Por Patrícia Valim
http://www.carosamigos.com.br/
Em 17 de outubro de 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão fiscalizador do Judiciário brasileiro, divulgou o rendimento mensal de nossos togados e o custo anual dos tribunais brasileiros: no ano passado, nossos juízes receberam em média 46,1 mil reais mensais e o Poder Judiciário consumiu 79,2 bilhões de reais dos cofres públicos. Se considerarmos que a renda per capita de 2015 girou em torno de 1,1 mil reais (IBGE), pode-se afirmar que um juiz equivale a 41 cidadãos e o Poder Judiciário custou 1,3% das riquezas geradas no mesmo ano (PIB). Esses montantes fazem do Judiciário brasileiro o mais caro do planeta, porém com celeridade e eficácia questionáveis.
Por falta de interesse de alguns deputados denunciados nas investigações da Lava Jato, desde setembro do ano passado está parado no Congresso Nacional um Projeto de Lei (3123/15) que regulamenta o teto salarial dos servidores públicos – o maior deles, cumpre destacar, é o de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF): 33,7 mil mensais. Apesar do alto custo do Judiciário, o STF, nas figuras da presidenta Carmem Lúcia e do ministro Gilmar Mendes, enviou ao Congresso um comunicado de apoio à PEC 241, atual PEC 55 no Senado, que prevê o congelamento por 20 anos de investimentos públicos na saúde, na educação e nas políticas públicas de bem estar social.

No entanto, nossos togados não apoiam a regulamentação do teto de seus próprios salários, que nos últimos anos têm ultrapassado o limite permitido por lei. Nem o atual governo tem demonstrado vontade política de regulamentar essa questão, muito menos de cortar o alto custo de nossos tribunais, muito provavelmente em razão do explícito alinhamento político da Suprema Corte brasileira com a política econômica recessiva atual. Engana-se quem pensa tratar-se de um fenômeno novo da crise política atual que assola a parte ocidental do mundo. A politização da Justiça no Brasil tem longa duração e para que esse fenômeno não se perpetue, recorremos à história.
A Suprema Corte no Brasil começou a funcionar com o nome de Tribunal da Relação da Bahia em 7 de março de 1609, presidida pelo governador-geral do Estado do Brasil. Sua estrutura inicial era composta por oito desembargadores e mais funcionários, que desempenhavam as seguintes funções: um chanceler, que serviria também de juiz da Chancelaria e das Três Ordens Militares; três desembargadores de agravos e apelações; um ouvidor-geral das causas cíveis e do crime; um juiz dos feitos da Coroa, Fazenda e Fisco; um procurador da Coroa, Fazenda e Fisco, que serviria igualmente de promotor de Justiça; um provedor dos defuntos e resíduos; e dois desembargadores extravagantes, além de outros oficiais. Nos casos estabelecidos pelo regimento, caberia a interposição de agravos e apelações somente à Casa de Suplicação em Lisboa.
Em 1652, a Relação da Bahia se adaptou às conjunturas administrativas que evoluíam com o desenvolvimento da cidade e do comércio colonial, aumentando o número de desembargadores do Tribunal para onze magistrados, em razão do aumento do volume de causas julgadas na área de abrangência do mesmo Tribunal. A partir de 1751, o Tribunal da Relação da Bahia passou a dividir suas funções judiciais com o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, sem que isso comprometesse o âmbito e o poder de sua jurisdição. Na segunda metade do século XVIII, a referência ético-religiosa de pecado e vício que dominou o direito penal, incidindo sobre os foros internos e foros externos dos súditos da Coroa Portuguesa, deu lugar a afirmação das autoridades políticas seculares, discriminando as ideias de delito e pena, e de crime de lesa majestade, de forma a torná-las operáveis dentro de um direito mais racional.
O processo de centralização da dominação colonial desejada pela Coroa Portuguesa não podia se desenvolver sem um elemento legal consolidado e um quadro de oficiais com aptidão suficiente para o bom andamento da Justiça. No entanto, a documentação demonstra que a burocracia colonial era constituída por uma rede emaranhada de compromissos interpessoais, geralmente muito mais próximos do que o compromisso teórico com a função, com o dever de ofício ou com a fidelidade ao rei. Isso explica o fato de que, apesar das reformas do direito, a Coroa Portuguesa continuou recebendo denúncias de comportamentos ilícitos de seus magistrados, responsáveis por administrar a Justiça no mundo colonial.
A denúncia mais extensa e de conteúdo altamente virulento, escrita em 1797, afirmava que “a Vossa Majestade representam os Povos da Capitania da Bahia a ruína de que se vêm oprimidos por falta de administração de Justiça a qual se acha fraudada e corrompida pelos Magistrados daquela Relação de que sem temor de Deus e respeito às Leis de Vossa Majestade, se deixam prevaricar por donativos e dinheiros dos ricos habitantes daquela Cidade e seu termo, reinando despotismos, violência e vil interesse daqueles Ministros em gravíssimos danos aos pobres e miseráveis” (Sessão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, 01, 04, 009, doc. nº 129).
