supervisão concreta do Ministério da Justiça, a cuja estrutura pertence. E o juiz, por sua vez, está sujeito à autoridade disciplinar do presidente do tribunal, escolhido pelo Ministro da Justiça.
No Brasil, cada um desses atores bate a mão no peito e se gaba de sua independência funcional, numa extensão que se consolida nos respectivos imaginários corporativos.
Não percebem, entretanto, que sua independência é adequadamente calibrada na constituição, na lei e em regulamentos. A do juiz se restringe claramente aos limites da lide. O juiz é independente para transitar no espectro entre a tese do autor e a do réu. Ele não tem liberdade de decidir extra petita.
O ministério público tem outro tipo de independência, que não é uma prerrogativa funcional, mas, conforme prevê o art. 127 da Constituição, é um “princípio institucional”, ou seja, uma diretriz de organização interna do órgão. Nem poderia ser diferente, já que o ministério público, ao deter a iniciativa de ação, não tem sua independência balizada pela lide já construída pelas partes.
A se imaginar uma tal independência sem balizamentos que há para o exercício da jurisdição, cada membro do ministério público se converteria em uma metralhadora giratória, cuspindo bala para todas as direções. E nenhum estado poderia conviver com isso.
Por isso, a independência funcional como princípio institucional encontra seus limites nos outros princípios institucionais mencionados no mesmo artigo: a unidade e a indivisibilidade do ministério público (solenemente ignorados por grande parte de seus membros). Por estes princípios pressupõe-se que o ministério público aja concertadamente em todas as instâncias e em todos os campos de atribuições.
A independência funcional passa a ter um caráter negativo: ela só existe para que o membro individualmente não seja coagido a se posicionar contra sua convicção. Havendo uma tese coletivamente acertada na instituição, da qual ele venha a discordar, tem o direito de pedir a redistribuição do feito para não atuar nele contrariando a unidade de ação da instituição. E nada mais.
A polícia, por sua vez, não tem independência funcional alguma. Seus agentes são plenamente supervisionados por suas estruturas internas e, no caso da polícia federal, também pelo Ministério da Justiça.
Ocorre que se consolidou costume regulamentar de se respeitar o trabalho individual de cada delegado, com o imaginário corporativo de que essa independência se equipara à do ministério público. Mas isso, repito, é só o imaginário corporativo.
No entanto, ninguém nega que, no Brasil, principalmente no plano federal, a polícia detém um poder significativo de pressão que dirige ao legislativo, onde dispõe de bancada própria, e ao executivo.
É mais fácil o Ministro da Justiça cair por conta de um conflito com o diretor-geral da polícia federal, do que o contrário. Paulo Brossard foi nomeado para o Supremo como meio de tirá-lo do ministério, onde entrara em confronto com o diretor-geral Romeu Tuma.
Resumindo: com atores tão poderosos, muitas vezes além do que a lei lhes garante, o processo penal, para garantir os direitos do investigado/acusado, tem que se organizar de outra forma. Torna-se necessário criar um sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos) entre os três órgãos públicos envolvidos na persecução penal.
Basicamente, se a polícia, na investigação, comete algum abuso, este pode ser prontamente corrigido pelo ministério público, que exerce o controle externo da atividade policial; se o ministério público se houver além dos limites legais, recorre-se ao juiz, que devolverá o processo ao seu leito natural; e se o juiz praticar ilegalidade, tem a segunda instância para corrigi-lo. Cada um no seu quadrado.
Por essa razão, não há previsão constitucional de investigação criminal pelo ministério público, para que as atribuições não se misturem. Ainda assim, o STF, ao julgar, com repercussão geral, o RE 593727/MG, (rel. Min. Cezar Peluso, julg. 14.5.2015) admitiu excepcionalmente essa investigação pelo parquet, quando motivos extraordinários o recomendem (por ex. omissão da polícia ou envolvimento da polícia no crime).
