Enquanto a instabilidade política parece não dar sinais de abrandamento, movimentos neofascistas procuram espaço como alternativa aos desgastados partidos. O hate rock, vertente musical que funciona como ferramenta de difusão ideológica para seus militantes, mostra-nos como
por Pedro Carvalho Oliveira // http://www.diplomatique.org.br/
A “Dezembrada” ocorreria no dia 12 de dezembro de 2015, em Curitiba, e serviria como congresso de fundação da Frente Nacionalista (FN), recém-criado movimento de coalização política. Entre as formalidades, oito bandas se apresentariam a um público de aproximadamente mil pessoas que se deslocavam de várias regiões do país. Dias antes, porém, o evento foi adiado e, até o momento, não ganhou nova data, embora se comente que teria sido realizado em sigilo. O Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), cuja bandeira estampava o panfleto de divulgação, apoiava o congresso.
O adiamento foi provocado por manifestações de movimentos esquerdistas curitibanos, que se prontificaram a aparecer no local de sua realização. Isso porque a FN é um movimento neofascista, que se autodenomina uma “organização partidária filiada à Terceira Via”, descrição vista em sua página no Facebook. Defende o corporativismo e o nacionalismo, além de se manifestar no sentido de sugerir culpados para uma suposta crise de decadência nacional. Diante da polêmica, o PRTB declarou jamais ter apoiado o evento.
Política e ódio dentro e fora da música
Enfatizando a rejeição violenta a tudo que não integra as “comunidades imaginadas” por seus militantes, o hate rock é um gênero musical que defende ideias neofascistas. Oito bandas do gênero estavam anunciadas como atrações do referido evento, entre elas a curitibana Estandarte Patriótico, que, em consonância com a FN, defende uma “Terceira Via” política. Na música “Guerreiros da terceira posição”, de 2015, dizem: “Nossa luta é direcionada contra os reais inimigos da nação/ Não iremos recuar/ A vitória é nossa obrigação/ Nossa soberania está sendo roubada por vermelhos e liberais”.1 Para ela, liberais e “vermelhos”, ou seja, os de alinhamento esquerdista, aos quais a cor frequentemente é atribuída, não apenas são incapazes de gerir a nação, como também são inimigos dela. Inimigos porque impedem a soberania almejada constantemente entre neofascistas. Os políticos das duas vertentes teriam se mostrado incapazes de conduzir a nação brasileira da forma que a banda e seus pares idealizam. Recentemente, os gritos de “a minha bandeira jamais será vermelha” surgiram com frequência nas ruas, em oposição à presidenta Dilma Rousseff e ao PT, acusados equivocadamente de socialismo ou comunismo.
Se por um lado o liberalismo é rechaçado pelos fascismos por defender uma democracia calcada em diretrizes capitalistas, por outro os comunistas e a esquerda em geral se tornam inimigos políticos por também dialogarem com o materialismo e serem acusados de “conspiradores antinacionais”. Se os neofascismos, ao mesmo tempo que rompem com o passado, dão continuidade a discursos clássicos dos fascismos, o ódio aos dois sistemas políticos permanece. O fascismo, que surgiu como uma “terceira posição”, buscava substituí-los.
Nesse sentido, é importante pensarmos o contexto com o qual a música dialoga e no qual o evento pretendia ser organizado para lançar a FN. A crise política no Brasil se alastrava com amplas contestações sociais, que atribuíam ao governo Dilma e ao PT uma culpa generalizada por crimes de corrupção, investigados pela Operação Lava Jato. A excessiva cobertura da grande mídia, bem como as insistentes investidas do Poder Judiciário, respaldadas por segmentos da população, reforçou o consenso de que a presidenta deveria ser derrubada por impeachment, ainda que não houvesse provas concretas a respeito de seu envolvimento em crimes de responsabilidade.