O chanceler da Relação da Bahia, Firmino de Magalhães Siqueira da Fonseca, era acusado de sobrepor a liturgia de seu cargo ao do governador, de manter concubinato público com uma viúva (os desembargadores eram proibidos de se casarem com mulheres da colônia) de receber presentes e dinheiro de um Juiz de Fora da Vila de Cachoeira para emitir parecer favorável em um litígio, e o mais greve: o chanceler era acusado de negociar fazendas que vinham de Portugal e contrabandear tabaco, açúcar e algodão por meio das embarcações que chagavam ao porto da Bahia vindas das ilhas de São Tomé e Príncipe.
O desembargador Manuel de Magalhães Pinto e Avellar de Barbedo foi acusado de ter obtido duzentos mil cruzados como Ouvidor do Ceará para emitir um veredito favorável a um comerciante local, de ser pouco tratável pelo seu gênio brusco e de não adiantar os processos da Vara do Crime, resultando em grande lotação no segredo da Relação. O desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto foi acusado de prática de contrabando de fazendas que vinham de Portugal, de vender gado por preço menor que o do mercado e de se valer da influência que seu pai tinha na Corte para obter dinheiro das partes envolvidas em algum tipo de litígio ou intenção na capitania da Bahia (Sessão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, 01, 4, 009, doc. nº. 108).
A Coroa Portuguesa solicitou esclarecimentos ao governador da Capitania da Bahia sobre os motivos de tantas acusações de práticas ilícitas dos desembargadores de seu principal Tribunal da Relação. D. Fernando José de Portugal e Castro respondeu que a melhor maneira de se evitar as denúncias de “ausência de limpeza de mãos” contra os desembargadores da Relação da Bahia era “a escolha a mais escrupulosa sobre os ministros que forem nomeados para servirem na América”, pois, caso contrário, “não pode a Justiça ser bem administrada, nem os governos viverem satisfeitos e sossegados”.
A Coroa Portuguesa não acatou a sugestão de d. Fernando José de Portugal e Castro e nem investigou e processou os desembargadores denunciados. Uma das razões é que não havia na colônia órgão superior ao Tribunal da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro, cujos desembargadores eram os nobres da administração colonial, os mais respeitados e cheios de privilégios entre os funcionários régios. Além disso, Portugal via o Tribunal da Relação da Bahia como o principal guardião de seus interesses em razão de ocupar posição central dentro de um sistema burocrático contraditório, com superposições jurisdicionais e com objetivos múltiplos. Justamente por isso, em casos de conflitos de jurisdição, conflitos entre os desembargadores ou denúncias de prevaricação e ausência de limpeza de mãos, as falhas dos magistrados eram compensadas pelas funções políticas que eles acabavam desempenhando.
Como de fato ocorreu com os magistrados que conduziram as investigações da Conjuração Baiana de 1798, que não por acaso são os mesmos apresentados neste artigo e constantemente denunciados por prevaricação e ausência de limpeza de mãos. Trata-se de um crime de lesa-majestade de primeira cabeça, conspiração contra a Coroa e o Rei de Portugal, deflagrado na manhã de 12 de agosto de 1798, com boletins manuscritos que anunciavam nas ruas de Salvador: “Animai-vos, povo bahinense, que está para chegar o tempo feliz da liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos. O tempo em que todos seremos iguais”.
Após duas delações premiadas que originaram a prisão de 36 pessoas, 11 escravos entre elas, e mais de um ano de investigação com todos os ritos preservados, incluindo um advogado de defesa: os desembargadores Avellar de Barbedo e Costa Pinto condenaram à forca e sem prova, por “ouvir dizer”, quatro homens livres, pobres e pardos por crime de sedição, deixando à margem das investigações um grupo de poderosos que participaram do movimento, que em razão das relações promíscuas que eles mantinham com a administração pública, sobretudo a Justiça, foram chamados por um contemporâneo de “corporação dos enteados”.
Após o enforcamento seguido do esquartejamento dos corpos dos acusados em praça pública, a Coroa Portuguesa continuou explorando o Brasil por mais de duas décadas. Os desembargadores Avellar de Barbedo e Costa Pinto foram promovidos, respectivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e do Rio de Janeiro que adquiriu maior importância com a nomeação do governador da Capitania da Bahia, D. Fernando José de Portugal e Castro, para assumir o principal posto da burocracia colonial: Vice-Rei do Brasil.
O advogado de defesa dos acusados, José Barbosa de Oliveira, que provou a imaterialidade das acusações, foi nomeado promotor do Juízo Eclesiástico em 1803 e desembargador da Relação Eclesiástica em 1805. Ocupou os cargos de Cônego da Sé, Vigário Geral interino do Arcebispado entre 1814 e 1815, Vigário Geral do Arcebispado e Provedor interino dos Resíduos a partir de 1816. No final de sua vida foi acusado de “ausência de limpeza de mãos” e enriquecimento ilícito. Morreu como Tesoureiro-mor da Catedral da Bahia em 1824, deixando diversos bens para seus descendentes.
Como se vê há muito que a politização da Justiça no Brasil tem um custo alto para a nossa sociedade: sangue, cargos, dinheiro, reprodução da desigualdade e o principal: as estruturas internas do Estado vedadas à totalidade da população. ♦ Patrícia Valim é professora de história na Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12