O que o acórdão omitiu é que, se essa investigação é excepcional, deve ser motivada e a motivação submetida previamente ao juiz, que reconhecerá, ou não, a hipótese de excepcionalidade. Esse controle é essencial para se ter transparência e “accountability” por parte do ministério público. Depois de autorizada a investigação, ela deve seguir o rito do inquérito policial, com remessa, a cada 30 dias, dos autos para o juiz, para que ele supervisione a atuação dentro do sistema de “checks and balances”. Isso pressupõe que o juiz não seja parceiro do ministério público, combinando com este “o jogo”, sob pena de colocar em sério risco as garantias fundamentais do investigado/acusado.
Forças tarefas que envolvem trabalho conjunto de polícia com ministério público na montagem do castelo teórico e na sua solidificação, sob a suspeita imiscuição do juiz em todas as etapas, são, por isso, inconstitucionais.
Porque se os três atores públicos se mancomunam, ao invés de se controlarem sucessivamente, o jurisdicionado fica sem ter a quem recorrer contra eventuais abusos articulados. Isso viola o princípio do amplo acesso à justiça (nenhuma lesão de direito poderá ser subtraída da apreciação do judiciário) e inviabiliza a garantia do devido processo legal.
Forças tarefas podem ser legitimamente constituídas entre órgãos da mesma administração: polícia e previdência social ou polícia e receita federal, mas jamais em atuação conjunta com órgão parajurisdicional ou jurisdicional, pois quebra a dinâmica do controle sucessivo.
O que se percebe, hoje, na Força Tarefa da Operação Lava Jato é precisamente isso: polícia, ministério público e juiz como parceiros de uma mesma empreitada, protegendo-se reciprocamente, tudo em nome da necessidade do rigor no combate à corrupção.
Expõem-se castelos teóricos para o público que não são em absoluto conferíveis, para chegar a conclusões antecipadamente postuladas, por exemplo, de que Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente, era o chefe de uma organização criminosa instalada em seus governos.
Nenhuma prova sólida é apresentada, mas apenas suposições baseadas em duvidosas declarações de terceiros, muitos, verdadeiras testemunhas de “hearsay”, (boatos) sem credibilidade, todas socadas nos “escaninhos” teóricos prévios.
Mas fazem-se coletivas de imprensa em salas de conferências alugadas com dinheiro público, para apresentação de vistosos gráficos de Powerpoint de impressionante fragilidade, sempre em prol de uma teoria prévia, que desconhece a dignidade humana e a presunção de inocência do investigado exposto, por darem-se como definitivos os pressupostos hipotéticos dessa teoria montada.
Não se deve desconsiderar que o uso desse método de procurar explicar fatos complexos por uma série de hipóteses a serem testadas para formarem uma consistente teoria do crime atribuído ao investigado/acusado é um instrumento válido e legítimo.
Mas é preciso estar atento ao que falou Karl Popper e “vestir a sandália da humildade” para, na busca da melhor verdade, se tenha flexibilidade e humildade no falseamento ou na refutação de uma ou outra hipótese e, com isso, permitir o reconhecimento da inocência de um ou outro implicado.
O método não pode servir de “fait accompli” (fato consumado), anulando o esforço da defesa. Por essa razão, os três poderosos atores público têm que ficar, cada um, em seu quadrado, evitando expectativas públicas por esse ou aquele modelo hipotético, precisamente para fazer real a flexibilidade do falseamento teórico ou a superação da teoria posta, por outra, com fundamentos diversos, compondo novo paradigma.
Só assim se garante ao jurisdicionado um “fair trial” (julgamento justo).
* Eugênio José Guilherme de Aragão – Doutor em direito pela Ruhr-Universität de Bochum (Alemanha), mestre (LL.M.) em direito internacional dos direitos humanos pela University of Essex (Reino Unido), foi Ministro de Estado da Justiça do governo Dilma e exerce, hoje, os cargos de Subprocurador-Geral da República no Ministério Público Federal e de Professor Adjunto na Universidade de Brasília.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12