O que vimos recentemente, resultado desse consenso, foi a violência contra defensores do PT e da presidenta, ou mesmo contra aqueles que se opõem ao processo que visa tirá-la do poder. Alguns indivíduos chegaram a ser abordados nas ruas e agredidos simplesmente por estarem usando peças de roupa vermelhas. A sede do PT em Minas Gerais foi depredada2 por opositores do governo que o “acusam” de comunismo ou socialismo, ainda que esteja longe disso. Lembremos que “o fascismo italiano [...] irrompeu na história por meio de um ato de violência contra não apenas o socialismo como também contra a legalidade burguesa, em nome de um pretenso bem nacional maior”,3 quando, em 1919, Mussolini e seus comparsas destruíram a sede do jornal socialista Avanti, em Milão.
O Brasil hoje não é como a Itália do início dos anos 1920. Os atos de violência não são idênticos. No entanto, devemos observar que práticas fascistas, mesmo que não sejam entendidas como tais por praticantes de hoje, podem ser percebidas num novo contexto e são parte de um processo humano de reelaboração e adaptação. Além disso, os discursos de bandas como a Estandarte Patriótico podem ganhar respaldo longe de seus círculos e penetrar mais profundamente na sociedade, uma vez que, mesmo sem querer, compartilham do ódio atualmente direcionado à esquerda pelos opositores.
O ódio contra os inimigos e os métodos para expressá-lo aparecem em músicas como “Vamos para a guerra”, de outra banda que integraria o line-up do evento, a Linha 12: “Segura ele, sem dó desce o cacete/ [...] Se tentar correr, desce a coturnada/ Se tentar trocar, prejuízo vai levar”.4 A violência é comum aos skinheads neofascistas que consomem e executam o hate rock, que não apenas legitima seus crimes de ódio contra os opositores ideológicos, mas também desenvolve um forte senso de união e proteção entre eles.
O que diferencia um skinhead neofascista contrário à esquerda que agride fisicamente os adeptos dessas ideologias políticas e os manifestantes contrários a Dilma que, em protesto realizado no dia 17 de março, em São Paulo, agrediram um adolescente que defendia o PT?5 A prática é congênere. A diferença é que, para os skinheads, o comportamento neofascista guia suas atitudes de forma clara, enquanto para parcelas dos manifestantes contrários ao governo essa prática não é esclarecida, ainda que utilizada. No entanto, a proximidade entre elas pode fazer movimentos neofascistas ganharem espaço em camadas da sociedade que compartilham de seus inimigos.
A introdução da música “Não muda nada”, da banda CWB Oi!, também escalada para o evento, traz um áudio do programa de rádio do falecido jornalista policial paranaense Luiz Carlos Alborghetti, famoso por declarações polêmicas e conservadoras, em que ele narra um suposto assalto que sofreu em Curitiba. Quando o assaltante teria lhe pedido dinheiro ao efetuar o roubo, o radialista disse, conforme aparece na gravação: “Grana a puta que o pariu, vagabundo, vai pedir pro Lula! Vai pedir pro PT, filho das puta [sic]!”.
Mais adiante, a banda critica a presença de mendigos em Curitiba: “Eu não posso mais andar pelas ruas da minha cidade/ Sou cercado por mendigos implorando por caridade/ Eu odeio dar esmola, não quero enganar você/ Eu nunca fui hipócrita, mas não sei o que fazer/ Eu não tenho culpa do seu desespero”.6 Se unirmos o discurso de Alborghetti ao trecho, perceberemos que mendigos e ladrões são inseridos numa mesma perspectiva de marginalidade e decadência social, representando um perigo à sociedade. Além disso, o uso da fala do radialista na música, aludindo ironicamente ao PT, aponta para uma tomada de postura da banda que é também contrária ao partido.
Esse discurso associa o PT à imagem excessivamente assistencialista que permeia a visão de militantes a favor do impeachment. Uma vez que esse tipo de música pode se aproximar da sociedade pela afinidade entre os discursos, o resultado pode ser uma ampliação, mesmo que pequena, de adeptos dos neofascismos. Sobretudo se pensarmos que o rock dialoga com a juventude em formação, buscando canalizadores para suas frustrações e angústias, seja na esquerda ou na direita. São esses jovens que o hate rock procura atingir.
Num momento em que a situação política já se encontra tensionada e majoritariamente criticada por, de um lado, os que defendem partidos opostos ao PT e, de outro, aqueles que criticam toda a política partidária, incluindo esses partidos, torna-se relevante analisarmos as referências que essas bandas buscam no passado. Os fascismos clássicos “apelaram dando aos que se sentiam perdidos no mundo moderno uma nova mitologia e um renovado senso de pertencimento”,7 apresentando o ódio e a violência como soluções para as crises e a apatia dos governantes – uma solução que negava esquerda e direita, bem como os ditos “inimigos nacionais”.
Não só as músicas se convertem em instrumento político a serviço dos neofascismos, aproximando-se de parcelas da sociedade que não fazem parte de seus meios, sendo capazes de cooptar seus membros, mas também a fundação de um movimento político neofascista naquele momento se torna importante de ser investigado. A FN deixa claro o que pretende, quem são seus inimigos e que tipo de política almeja praticar, sobretudo ao convidar bandas desse tipo para o congresso de inauguração.
O perigoso “remédio” neofascista
Por conversarem com seu tempo, os neofascismos são resultado de adaptações humanas intencionais para que ideias construídas no passado possam permanecer vivas, ainda que sofram rupturas. A continuidade de seus preceitos políticos acaba sendo passível de uso em diferentes contextos. Isso possibilitou a existência de dois tipos de neofascismo, “divididos entre uma corrente dita histórica”, que procura na simbologia e nas práticas do passado seu referencial, “e uma vertente moderna [...], que, mesmo mantendo o ideário fascistizante, abandona as imagens tradicionais do fascismo”,8 tendo em vista uma maior aceitação.
As bandas que examinamos, a FN e os skinheads que fazem parte da “linha de frente” dos neofascismos estão mais próximos da primeira vertente, enquanto partidos políticos que se relacionam de maneira mais próxima com a arena eleitoral se aproximam da segunda. Passam pelo que Nigel Copsey9 e Daniel Woodley10 chamaram de “cirurgia cosmética” a fim de maquiar o conteúdo neofascista (principalmente o racismo) de suas agendas, procurando legitimidade social. Os jovens, em contrapartida, abraçam o “viver fascisticamente”11 por completo, sendo marginalizados por estarem próximos a imagens desgastadas dos fascismos.
Isso não os impede de serem atores políticos e agentes históricos, ao passo que fornecem, por meio de suas músicas, idealizações coletivas (ainda que restritas a um coletivo reduzido), críticas à sociedade e aos modelos políticos vigentes. Transformam uma vertente política do passado em algo renovado, capaz de ser desenvolvido hoje. Essas transformações são construídas num contexto que fornece aos compositores das bandas, representantes de movimentos mais amplos, as bases para os discursos que compõem e defendem.
Uma vez que “cada cultura especifica seu próprio inimigo nacional”,12 aqueles que devem ser combatidos para que a nação se unifique em um corpo homogêneo, os neofascistas brasileiros buscaram-nos em um contexto no qual a política aparece fragilizada. Trazem o anticomunismo e o transformam em antipetismo; trazem da violência fascista o exemplo para lidar com seus inimigos de hoje, o que resulta em atos de violência física nas ruas; estabelecem esses inimigos com base na tradição fascista e na sociedade atual que compõem, flertando com as vozes “sem partido” que atualmente circulam pelas ruas. Ao tentarem se distanciar de “tudo que está aí na política atualmente”, os neofascistas podem ser mais ouvidos.
É sabido também que para os fascistas é necessário estabelecer “um inimigo demonizado contra o qual mobilizar seus seguidores”.13 Criar inimigos é, desde a gênese dos fascismos, uma prática que aglutina as massas para defender a nação contra supostas ameaças. No entreguerras, associar esses inimigos a sistemas políticos específicos, como o liberalismo e o comunismo, energizou sociedades no sentido de desestabilizar a política e tornar esses sistemas desacreditados, abrindo caminho para um novo modelo político. A violência e o ódio eram recursos para a intimidação dos opositores. Essa linguagem intrínseca ao chamado hate rock pode chamar atenção da sociedade ainda hoje por expressar ressentimentos semelhantes e, por vezes, idênticos ao ódio proferido em certas ocasiões por alguns manifestantes.
O ódio ao PT e aos que são contrários à sua criminalização é compartilhado por neofascistas. Inspirados na violência do passado fascista, eles não apenas sugerem a agressão física, como também a apreciam na forma de uma atitude que almeja um bem maior: salvar a nação (nesse caso, contra a esquerda). A violência que os neofascistas provocam e defendem nas músicas não se distancia da que muitas vezes é praticada quando militantes contrários ao PT enxergam inimigos gerados por um consenso que conversa com uma cultura política autoritária particular.
Diante disso, enquanto a esquerda aparece criminalizada e pairam dúvidas sobre a direita, movimentos políticos que se colocam como solução a ambos ganham simpatizantes. Quando se utilizam de um gênero musical específico para alcançar militantes em potencial, ou mesmo para chamar atenção da sociedade, aproveitam-se de um mecanismo político no qual suas idealizações são narradas e propostas, podendo encontrar atenção e gerar mais interesse em suas ideias.
O hate rock possui múltiplas utilidades nesse processo. Expõe as visões de mundo dos neofascistas, suas mudanças e características particularizantes que distinguem os discursos, numa procura incessante para manterem-se utilizáveis. É por meio do hate rock que a militância pode se tornar mais ampla e que podemos visualizar panoramas representativos das práticas neofascistas nos mais diferentes países. No contexto político em que vivemos, a difusão dos neofascismos pode atrair novos militantes, e certamente o hate rock é um instrumento reverberador do ódio ao “Outro”, uma ferramenta para a instigação da violência contra os agrupamentos democráticos presentes em nossa sociedade civil.
Pedro Carvalho Oliveira
Pedro Carvalho Oliveira é mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá, integrante do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo-UEM) e colaborador do Grupo de Estudos do Tempo Presente (UFS).
Ilustração: Dahmer
1 Estandarte Patriótico, “Guerreiros da Terceira Via”. In: Ensaios, Independente, Curitiba, 2015. Faixa 1. MP3.
2 Ver “Sede do PT é alvo de vandalismo pela 3ª vez este mês”, G1, 19 mar. 2016.
3 Robert O. Paxton, A anatomia do fascismo, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2007, p.19.
4 Linha 12, “Vamos para a guerra”. In: Demo. Independente, Curitiba, 2009. Faixa 1. MP3.
5 Ver “Adolescente é agredido em protesto contra governo na Paulista”, G1, 17 mar. 2016.
6 CWN Oi!, “Não muda nada”. In: Demo. Independente, Curitiba, 2013. Faixa 2. MP3.
7 Paul Jackson, “Conclusions”. In: Paul Jackson e Anton Shekhovtsov, White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance [Música white power: cenas da resistência cultural da extrema direita], RNM Publications, Northampton, 2012, p.88.
8 Francisco Carlos Teixeira da Silva, “Neofascismo”. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva et al. (orgs.), Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX, Campus/Elsevier, São Paulo, 2004, p.606.
9 Nigel Copsey, Contemporary British Fascism: The British National Party and the quest for legitimacy [Fascismo britânico contemporâneo: o British National Party e a busca por legitimidade], Palgrave Macmillian, Nova York, 2004.
10 Daniel Woodley, Fascism and political theory: Critical perspectives on fascist ideology [Fascismo e teoria política: perspectivas críticas sobre ideologia fascista], Routledge, Nova York, 2010.
11 Francisco Carlos Teixeira da Silva, “Sobre os tribunais no Terceiro Reich, os fascismos e ditaduras: o que ainda há para estudar?”. In: Karl Schurster et al. (orgs.), Velhas e novas direitas: a atualidade de uma polêmica, Edupe, Recife, 2014, p.29.
12 Robert Paxton, op. cit., p.72.
13 Idem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12